Peter Burke - "O Mundo do Carnaval”: Cultura Popular na Idade Moderna
FICHAMENTO não foi feito por mim
Texto: O Mundo do Carnaval” E: Cultura Popular na Idade Moderna. BURKE,
Peter
https://www.portalconservador.com/livros/Peter-Burke-Cultura-Popular-na-Idade-Moderna.pdf
Mitos e rituais
1 - Na cultura popular europeia tradicional, o tipo de cenário mais importante era a festa, seja de família, comunidade ou em homenagem a algum padroeiro da cidade, por exemplo. Ademais, eram festas anuais comuns a muitos europeus: a Páscoa, o Primeiro de Maio, o Solstício de Verão, os doze dias de Natal, o Ano-Novo e o dia de Reis, e por fim o Carnaval.
2 - A festa era a época do “desperdício”, em contraste com
a economia prudente que costumava acompanhar o dia-a-dia. Roupas “espalhafatosas”
davam o figurino. Alguns jogos e peças também só apareciam nessas festas. O
interior das casas também exigia decoração especial nesses eventos, como
jarros, pratos e copos “diferenciados”.
3 - Um sociólogo francês sugeriu que os homens nas sociedades tradicionais vivem "da lembrança de uma festa e da expectativa da próxima". (parece meus encontros)
4 - Peregrinações em direção a grandes festas urbanas era
algo comum. Casas nas aldeias muitas vezes continham lembranças - imagens na
parede - a respeito disso. Mobília feita especialmente para um determinado
acontecimento, como um casamento, também era habitual, podendo conter iniciais
dos primeiros possuidores e data do grande evento.
5 - Os inícios da Europa Moderna eram marcados, ainda, por
rituais religiosos e seculares e apresentações de contos e cantigas.
6 - Os mitos não chegam a surgir dos rituais, como afirma uma famosa teoria do século XIX. Entretanto, ao que parece de alguns exemplos, o ritual às vezes realmente influencia o mito. Seu significado. Cita os exemplos de Robin Hood e são João Batista, mas traz este mais emblemático: Por que o santo ermitão Antônio (Abade) haveria de ser representado com um porco? Porque seu dia de festa cai em 17 de janeiro, época do ano em que as famílias matavam seus porcos.
7 - Sugere, ainda, que a Igreja medieval poderia adotar
festas pré-cristãs como suas. Por exemplo, o Solstício de Inverno, em 25 de
dezembro, foi meio que reinterpretado como o nascimento de Cristo. (e eu ando
fazendo uma re-reinterpretação, agora pós-cristã...).
Carnaval
8 - O Carnaval era a maior festa popular do ano, época privilegiada na qual o que muitas vezes se pensava poderia ser expresso com relativa impunidade. Nenhum era igual ao outro, ou seja, variava no tempo e espaço, porém, era possível ter uma ideia geral. Geralmente se dava em espaços ao ar livre, em que as principais ruas e praças se tornaram palcos para uma peça imensa. Atores e espectadores se misturavam e mesmo casas particulares eram “irrompidas” por mascarados.
9 - Além dos exageros nas comidas - existia até uma
Terça-Feira Gorda - e bebidas, outro elemento marcante eram as fantasias: Os homens se vestiam de mulher, as mulheres de
homem; outros trajes populares eram os de padre, diabo, bobo, homens e animais
selvagens, como, por exemplo, urso. Os italianos gostavam de se fantasiar como personagens da
commedia dell'arte, e Goethe comenta ter visto centenas de Pulcinellas no corso
de Roma. As pessoas inclusive representavam os papéis: "Um se faz de doutor em direito, e sobe e desce pelas ruas com o livro
na mão, discutindo com cada um que encontra." Insultos e versos satíricos
também eram comuns.
10 - Clubes ou confrarias organizavam na praça central
apresentações mais intermediárias entre algo sério e pura diversão, com maior
separação entre atores e espectadores, por exemplo, mas não tão “ensaiadas”
quanto se poderia pensar.
11 - Desfiles fantasiados, inclusive com espécies de
“carros alegóricos”, ocorriam em algumas cidades. Um segundo elemento eram as
competições, seja no ringue, na terra ou na água. Corridas de todo tipo faziam
sucesso. A pé, a cavalo, “de velhos” etc. O terceiro elemento eram as peças,
geralmente farsas, seja casamento simulado ou “cerco de assaltos” a castelo. O último ato da festa muitas vezes era uma
peça na qual o "Carnaval" enfrentava um processo simulado, fazia uma
falsa confissão e uma imitação de testamento, era executado de brincadeira, em
geral na fogueira, e recebia um funeral de gozação.
O “mundo de cabeça para baixo”
12 - Os três principais temas, reais e simbólicos, do
carnaval: comida, sexo e violência. Carnaval vem da palavra “carne”, o que
tanto tem a ver com comida quanto com sexo. Os açougueiros tinham papel
importante nos rituais. Quanto à atividade sexual, o movimento sazonal das
concepções mostra que o carnaval era uma época privilegiada para os prazeres da
carne.
13 - Cantigas de duplo sentido eram incentivadas. Em Nápoles, em 1664, as senhoras ficaram
chocadas ao ver um falo de madeira, com "o tamanho do de um cavalo",
carregado pelas ruas. As próprias máscaras pareciam claros símbolos
fálicos.
14 - Sobre a violência: Nessa
ocasião, a agressão verbal era permitida; os mascarados podiam insultar os
indivíduos e criticar as autoridades. Era a hora de denunciar o vizinho como
cornudo ou saco de pancada da sua mulher.
15 - Grupos armados e insultos que iam longe demais geravam
algumas tragédias. Por volta de 1800 foi
dito que "a média de ferimentos sérios ou mortais em cada grande festa em
Sevilha" era "cerca de dois ou três".
16 - Lévi-Strauss propõe procurar pares de opostos ao
interpretarmos os mitos, rituais e afins. A oposição Carnaval-Quaresma era a
mais nítida. A segunda era jejum e abstinência em vários sentidos. Era a
“desmancha-prazeres”. Outra oposição, menos óbvia, era como o Carnaval subvertia
o cotidiano. Era o mundo invertido. Simulava-se, em inúmeras situações, a
inversão das hierarquias sociais, familiares ou de gênero, por exemplo. Até
inversões homem-animal ou do mundo físico (cidades no céu e peixes voando) eram
simuladas.
17 - … Pois bem, em diversos momentos históricos de insurreições
camponesas e populares na Europa se assistiu a esse mesmo tipo de inversão
social. Depois da
Revolução Francesa, circularam duas estampas populares, uma com o nobre montado
no camponês, a outra com o camponês montado no nobre, com a inscrição "eu
sabia que estava chegando nossa vez”.
18 - As comédias carnavalescas apresentavam juiz sendo
posto no tronco e mulher triunfando sobre o marido, por exemplo.
19 - Outro símbolo sugerido pelo texto é o do rejuvenescimento.
Como um retorno à liberdade.
20 - O que é
claro é que o Carnaval era polissêmico, significando coisas diferentes para
diferentes pessoas.
O carnavalesco
21 - Importante notar que o Carnaval
não tinha a mesma importância em toda a Europa. Ele era forte na área
mediterrânica, Itália, Espanha e França, razoavelmente forte na Europa central,
e mais fraco no norte, Grã-Bretanha e Escandinávia, provavelmente porque o
clima desencorajava uma elaborada festa de rua nessa época do ano.
22 - Festas espaçadas no “período do carnaval” eram bem
fortes nessas cidades de carnaval “fraco” - embora não fossem um fenômeno
exclusivo delas - e um dos exemplos era a “festa dos Bobos”, na qual noviços
organizavam missas “de cabeça para baixo”, digamos, com clérigos com roupa de
mulher, segurando missal de ponta-cabeça, jogando cartas, comendo salsicha e
maldizendo a congregação em vez de abençoá-la.
23 - Assim, o “mundo de cabeça para baixo” também aparecia
nessas festas pré-carnaval. Podia haver, por exemplo, troca de roupas entre
homens e mulheres no Ano novo. Ademais, como
o Carnaval, os doze dias de Natal eram grandes ocasiões de se comer e beber,
para a encenação de peças e "desgoverno" de vários tipos.
24 - Em 5 de fevereiro, havia a festa de Santa Ágata.
Mulheres mandavam e homens obedeciam. É
como se os torturadores de santa Ágata, ao cortarem seus seios, tivessem-na
convertido numa amazona.
25 - Festas da primavera também apresentavam a inversão: Na Londres do século XVIII, os limpadores de
chaminé cobriam-se com farinha no dia Primeiro de Maio, exemplo mais claro possível
do ritual de inversão: o branco toma aqui o lugar do preto. Na Espanha, a
mesma data abrigava peças, batalhas e casamentos simulados.
26 - Mesmo as festas de caráter mais religioso, como Corpus
Christi, possuíam elementos carnavalescos, como carros alegóricos e sons
diversos.
27 - No norte e
leste da Europa, a noite de São João era uma festa particularmente importante
durante nosso período, fosse porque as reminiscências pagãs eram mais fortes ou
porque os rituais públicos que ocorriam no Carnaval em países mediterrânicos e
em Maio na Inglaterra ficariam melhor nesses climas mais frios se adiados para
junho.
28 - Relatava-se, na Inglaterra, “igualitarismo
carnavalesco” em certas festividades. Criado e patrão se sentando à mesma mesa,
conversando e dançando pela noite. Isso na ceia da colheita.
29 - As
execuções públicas, a "entrada" solene de pessoas importantes na
cidade, a comemoração de vitórias (ou coroações, ou ainda o nascimento de
filhos dos reis) e, pelo menos na Inglaterra do século XVIII, as eleições
parlamentares, eram todas elas ocasiões carnavalescas.
30 - As execuções, por exemplo, visavam, no dizer dos
entusiastas de sua espetacularização, mostrar que o crime não compensa. Logo,
havia desfile, eventuais discursos de arrependimento do condenado perante à
platéia, e o ritual de tortura e execução em si mesmo. Os castigos públicos
mais brandos não evitavam, porém, que a multidão praticasse habitual escárnio
ou mesmo atirasse pedras e lama. Ocorria, porém, de, em alguns casos, a
multidão manifestar simpatia para com o condenado.
31 - Também eram populares os charivaris, serenatas de
gozação que serviam em diversas situações, seja para expulsar coletor de
imposto da cidade, seja para caçoar de quem estivesse casando pela segunda vez.
Desencorajar transgressões aos costumes era um objetivo habitual.
32 - É possível concluir, segundo o próprio autor, que toda
festa era um carnaval em miniatura, mesmo as religiosas, uma desculpa para a
realização de desordens, pouco lembrando “graves
rituais sóbrios”.
Controle social ou protesto social?
33 - Mitos e rituais, segundo antropólogos sociais, podem
representar determinadas funções sociais sem que seus participantes tenham consciência
disso. Assim sendo, podiam expressar rivalidades reais ou solidariedade
comunitária, por exemplo. Fazer com que as mulheres solteiras
empurrassem um arado pelas ruas durante o Carnaval era uma maneira de
incentivá-las a encontrar marido.
34 - O texto traz um curioso exemplo de uso direto de um
ritual como controle social: O uso do ritual no conflito social se mostra
ainda mais claramente em Palermo, em 1647. O conflito foi desencadeado por um
aumento no preço do pão. Uma multidão dirigiu-se para a casa de um funcionário
público impopular, para atear fogo a ela, e conseguiu despedaçar as janelas,
ação que podia ser interpretada como expressão do seu furor, mas também como
uma tentativa de pressionar o governo por vias não oficiais, mas costumeiras. A
multidão foi detida por alguns frades carmelitas, que se dirigiram a ela
carregando a hóstia, de modo que todos tiveram de cair de joelhos.
35 - Para o antropólogo social Max Gluckman, a “liberdade
no ritual”, com consequente suspensão dos tabus e restrições normais, acaba
servindo para reforçar estes mesmos. São protestos aparentes. Reforçam a ordem
estabelecida. Gluckman chega a sugerir
que, onde a ordem social é seriamente questionada, não ocorrem "ritos de
protesto". As classes dominantes permitiriam tudo isso até por saber
da utilidade dessa “válvula de segurança”, coloca Burke. O texto traz inclusive
citações da época defendendo o mesmo ponto de vista.
36 - Mais elementos a favor da teoria de Gluckman e outros:
O julgamento, execução e enterro do
"Carnaval" podiam ser interpretados como uma demonstração ao público
de que se encerrara o prazo de êxtase e liberdade, e que se devia fazer
"um retorno sóbrio" à realidade cotidiana. As comédias, (...)
construídas em torno de situações de inversão, como o juiz no tronco,
frequentemente terminam de modo parecido, com um lembrete aos espectadores de
que é hora de se pôr novamente o mundo em seu lugar.
37 - Entretanto, seria errado conceber os rituais apenas
como controle. Tanto é que por vezes eram cancelados ou temidos. No dizer de um
nobre do século XVII, "sob o
pretexto dessas aglomerações do povo para esses espetáculos ridículos, espíritos
facciosos” poderiam ser “capazes
[...] de incentivar algum novo motim".
38 - Era também comum que motins e revoltas reais reproduzissem, agora a sério, certos rituais aos quais seus participantes já estavam habituados. Charivaris e estandartes religiosos estiveram presentes em eventos do tipo, por exemplo. Ademais, os motins e rebeliões frequentemente ocorriam por ocasião das principais festas. Na Basileia, por muito tempo lembrou-se o massacre que ocorreu na Terça-Feira Gorda de 1376, que ficou conhecido como böse Fastnacht ("mau Carnaval"), assim como os londrinos se lembravam do "evil May Day" de 1517 que se tornou um motim contra os estrangeiros. Cita vários outros exemplos.
FIM
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