Cap. V do 'A Sociedade de Corte' (ELIAS, Norbert)

 

FICHAMENTO (não fui eu quem fiz)

 

 

Cap. V – “Etiqueta e Cerimonial: comportamento e mentalidade dos homens como funções da estrutura de poder de sua sociedade”. In: A Sociedade de Corte: Investigação Sobre a Sociologia da Realeza e da Aristocracia de Corte. ELIAS, Norbert. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

 

 

            1 - O texto inicia narrando o lento processo de deslocamento do centro de gravidade da vida social, que, em Luis XIV, era a própria corte, dos palácios (e depois também os “hôtels” dos aristocratas que não eram príncipes) para a cultura de salão, na qual o convívio social e a cultura da alta sociedade já chegavam aos “hôtels” dos financistas. Mais tarde, a Revolução Francesa detonaria toda essa estrutura fragilizada. Com o Império, porém, a Corte de Napoleão foi o centro da “boa sociedade”, ainda que bem diferente da original no estilo de vida e refinamento.

 

            2 - Luís XIV prezava para que a alta nobreza ficasse o máximo de tempo possível nas dependências do Palácio de Versailles. Podia hospedar cerca de dez mil pessoas, incluindo a criadagem. Havia, no palácio, símbolos da posição de poder do rei. O “valor de uso” dos bens ficava em segundo plano em relação ao “valor social de prestígio” (pg. 99). Daí todo o exagero no tamanho do pátio de entrada.

 

            3 - As funções de soberano do país e a de senhor da casa estavam fundidos na figura do rei. O aposento central do primeiro andar era o seu quarto de dormir. O mero despertar do rei, por exemplo, era, na realidade, um grande ritual com inúmeros passos e hierarquias a serem respeitados. Grupos diversos da corte tinham a sua devida ordem de entrada e alguns privilégios eram mais disputados que outros, a exemplo do “sexto tipo de entrada” (pg. 101), que envolvia poder entrar a qualquer hora nos gabinetes do rei, salvo exceções bem específicas. Até mesmo o ato de ajudar o monarca a vestir sua camisa ganhava o valor de privilégio.

 

            4 - As concessões para participar das “entradas” não tinham “nenhum objetivo prático” (pg.102). Tratava-se de um “valor de prestígio”. Com o tempo, já com a saída de Luís XIV, todos esses rituais vazios - o texto cita também o exemplo do despertar da rainha - foram se tornando até mais importantes que a suposta função precípua de cada ato. Vestir a rainha chegava a ser secundário em relação a quem terá o privilégio de vestí-la (pgs. 103-104). A etiqueta e o cerimonial se tornaram, assim, verdadeiros motos-contínuos. Todos os participantes temiam mexer nessa estrutura de privilégios mesmo que odiassem as obrigações. Afinal, qualquer reforma mínima poderia ter o risco de abalar a base de sustentação dos privilégios como um todo. Os “níveis superiores” receavam serem igualados aos “inferiores”, logo, qualquer alteração era delicada.

 

            5 - Luís XIV, embora não o tenha criado, usava o cerimonial como instrumento de dominação, utilizando-se das margens de manobra dos ritos ainda não petrificados para passar mensagens implícitas. A etiqueta ainda não era, portanto, um moto-perpétuo (p. 105).

 

            6 - Embora houvesse hierarquia inclusive jurídica entre os duques, por exemplo, nem sempre a antiguidade era, por si só capaz de garantir melhor reputação. A posição real na corte era uma combinação da vigente com a de nível oficial. Os cortesãos tinham que, assim, no mínimo acompanhar as oscilações na ordem hierárquica. Isso porque “era perigoso comportar-se de modo hostil em relação a alguém cuja trajetória na corte estivesse em ascensão.” (p. 108).

 

            7 - A “racionalidade” própria a aristocracia de corte tem a ver com o cálculo das chances de poder através do prestígio e status. Nas relações, era necessário saber quem “estava em alta” na cotação, pode-se assim dizer, para fins de comparação com a racionalidade burguesa no mercado financeiro. Não se tratava, porém, de uma questão necessariamente financeira, o que pode levar a que se fale, erroneamente, em absoluta irracionalidade das disputas entre os nobres. Assim, o texto critica a “ficção” do “racional” e “irracional” absolutos.  (pg. 109).

 

            8 - Norbert Elias rejeita as explicações que reduzem a “racionalidade” da corte a mero “anseio de dominação”, conforme se costuma extrair da psicologia individual (pg. 110). Hoje toda essa questão assume uma aparência de luta por frivolidades porque existe o dinheiro como espécie de mediador hierárquico. Naquela época, entretanto, com a burguesia ainda não dominante, fatores como posição e reputação, medidos pelos privilégios da corte, eram os definidores do valor social do indivíduo ou família.

 

            9 - A opinião social funda a existência da “boa sociedade” e do pertencimento de um indivíduo a esta. O próprio conceito de “honra” expressava a participação de um sujeito em uma sociedade nobre. Se um nobre deixava de ser reconhecido como tal pela “boa sociedade”, que podia ter inclusive uma espécie de “tribunal de honra” (pg. 112), poderia preferir perder a vida a ter que vivê-la sem a distinção para com as camadas inferiores.

 

            10 - A “boa sociedade” inglesa era notadamente mais pluricentrada (a sociedade de corte era menos o núcleo integrador das elites que o parlamento, por exemplo), porém, também lá, havia o “mercado de opiniões” (pg. 113), com todos se avaliando mutuamente. Já na Alemanha, praticamente não havia uma elite central unificadora do comportamento e organizadora do intercâmbio das opiniões públicas sobre a “honra” de cada pessoa. Esse papel era cumprido de forma mais diversificada pelas “boas sociedades locais” (pg. 114), regimentos de oficiais e associações de estudantes socialmente significativos.

 

            11 - Também eram características da nobreza alemã, ainda que esta fosse descentralizada e que a “Society” de Berlim (pg. 115) em nada se comparasse à de Londres no que diz respeito à primazia destas sobre as sociedades das demais localidades da mesma nação: a) uma educação destinada a valorizar a complexa hierarquia aristocrática; b) controles rígidos de registros genealógicos; c) exclusivismo inclusive em relação aos burgueses.

 

            12 - Ainda sobre a Alemanha, ressalte-se que havia, apesar de toda a heterogeneidade das suas “boas sociedades”, uma “rede de associações relativamente conhecida, e cujos membros podiam exigir uma reparação pelas armas”, sendo que “esse aspecto os separava das camadas inferiores, da massa daqueles a quem não era preciso dar satisfação” (pg. 115).

 

            13 - Aos nobres do Antigo Regime, para manter sua distinção social em relação às camadas inferiores, não restava outra solução que não competir pelas “chances de prestígio hierarquizadas”. Não era, portanto, qualquer prestígio, eis que a sociedade se organizava em gradações hierárquicas precisas. Quanto aos fatores que poderiam ser usados nessa “luta”, pode-se listar vários: nível social, cargo herdado, antiguidade da “casa”, dinheiro, influência sobre pessoas específicas, participação em “panelinha”, liderança no exército, as boas maneiras ou até a beleza do rosto (pg. 117).

 

            14 - A etiqueta é, assim, a “auto-apresentação da sociedade de corte”. É a confirmação de um prestígio por meio do comportamento. É o que permite que um cortesão tenha identidade individual (pgs. 117 e 118). Para um cortesão, o primordial não era dinheiro - não se trata de “ethos econômico disfarçado” - ou exercer alguma função de domínio, mas sim a distinção em relação à nobreza provinciana desprezada, à nobreza administrativa e ao povo.

 

            15 - A competição por prestígio fazia com que observação e descrição de pessoas se tornasse praticamente uma arte. Não se tratava de observar o indivíduo isolado de seu contexto social, mas sim sua relação com os demais. O objetivo era tentar descobrir os reais motivos e impulsos do comportamento de cada membro da corte. Em tal jogo, também a auto-observação era necessária, agora a fim de esconder e controlar as paixões e emoções.

 

            16 - A concorrência no âmbito interno da corte formou, antes mesmo da concorrência capitalista, a noção do egoísmo enquanto força motriz da ação humana. Era uma espécie de guerra velada de todos contra todos pelas posições de prestígio. A arte da dissimulação envolvia saber lidar com as pessoas. Quem estava em posição relativamente inferior necessitava ser um bom “estrategista da conversação”, especialmente se pretendia alguma intervenção concreta do interlocutor na distribuição dos privilégios. A regra era falar de si próprio sem “nunca falar de si próprio”. Diferentemente do que ocorre na cultura profissional-burguesa, o “como” de um procedimento muitas vezes era mais relevante que o “o que”. (pg. 124)

 

            17 - Na sociedade de corte, como todos dependem de todos e reputação é uma moeda valiosa, a prudência e reserva são elementos necessários em todo encontro. Ademais, “todo relacionamento nessa sociedade é duradouro”, logo, as consequências também. Assim, percebe-se uma diferença relevante na comparação com o profissional burguês, para quem as pessoas só interessam no máximo secundariamente. Predomina, na sociedade burguesa, o “caráter geral efêmero e mutável das relações entre as pessoas” (pg. 125).

 

            18 - A racionalidade da sociedade de corte exige, portanto, bastante cálculo e elaboração meticulosa em diversos âmbitos: a etiqueta, o cerimonial, os gostos; as vestimentas; a atitude e mesmo a própria conversa que se vai ter. Uma descarga emocional, que revele demais os sentimentos, é entendida como um sinal de inferioridade, que é o maior temor de um cortesão. Todos esses aspectos importavam não só para simbolizar status, mas também marcar diferenciações entre os próprios membros da sociedade.

 

            19 - As características da sociedade de corte francesa adentravam até mesmo o terreno das artes. O “classicismo” foi marcado pela “ausência de qualquer adorno não-planejado, de qualquer espaço para sentimentos fora de controle” (pg. 127). No teatro, as conversações e declamações para a solução de problemas conhecidos prevaleciam sobre a ação propriamente dita.

 

            20 - Também o classicismo alemão apresentou, a seu modo ligeiramente modificado, influências da cultura da sociedade de corte. Estavam presentes a serenidade, moderação nas emoções e o ar solene dos cortesãos.

 

            21 - A corte e a “boa sociedade” foram “as últimas formações sociais relativamente fechadas em que os homens não trabalhavam nem faziam contas” e, graças ao rentismo, se ocupavam de assuntos e práticas que, na sociedade burguesa, foram relegados ao campo privado (pg. 129).

 

            22 - No Antigo Regime, as regras de etiqueta, mais que prazeres ou meras ocupações (como na sociedade burguesa), eram exigências da vida social. Era o sinônimo de êxito social, o que seria, hoje, o equivalente a nosso “êxito profissional”. A sociedade de corte e seu controle social chegava, portanto, a todas as esferas do comportamento dos cortesãos. Na sociedade atual, isso mudou. A dança, a polidez, os quadros, as formalidades de um pedido de casamento, “tudo isso fica relegado agora, cada vez mais, à esfera da vida particular (...). A vida profissional é que passou a ser o objeto de todos os cálculos, sutilezas e aprimoramentos.” (pg. 130). A vida particular passa a depender da condição profissional enquanto que, na época das “boas sociedades”, sequer havia essa separação, no sentido atual, para os aristocratas.

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