Filosofia - Textos Diversos LII - Maria Rita Kehl - Fetichismo

 

Maria Rita Kehl - Fetichismo:

243 - Então, não é o predomínio da imagem sobre a personalidade, ou da aparência sobre a “essência”, que caracterizam a sociedade contemporânea. O que nos diferencia hoje de outros períodos da modernidade é a espetacularização da imagem, e seu efeito sobre a massa dos cidadãos indiferenciados, transformados em platéia ou em uma multidão de consumidores da (aparente) subjetividade alheia.

244 - Sempre quando leio sobre Freud (e é a milésima vez) só consigo pensar: será? Como ele chegou a essas conclusões? Mas um dia o menino – e neste ponto, é importante que seja o menino – descobre, de um jeito ou de outro, o sexo da mulher. Não de uma menina, sua irmã ou amiguinha de escola, cuja falta de um órgão sexual igual ao dele ele pode racionalizar imaginando que “ainda vai crescer”, ou que “ela perdeu porque se comportou mal” (este é o primado do falo sustentado pelas tais teorias sexuais infantis que Freud descobriu, isto mesmo, descobriu, e não inventou, escutando não tanto as crianças como, principalmente, as fantasias inconscientes dos neuróticos adultos). Voltando: um dia o menino percebe, aterrorizado, que também sua santa e poderosa mãe possui um corpo meio esquisito, e que ali onde deveria existir um órgão grande e perfeito (como o dele, mas também como o do pai), não existe absolutamente nada.

245 - Para resolver a angústia da castração, alguns criam um fetiche, sejam os pés, borda das saias ou a calcinha, para esconder o que sabemos. Vira o objeto de desejo. Não querem saber do sexo da mulher mesmo que façam.

246 - O privilégio dos perversos em relação aos neuróticos e psicóticos: os perversos conseguem uma solução conciliatória: dividem o próprio psiquismo, isolando uma pequena evidência insuportável – que eles já conhecem, mas da qual não querem tomar conhecimento – e organizam suas vidas, isto é, seus sistemas de trocas libidinais, de modo a manter esta pequena percepção desconfortável fora de seu alcance. Este mecanismo, Freud batizou de denegação.

247 - O segredo funciona nos dois casos, mas com uma diferença: enquanto o neurótico não sabe e sabe que não sabe (e se pergunta, o tempo todo, como o Swann das memórias de Proust, atônito diante do fascínio que sentia por Odete de Creci - “o que foi que eu vi nela? como é que eu fui me apaixonar desta maneira por uma pessoa tão comum?”), o perverso funciona como se soubesse, elege um objeto como prova de seu saber (sobre o desejo), tentando com isto ignorar o que já sabe – a diferença, a castração. Este objeto funciona pela vida afora como mediador de suas trocas eróticas com seus semelhantes, homens ou mulheres, e também como organizador de suas cenas masturbatórias.

248 - Os perversos, hoje, não são mais exceção em relação aos neuróticos.  O imperativo do gozo substituiu a interdição do excesso.

249 - Como o perverso da parábola freudiana, o cidadão ideal da sociedade de consumo acredita que possui e domina o objeto do desejo, uma série infindável deles, e que assim está livre da condição de desejar o desejo do Outro.

250 - Fetichismo da mercadoria não é saber que ela foi produzida pelo trabalho humano. Isso sabemos desde nossas formas comunais. Queremos esconder outra coisa. Que isso mudou: O que a mercadoria oculta, o seu “segredo” segundo Marx, não é a coletividade e sim o seu desaparecimento. Não é o esforço do trabalhador, mas sua expropriação. (...)  Os sujeitos que intercambiam mercadorias, e que medem o valor de umas pelas outras, assim como se medem uns pelos outros e terminam por medir seu próprio valor pelo valor das mercadorias que trocam, precisam acreditar que mercadorias significam riqueza – mas para isto precisam esquecer (tal qual o fetichista freudiano: “eu sei, mas não quero saber”) o que elas escondem, e o que eles mesmos, “enquanto processo sócio-individual, incluíram nelas como objetivação de suas qualidades subjetivas-sociais”.

251 - Fala sobre Ronaldo na Copa: Minha hipótese é de que as sociedades do espetáculo, que é a forma pós-moderna das sociedades capitalistas, tiveram que efetuar um retorno das propriedades do fetiche: dos objetos para os corpos humanos. Ou melhor: para os corpos de alguns seres humanos. Não que o objeto não seja mais usado, mas a imagem humana foi agora adicionada com sucesso à fetichização.

252 - O dinheiro, mercadoria universal por excelência, produz uma nova metafísica da vida humana: alguns salários são irrecusáveis. Portanto, certas ofertas, partindo de multinacionais capazes de concentrar capital suficiente para efetuá-las, selam o destino da vítima, assim como os desígnios de Deus determinaram o sacrifício do filho de Abraão.

253 -  Eu espero que o outro detenha a chave do enigma de meu desejo, sem perceber que o que ele me devolve é esta mesma dependência em relação a mim. Assim se estruturam as relações de servidão voluntária, calcadas na esperança de que o outro se encarregue da precariedade do sujeito. “Por exemplo”, escreve Marx: “um homem só é rei porque outros homens colocam-se numa relação de súditos com ele. E eles, ao contrário, imaginam ser súditos por ele ser rei”. É como se “ser rei” fosse intrínseco ao sujeito e não relacional.

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