Ilmar Rohloff de Mattos - O Tempo Saquerema (Apresentação e dois capítulos) II
(continuação... FICHAMENTO não foi feito por mim)
III - A Teia de Penélope - Subcapítulo 1. Os olhos do soberano.
14 - Para os Saquaremas, só um poder forte poderia tanto oferecer “suficientes garantias à ordem pública e a bem entendida liberdade”, quanto tornar audível a voz da “Razão nacional única e verdadeira indicadora do pensamento e necessidade pública”. Era o “a maior felicidade ao maior número” de Jeremy Bentham. Poder fraco era coisa de interesses particulares, concebiam. Para os saquaremas, a ordem social nunca viria ou se sustentaria naturalmente, sendo sim resultado de ação política coordenada e expansão da capacidade regulatória. O Poder Moderador era, para eles, a “chave de toda a organização política”.
15 - … Em sua obra, o Visconde de Uruguai não menciona o Moderador ao falar dos poderes políticos; todavia, por ter em consideração “as circunstâncias do país”, tem por assentado que o imperador, titular exclusivo do Poder Moderador, deve reinar, governar e administrar. A este cabia o “monopólio da responsabilidade”, longe das disputas partidárias. Era o “cérebro”, a “razão”, da qual o Executivo era o braço ao mesmo tempo que era o cérebro em relação ao “braço” administração.
16 - Segundo o Visconde, a centralização administrativa (“poder de dirigir os interesses particulares de cada parte da Nação”), embora não fosse uma decorrência necessária da centralização política (direção dos interesses comuns), fortalecia imensamente esta última quando adotada. Pretendia que o Poder Administrativo, secundário e subordinado, se mostrasse apolítico, acima das disputas políticas e agitações. Quanto ao Poder Político, deveria sofrer a prevalência do Poder Executivo.
17 - A manutenção do monopólio da mão-de-obra escrava, o mais importante da classe senhorial, era o objetivo número 1 da política externa da Coroa, que resistia à pressão britânica, o que se constituía em argumento poderoso na defesa do fortalecimento do Governo-Geral.
18 - Os anos de insurreições negras, disputas por terras e insubordinação de tropas causaram, segundo os dirigentes, a necessidade de uma espécie de superministério da Justiça para manter a ordem interna. Tinha quase tanto o prestígio quanto a pasta da Fazenda (outro superministério da época). (Enfim, Bozo tem bem a quem puxar). Mesmo questões sobre força de trabalho, controle de opinião e propriedade de terra sofriam algum tipo de tutela deste ministério.
19 - Conseguida a “Ordem”, a pasta da Justiça passou por um esvaziamento. Era a hora de buscar o projeto de “Civilização”. À Coroa cabia “olhar” (vigilância dita civilizatória, digamos assim) pelos interesses da sociedade. Caracterizando o novo equilíbrio de forças, à Secretaria de Estado dos Negócios do Império competia conhecer a população do Império, por meio da organização do registro civil, da realização de recenseamentos e da regulamentação dos direitos civis e políticos dos estrangeiros; cuidar dos assuntos referentes à saúde pública e ao controle sanitário; organizar o ensino primário na Corte e o superior em todo o Império, além do ensino de cunho profissional; estabelecer regulamentos para as diferentes profissões, com exceção da magistratura; administrar os hospitais e regulamentar as habitações urbanas (cortiços); supervisionar os templos de cultos não católicos; regulamentar as eleições e supervisionar os presidentes de províncias — entre inúmeras outras atribuições que propiciavam a difusão entre os homens livres do Império do Brasil dos valores, normas e padrões que distinguiam as “Nações civilizadas”, mas de tal forma que, pela recuperação de um jogo de inversões, estes homens deveriam ver na civilização a face complementar da escravidão.
20 - Ainda o Visconde: A consideração das condições do Império - a topografia do país, sua extensão, as divisões territoriais, a dispersão da população, a dificuldade de comunicações, o pequeno número de homens habilitados para a gerência dos negócios nas localidades, a pequena integração econômica entre as províncias - impunha, no seu entender, o abandono das experiências descentralizadoras inspiradas nos modelos inglês e norte-americano.
21 - Os dirigentes saquaremas pretendiam que seus círculos concêntricos de vigilância partissem dos centros das cidades. O primeiro círculo era formado pelas freguesias urbanas da Corte, e dentre elas particularmente as “do centro” - Sacramento, Candelária. São José e Santa Rita -, que continham as instituições e instalações que tornavam possível a reprodução dos interesses dominantes. Porém, também intencionavam o mais distante dos círculos, os das freguesias do Sertão, não para substituir o poder local, mas sim para vigiá-lo e dirigi-lo. Enfim, romper o isolacionismo desses lugares.
22 - A escassez de recursos materiais impedia a instalação de um processo total de burocratização, “impondo limites ao objetivo centralizador e possibilitando a ascendência real do governo da Casa — isto é, dos interesses particulares”. O patrimonialismo se mostrava na não-separação entre público e privado e formas de recrutamento distantes do critério de competência (ademais, os cargos eram instáveis e sujeitos a derrubadas e transferências arbitrárias). Também não havia separação clara entre norma e aplicador dela. O juiz às vezes legislava. Não havia meios materiais da administração inteiramente públicos, sendo que o controle pessoal se estendia ao patrimônio do Estado. Para Fernando Uricoechea, a grande propriedade rural era uma “instituição total”, no sentido que a esta atribui Erving Goffman.
23 - Dentro dos homens livres, era privilegiado o segmento dos monopolizadores, que ficavam com as funções estratégicas do Império.
24 - O Visconde do Uruguai lamentava que interesses particulares se sobrepusessem ao público, como é o caso da constante troca do pessoal administrativo com as mudanças nas províncias. Tudo recomeçava do zero, dificultando qualquer planejamento e acúmulo por mais tempo.
25 - Voltando à época de D. João, Ilmar observa que a fusão dos monopólios entre colono e colonizadores trouxe os germes do que seria depois a constituição da classe senhorial: … Ora, o que se apresentaria, desde então e cada vez mais, como representação dos interesses gerais, assumindo a forma do governo do Estado em oposição aos interesses particulares, não era senão uma forma superior de organização de um segmento desses últimos, objetivando uma restauração e mesmo uma expansão.
26 - O papel do dirigente que queria forjar o “público” não era o de se opor aos interesses particulares, que seriam “diferentes” (do público), mas sim o de dirigi-los, eis que distintos (entre si, assim entendi). O público seria o “espaço-município neutro”.
27 - Os melhoramentos visavam não só a riqueza em si, mas aproximar o Estado da “Casa”. Assim, construíram-se cadeias, escolas, câmaras municipais, estradas, pontes e canais públicos. Mapas, plantas, carta topográficas e mesmo a Reforma do Código Criminal visavam esse mesmo processo de centralização administrativa e, em alguns casos (como no da reforma), definição de hierarquias. O elemento particular passava a recorrer ao governo, seja pela subordinação, seja pela escassez de recurso material
28 - Enumera os agentes lato sensu da administração pública, e também da centralização: Presidentes de províncias e chefes de legião da Guarda Nacional; bispos e juízes municipais, de paz e de órfãos; membros das Relações e redatores de jornais locais; empregados das faculdades de Medicina, dos cursos jurídicos e academias e juízes de Direito; comandantes superiores da Guarda Nacional, párocos e médicos; chefes de Polícia e professores — todos esses e alguns mais, em graus variados e em situações diversas, nos níveis local, municipal, provincial ou geral. Portanto, para Ilmar, está aqui o Estado em seu aspecto de direção - e não apenas de coação. Exemplifica: o redator de uma folha local não raro se constituía num agente da centralização muito mais significativo do que um empregado público.
29 - Sobre os empregados públicos, o Código Criminal de 1830 buscou protegê-los, criando, por exemplo, crime sempre que alguém se opunha, servindo-se da força, à execução das ordens legais das autoridades competentes, e vigiá-los, criminalizando uma série de condutas que se opunham à boa ordem e ao interesse público em geral.
30 - Tentava-se regular detalhadamente a atuação dos agentes administrativos: esta sofreguidão normativa não deixava de contrastar vivamente com o cotidiano das funções, sempre marcado pela forma de preenchimento dos empregos públicos e pelas paixões partidárias. E deste embate entre o exercício da administração e as normas que insistiam em disciplinar a atuação daqueles por ela diretamente responsáveis resultava a teia de Penêlope. (trabalho que nunca fica pronto)
31 - Os saquaremas, assim, criaram cargos intermediários entre a Corte e a Casa, transformando esses empregados públicos praticamente em dirigentes saquaremas. Exemplos concretos: a) distinção entre polícia administrativa, ligada à conservação da urbanidade e de competência do governo municipal, e polícia judiciária, subordinada ao Governo-Geral, tornando independentes as leis policiais judiciárias das das sanções dos presidentes das províncias; b) a negação às Assembléias Provinciais do poder de suspender e demitir os membros das relações e tribunais superiores; c) a reforma do Código do Processo Criminal em 1841, esvaziando o poder do “juiz de paz”, autoridade de eleição popular, que, segundo o Visconde do Uruguai, era “tudo”, enquanto o Juiz de Direito, única nomeação do governo, … “nada”, e conferindo mais poderes aos chefes de Polícia nomeados pelo Imperador em algumas localidades mais importantes; d) a reforma da Guarda Nacional em 1850 (não explica muito).
32 - Último parágrafo do texto: Os olhos do Soberano expressavam, assim, a restauração em curso da moeda colonial, a qual pressupunha a reprodução das diferenças e hierarquias em sua face complementar. E, ao cabo, essas diferenças e hierarquias se constituíam na limitação do alcance de um olhar, pois se o Império a todos deveria conter, a Coroa, por seu turno, somente a alguns poderia privilegiar por meio da associação que permanentemente promovia entre política e negócios, as rodas do “carro social”.
.
Comentários
Postar um comentário