Esquerdistas - Textos Diversos VI - Questões Éticas no Mundo Globalizado (Mance)
Euclides André Mance - Questões Éticas no
Mundo Globalizado:
60 - Analisa Mises. Este considera
inadequado não poder dizer que um homem seja livre só porque existem leis que o
obriguem a não matar, por exemplo. Assim,
podemos definir liberdade como o estado de coisas no qual a faculdade de o
indivíduo escolher não é mais limitada pela violência do governo do que o
seria, de qualquer forma, pela lei praxeológica.(...)
61 - Crítica bem empregada de Mance: Se enfatizarmos que um homem é livre na
medida em que pode escolher os seus fins e os meios a empregar para atingi-los,
teremos que concluir que Mises considera a liberdade como um atributo
subjetivo. Em outras palavras a liberdade de um homem não significa poder
realizar suas escolhas em seu relacionamento interhumano, mas tão somente
escolher. O torturado, sob esse aspecto, é livre na medida em que pode escolher
sair da prisão e viajar para um país longínquo em que possa viver com
segurança, sem fornecer qualquer informação desejada pelo torturador. Embora
possa escolher o fim (por-se a salvo) e o meio (viajar ao exterior), contudo,
não o pode realizar. (...) estamos na situação de que a liberdade de um somente
pode ser exercida dependendo de como o outro exerce sua liberdade
possibilitando que algum modo de ação alternativo possa ser ou não efetivado.
62 - O problema da praxeologia de Mises e
sua tentativa de escapar à falseabilidade (Popper): Mises parte do pressuposto formal e, filosoficamente, frágil de que o
conhecimento cientificamente válido é o que resulta de um único modelo não
contraditório e que, portanto, não permita ambivalências. Ele não aceita que
modelos divergentes e contraditórios possam simultaneamente produzir
conhecimentos válidos sobre um mesmo fenômeno. Esta suposição dará margem a
considerar que somente um modelo de análise praxeológica é correto e que tudo o
que o contradiga seja irracional. Os limites de seu modelo de análise podem ser
considerados evidenciando-se a fragilidade de sua afirmação de que "a
liberdade de um homem é rigidamente restringida pelas leis da natureza".
Com efeito, a natureza possui propriedades que cientificamente são
compreendidas a partir de modelos - em geral divergentes ou concorrentes - que
permitem a formulação de leis. Entretanto não é a natureza que se submete a
essas leis, são estas que buscam possibilitar a interferência humana sobre os
eventos naturais. Assim, quanto mais o homem aprimora seus conhecimentos sobre
a natureza, formulando hipóteses e leis que permitam interferir sobre ela com
margens seguras de probalidade, mais a liberdade humana se amplia em poder
interferir sobre ela ou escapar de suas interferências.
63 - Em resumo, as leis da natureza não
são tão pesadas assim.
64 - Mais crítica: De outro modo, se por "leis da praxeologia" o autor entende
que as ações humanas necessariamente estão submetidas as certas regularidades -
como no caso dos fenômenos da natureza - então não poderia haver casos
particulares de discrepância de tais leis.
(...) Se alguns fenômenos tendencialmente regulares no campo da economia
podem ser invocados como leis praxeológicas, isto, contudo, nada garante sobre
a validade das deduções que se pretendem justificar a partir do modelo adotado
por Mises, uma vez que o aparente movimento regular do sol, da lua e das
estrelas em torno da Terra poderia justificar um modelo geocêntrico de
gravitação que é, como tal, insustentável. Não sendo pois leis nos dois
sentidos que uma analogia com a física poderia permitir, parece mais adequado
considerar as leis praxeológicas formuladas por Mises como sendo normas
práticas de conduta, às quais se pretende empostar uma vigência universal.
65 - Embora
Mises destaque que "o liberalismo não é uma doutrina completa nem um dogma
imutável", mas pelo contrario "a aplicação dos ensinamentos da
ciência à vida social do homem", seu modo de legitimar as teses liberais
invocando as leis praxeológicas que adviriam de uma análise científica da
sociedade - que teriam a mesma precisão que as leis da física em antever as
conseqüências de longo prazo das condutas humanas - não deixam margem a
modificações nos elementos básicos do modelo.
66 - Por que a igualdade perante a lei
que Mises defende (já que este vê os homens como essencialmente desiguais)? : a) porque somente quando o trabalhador é
livre e recebe os frutos de seu trabalho na forma de salário ele se empenha ao
máximo no serviço, atingindo-se a mais alta produtividade possível no trabalho
humano; b) porque é necessária à manutenção da paz social, evitando-se
perturbações no desenvolvimento pacífico da divisão do trabalho.
67 - Necessidades reais e virtuais: Hoje, entretanto, em nossa sociedade, todos
nós necessitamos da energia elétrica a cada instante, e a maioria de nós também
necessita do telefone, pois sem ele não conseguiríamos atingir, com facilidade,
certos objetivos que estabelecemos em nossa rotina. Por outro lado, é
perfeitamente possível viver sem tomar Coca-Cola ou Pepsi-Cola, substituindo-as
pela ingestão de água, de outro refrigerante ou de qualquer líquido potável.
Objetivamente outro líquido, nestas condições, pode cumprir a mediação
digestiva ou hidratante desempenhada por esses dois produtos. Entretanto
objetivamente seria bem mais difícil substituir um telefonema por uma carta ou
uma visita, ou prescindir da energia elétrica. Certos desejos, contudo, podem
se transformar em necessidades virtuais - como a necessidade de um adolescente
brasileiro de classe média possuir um boné importado para receber o
reconhecimento social de seu grupo de amigos, ou a necessidade de uma estudante
secundarista japonesa em consumir roupas de grife pelo mesmo motivo.
66 - Habermas e sua teoria da ação
comunicativa enfrentam, segundo Mance, e não resistem ao problema da
racionalidade cínica: A política liberal
de privatização de setores estratégicos, em economias periféricas, em nome da
ampliação de serviços do estado na área social é um exemplo claro disso. O
Estado perde cada vez mais o papel de coordenador da economia, ao passo que
seus serviços na área social também se deterioram. Tais acordos - sob protestos
populares nas ruas - são não apenas fruto de um acordo comunicativo, mas
expressão de uma racionalidade cínica que restringe os exercícios das
liberdades públicas, ampliando o exercício da liberdade de certos grupos
privados que detém vultosas somas de capital.
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