Esquerdistas - Textos Diversos IX - Democracia Domesticada (Luis Felipe Miguel)

 (continuação...)

90 - Michels veio da esquerda (antes de chegar no fascismo), então é mais original: Enquanto Pareto e Mosca não se detinham em casos concretos (faziam grandes teorizações e depois pinçavam na história os exemplos que julgavam adequados), Michels adotava o percurso inverso. A partir de um único estudo de caso, o SPD, ele fez uma grande generalização. O núcleo de sua tese é que qualquer tipo de organização caminha para a burocratização. Aqui, ele fica com Mosca: a massa, o grande número, é incapaz de se organizar. Quando resolve fazê-lo, deve fatalmente constituir um pequeno comitê para dirigi-la. Isto é a burocratização: não há mais um movimento espontâneo de massa, e sim algo com uma hierarquia, com regras, com disciplina.  O poder, em Michels, é sempre conservador. O líder político, chegando lá, não quer perder seu ganha-pão. Não quer dissolver o poder ou o partido. A essa construção teórica, ele deu o nome de “lei de ferro da oligarquia”. Segundo ela, toda organização gera uma minoria dirigente, com interesses divergentes dos de sua base.

91 - Como a democracia foi domesticada? “... numa reviravolta notável, uma importante corrente da teoria democrática vai aceitar o argumento elitista como pressuposto. É a tese da “democracia concorrencial”, cujo pai é o economista austríaco Joseph Schumpeter.” (...) Capitalismo, Socialismo e Democracia é a única obra sociológica de Schumpeter. A reformulação da teoria democrática está restrita a três capítulos (do XXI ao XXIII), sem dúvida os mais lidos do livro. Ele começa demolindo o que chama de “doutrina clássica da democracia”, na verdade um mix não muito equilibrado de autores clássicos e senso comum, que une Rousseau ao utilitarismo. Já foi demonstrado que a doutrina clássica é um mito, que Schumpeter reuniu e distorceu autores incompatíveis entre si para gerar um espectro contra o qual lutar.

92 - Cita que estudos sociológicos da época subsidiaram, com suas conclusões, a teoria schumpeteriana: “... a democracia representativa não encontra eleitores como seu modelo ideal esperaria. Os cidadãos não sabem decidir, não estão dispostos a se informar e não se preocupam em avaliar as conseqüências de seus atos.”

93 - Em Schumpeter, os seres humanos são incapazes de se preocupar com escolhas sobre a coletividade, ainda que sejam afetados, e, por isso, escolhem mal. Há quem use fundamentação diferente, mas pra chegar na mesma conclusão: Mais tarde, Mancur Olson (1971:11) vai argumentar que a incompetência do cidadão comum para a tomada de decisões políticas decorre não de sua irracionalidade, como julga Schumpeter, mas de sua racionalidade. Para ele, o indivíduo racional é aquele que faz o cálculo de custo-benefício em suas ações. Como o peso do voto individual em uma eleição é ínfimo, simplesmente não vale a pena cobrir os custos (em termos de esforço, tempo e mesmo dinheiro) de obter informações. De uma forma ou de outra, ambos chegam à mesma conclusão: o povo não sabe tomar decisões políticas.

94 - Para Schumpeter, a democracia é útil como substituta da legitimação tradicional, que vinha sendo corroída. Ela se resumiria ao voto mesmo e este se presta a escolher qual elite vai governar. Fica tudo uma “competição de elites” pelos votos da massa. É uma espécie de democracia cínica, que se sabe que tem muito pouco ou nada de governo do povo. Para o austríaco, é a melhor democracia possível. Luis Felipe observa que “ao votar, o povo não decide nada, mas pensa que está decidindo – e, por isso, dispõe-se a obedecer aos governantes”. A eleição não é mais um meio de realização da democracia, mas ela própria.

95 - No famoso relatório à Comissão Trilateral, Huntington (1975a) chegou à conclusão de que, justamente por causa disso, as democracias são “ingovernáveis”: cada vez que o Estado atende a uma demanda popular, incentiva a apresentação de novas e mais extravagantes exigências. “Ingovernável”, mas indispensável como fator de legitimação, a democracia estava em uma encruzilhada. O neoliberalismo foi a solução encontrada, fazendo o Estado, regulador ostensivo e suscetível a reivindicações, recuar diante do mercado, regulador oculto e impermeável ao controle democrático (Gorz, 1996:25).

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