A explicação dessa “degenerescência” está noutra tese trotskista, a da “degenerescência burocrática das
organizações operárias”: a “exploração capitalista” estimula o desenvolvimento político do proletariado (já que o leva a lutar contra o sistema, e por isso
a criar sindicatos, partidos, etc.) mas retarda o seu desenvolvimento cultural (já que a pobreza e/ou a submissão a um trabalho embrutecedor tenderão a “embrutecer” também o espírito
do trabalhador). Tal leva a que, nas organizações operárias de massa, tendem a surgir “dirigentes profissionais” (“burocratas”, no jargão trotskista), que acabam por ser
os verdadeiros chefes, enquanto que os elementos de base (devido ao tal “embrutecimento espiritual”) se remetem, na maior parte do tempo, a uma posição passiva, em que se limitam a pagar quotas e
a seguir as ordens da “Direcção” (no fundo, transferem para a organização operária os hábitos de submissão à hierarquia a que estão habituados na empresa
capitalista).
Ora, num país pobre (como a Rússia em 1917), o “desenvolvimento cultural” do proletariado será ainda mais diminuto, pelo que no “Estado Operário”
irão (tal como nos sindicatos e partidos operários) também surgir os tais “burocratas”[5]. Aliás, segundo os trotskistas, a longo prazo, só há dois caminhos possíveis
– a burocratização do Estado ou o desaparecimento gradual do Estado: ou a pobreza e o atraso cultural mantêm-se, impedindo o proletariado de poder assumir efectivamente a gestão do Estado;
ou, pelo contrário, a sociedade vai evoluindo, tornando mais fácil a tal “gestão do Estado pela simples cozinheira”, mas, ao mesmo tempo, tornando também o Estado menos necessário,
já que, havendo menos escassez de bens, haverá também menos necessidade de um aparelho repressivo (ou seja, quando for possível um Estado 100% democrático, em que todos participem em plena
igualdade nas tomadas de decisão, já nem sequer será necessário um Estado).
(...)
Assim, nos “Estados Operários” (sobretudo se forem muito atrasados à partida), há duas tendências em confronto: por um lado, há a tendência
para os burocratas irem concentrando o poder nas suas mãos e remeterem as massas a uma situação passiva; por outro, a elevação gradual do nível de desenvolvimento económico
e cultural (e, se possível, o triunfo de revoluções operárias no estrangeiro) tenderá a estimular a participação popular e a enfraquecer o aparelho estatal. Desta forma, a “construção
do socialismo” não é um processo mecânico e linear (como, frequentemente, está implícito em muitos “estalinistas”), mas um caminho com avanços e recuos, em que a vitória
só estará assegurada com a criação de uma sociedade comunista à escala mundial e com o desaparecimento do Estado (até lá, há sempre o perigo de uma contra-revolução
burocrática).
Além disso, a relação entre a burocratização e desenvolvimento é bilateral: tal como o atraso estimula a burocratização,
também esta prejudica o desenvolvimento – segundo os trotskistas, a única alternativa eficiente ao mercado é a “democracia operária”[6]. P.ex, se for um patrão privado a
organizar o trabalho dentro de uma empresa, tenderá a adoptar os processos de trabalho mais eficientes (para maximizar o lucro); se for uma Comissão de Trabalhadores a fazer isso, também tenderá
a adoptar os processos de trabalho mais eficientes (para os trabalhadores fazerem mais facilmente o seu trabalho); se for gerida por um burocrata não-proprietário, não há nenhum incentivo para escolher
os melhores métodos de trabalho. (...)
Outro exemplo: a questão “O que produzir?” – como assegurar a ligação entre os que as empresas produzem e as necessidades dos consumidores?
No capitalismo, tal ligação faz-se pelo mercado; na “democracia operária”, através da participação das organizações de trabalhadores e consumidores na elaboração
do plano económico (Trótski chegou a dar o exemplo de um sistema em que os cidadãos pudessem escolher entre o “partido do carvão” e o “partido do fuelóleo”); já
no sistema burocrático, em que a planificação é feita, não pelas organizações populares, mas por comités de “especialistas”, não há maneira
de assegurar que o plano corresponde às necessidades efectivas da sociedade (a respeito disso, Trótski escreveu que “a democracia, mais que uma necessidade política, é uma necessidade económica”).
Desta forma, quanto mais poderosos forem os burocratas, mais atrasada será a sociedade (o que, aliás, acabará por tornar os burocratas ainda mais poderosos).
Logo, se uma revolução proletária triunfar num país atrasado e não receber o auxílio de revoluções em países
desenvolvidos, o poder da burocracia atingirá dimensões consideráveis, podendo chegar a um ponto em que já não é possível lutar contra a burocratização dentro
do sistema, sendo necessária uma nova revolução operária para restaurar o poder dos “Conselhos de Trabalhadores” (segundo Trótski, esse ponto de não-retorno – a que
ele chamou o “Thermidor”, por analogia com a Revolução Francesa – teria sido atingido na URSS em 1927). Por outro lado, se a nova revolução operária não ocorrer,
o que irá acontecer será uma “contra-revolução social”: a ineficiência económica do sistema burocrático e o desejo dos burocratas consolidarem a sua posição
(passando de “administradores” a “donos”) irá levá-los a restaurar a propriedade privada dos meios de produção e o capitalismo.
(...)
Desta forma, a opinião dos trotskistas era que os regimes do Bloco de Leste (“estados operários burocraticamente degenerados”) seriam “regimes transitórios”[7],
intrinsecamente instáveis, estando à beira de serem derrubados, ou por uma “contra-revolução social”, que restaurasse o capitalismo; ou por uma “revolução politica”[8],
que derrubasse o poder dos burocratas e do Partido Comunista e instaurasse a democracia dos “Conselhos de Trabalhadores”, em moldes multipartidários.
(....)
Muitos dissidentes do trotskismo (Castoriadis na França) criticaram esta tese, argumentando que os burocratas eram, para todos os efeitos, como se
fossem proprietários, já que eram os “donos” do Estado e, portanto, indirectamente, da economia (logo, já não teriam necessidade de restaurar o capitalismo) – um dos mais célebres
defensores desta tese foi o escritor George Orwell (nalguns aspectos, muito próximo do trotskismo), que a expôs nos seus romances “A Revolução dos Bichos” e “1984”.
O colapso de 1989 não resolve a questão, mas aponta elementos importantes: Embora a tese trotskista do “regime transitório” assinalasse que
se a revolução não avançasse provavelmente esses regimes cairíam muito cedo (uns meses antes de ser assassinado, Trótski escreveu que, se o regime estalinista sobrevivesse à
II Guerra Mundial, seria necessário rever as suas teses, coisa que os trotskistas não fizeram).
Por outro lado, errou-se apenas no tempo ("prazo") e foi necessário um duro processo de privatizações e apropriação individual
dos meios de produção por parte das "Castas dirigentes" na URSS e em outros países do Leste nas décadas de 1980-90, processo que comprovaria o facto de que estas "burocracias"
não eram "donas" da economia, mas passaram a sê-lo com a restauração do capitalismo (vide exemplos da Rússia onde actualmente ex-dirigentes do Partido Comunista se tornaram os maiores
proprietários capitalistas do país, como previra Trótski).
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