Cap. 01 – 'Feitiçaria e Piedade Popular: notas sobre um processo modenense de 1519' (GINZBURG, Carlo)
FICHAMENTO e, depois, RELATÓRIO DE LEITURA (não foram feitos por mim)
1 - A escolha do processo
modenense de Chiara Signorini se justifica no livro por apresentar de modo
evidente associações plausíveis, ainda que de caráter psicológico. Exemplos:
relações entre feitiçaria e piedade popular; as motivações sociais da própria feitiçaria
e a sobreposição de esquemas inquisitoriais à realidade da feitiçaria popular.
2 - É num processo contra um padre
servita, Bernardino Martino, em 9 de dezembro de 1518, que serão formuladas as
primeiras acusações contra Chiara Signorini. Conta-se que a suposta feiticeira,
em conluio com seu cônjuge Bartolomeo, segundo o irmão da “vítima” do
“malefício”, chamado Bartolomeo (também) Guidoni, teria feito um “trabalho” em
vingança e chantagem para que fossem readmitidos na pequena propriedade da qual
foram expulsos pela “vítima”, Margherita Pazzani. Segundo a acusação, Chiara
teria dito que poderia curá-la em um mês e que Margherita “não teria sido
acometida de tal enfermidade” se não a tivesse expulsado.
3 - .. Conta-se, ainda, que Margherita
teria sarado por um mês, sendo que Chiara recebeu também roupa, quantia em
dinheiro e artigos de linho. A recaída da enferma viria, porém, porque Chiara
supostamente soube que uma criada defendeu que a “feiticeira” fosse acusada
perante o Inquisidor e, por consequência, queimada.
4 - Ao que parece, o frade,
responsável na história por usar “artes mágicas” de exorcização acabou não
sendo interrogado. Porém, as acusações contra Chiara, que contavam inclusive
com uma espécie de “depoimento acusatório” de um dos espíritos exorcizados das
endemoniadas, resultaram em abertura de processo desde 5 de janeiro de 1519.
5 - Sua captura foi tumultuada,
sendo que ela lutou, se escondeu e alegava temores diversos, como o de ser
morta. Sua defesa própria é de que seus “poderes” vêm de Deus e serve para
remediar as injustiças. Afirma que bradou contra Margherita, mas não lhe causou
a doença, havendo coincidência. A cura teria vindo de orações, após a “senhora”
lhe conceder benesses e a garantia de não expulsão futura. Diz que, como a
proprietária não quis manter a promessa, rogou a Deus que jamais a curasse.
6 - Uma série de depoimentos
contradizem a versão de Chiara, que não teria, segundo as testemunhas, aludido
a Deus como mediador da enfermidade e, ademais, teria se utilizado claramente
de práticas de magia negra envolvendo azeitonas, ervilhaca e osso de cadáver.
Uma antiga patroa de Chiara afirmou que a mesma e o marido possuíam má fama
pela prática de feitiços, tendo se julgado inclusive vítima de uma dessas
feitiçarias quando a despediu.
7 - Uma questão, talvez
secundária, da que o autor evita tirar conclusões, é se o isolamento do “casal
feiticeiro” era pela má fama ou se simplesmente se mantinham, na maioria das
vezes, entre indivíduos isolados e mantidos à margem da convivência comum. E se
queriam se aproveitar da “má fama” para ter algum temor ou respeito local ou se
realmente acreditavam em seus “poderes”, por exemplo. Por mais que não seja uma
questão marginal, as melhores fontes dessa questão são apenas depoimentos da própria
Chiara, obtidos por torturas e técnicas contestáveis.
8 - Em seu interrogatório, Chiara
alega receber aparições e conselhos tranquilizadores de Nossa Senhora, que
teria lhe dito sobre o não encarceramento de sua filha e também, à época das
orações, sobre a cura que viria à Margherita.
9 - Essas aparições em que Chiara
se agarrou ingenuamente para se defender, dizendo, por exemplo, que Nossa
Senhora lhe apareceu mais de cem vezes e que sempre a ouvia em todas as coisas
que pedisse, eram, para a técnica de interrogatório do inquisidor, uma perfeita
brecha para a acusação de “alucinação diabólica”, ainda mais pelos detalhes
“criativos” da suposta feiticeira, que, em alguns relatos, chega a fazer a
figura da aparição parecer sensual.
10 - Chiara dizia que Nossa
Senhora prometia vingá-la dos injuriantes. Ademais, sempre respondia
positivamente às sugestões do padre-vigário, que a queria levar,
sorrateiramente, à tese da alucinação diabólica. Exemplo foi a pergunta acerca
de se ela (e depois seu marido) prometera doar corpo e alma a “Nossa Senhora” e
se houve pedido da Virgem em tal sentido. Afirmou que doou também o corpo e
alma de seus filhos, como lhe foi requisitado.
11 - Ginzburg observa que é
difícil diferenciar, no depoimento de Chiara, o que ela meramente tenta
inventar pra se salvar e o que ela realmente acredita ou no mínimo gostaria que
fosse verdade, como uma Virgem protetora, de formas humanas, e que viria para
redimir as injustiças de uma vida infeliz e miserável.
12 - Diante da tortura (amarrada)
confessa pela primeira vez que admite ter dito que a cura de Margherita estava
em suas mãos. Ainda por temor à tortura, começou a confessar envolvimento com o
“diabo”. Tentou negar no dia seguinte do interrogatório, afirmando que
confessou por medo. Entretanto, submetido novamente à tortura, voltou a
confessar o que o padre queria antes e avançou nas admissões, devidamente
sugestionada.
13 - Em outros dias do
interrogatório, esse mesmo “ritual” de “retratação da confissão - tortura -
readmissão da confissão - ampliação da confissão” foi seguido. A confissão da
acusada precisava ser fiel à verdade já desenhada na cabeça do inquisidor-juiz,
aos seus próprios esquemas.
14 - Ginzburg percebe ainda como a
narrativa de Chiara muda pouco para cada uma das fases do interrogatório,
digamos. Mesmo quando já está “confessando”, são quase as mesmas falas, só que
trocando “Nossa Senhora” pelo “diabo”. Seja qual for a divindade, celeste ou
demoníaca, percebe-se que ela intervém para livrar Chiara das suas angústias;
trazer males aos patrões que a expulsaram ou mesmo curar algum deles se isso a
for trazer benefícios. Parece haver um claro desespero pela situação de isolamento
e miséria absoluta que faz com que o plano religioso apareça como algo
desejável.
Na sua “confissão final”, do dia
20 de fevereiro, isso aparece de forma bem nítida. Afirma, por exemplo que,
desesperada com sua expulsão e padecendo com sua extrema-pobreza, invoca o
diabo todos os dias e todas as horas.
15 - As sobreposições do
inquisidor não são, entretanto, sempre totalmente aceitas pelas acusada, que
procura, ao menos, retirar os elementos que menos dizem respeito à sua
religiosidade local. Assim, a “sugestão” de sabá, por exemplo, é sempre negada
(e Ginzburg observa que isso se dava na maioria dos processos modenenses da
época). Não se deitou com o diabo, não renegou sua fé e etc. A confissão, mais
que qualquer coisa, “acaba por constituir
uma espécie de compromisso entre a própria acusada e o juiz”. Aceitava-se
que se escapasse um pouco do esquema pré-montado nos tratados de demonologia.
Afinal, a feiticeira “clássica” faz expressa
apostasia da fé católica e aceitação do diabo como seu senhor.
16 - O processo termina com a
condenação à prisão perpétua. A supressão da pena de morte foi justificada pelo
“arrependimento” ainda que tardio da acusada, que prometeu nunca mais invocar o
demônio sob qualquer justificativa que fosse.
17 - Por fim, uma nota de rodapé
interessante: A identificação, aqui
cautelosamente proposta, entre o frade Bartolomeo da Pisa e Bartolomeo Spina
foi depois demonstrada por A. Rotondò em Rivista Storica Italiana, 74 (1962),
p. 841.
RELATÓRIO DE LEITURA
TEXTO
Cap. 01 – “Feitiçaria e Piedade
Popular: notas sobre um processo modenense de 1519” In: Mitos, Emblemas e
Sinais: morfologia e história. GINZBURG, Carlo. Editora Schwarcz Ltda., São
Paulo-SP, 1989.
RESUMO BIOGRÁFICO
Carlo Ginzburg nasceu em 15 de
abril de 1939, na cidade de Turim, e é considerado um dos pioneiros no estudo
da microhistória, escola que reduz a escala de observação, buscando fatos que
passariam despercebidos em lentes mais amplas e fontes documentais pouco
valorizadas pela história tradicional. Professor, já lecionou em diversas
universidades, como as de Bolonha, da Califórnia, Harvard, Yale, Princeton e na
Escola Normal Superior de Pisa, na qual inclusive estudou.
Tem como notável interesse as
atitudes e crenças religiosas populares do início da época moderna e as
relações que essas guardam com os processos inquisitoriais. A obra que o tornou
conhecido mundialmente foi “O queijo e os vermes”, abordando a vida de um
camponês em Montereale Valcellina, Itália.
INTRODUÇÃO
Antes de adentrar no capítulo
propriamente dito, Ginzburg irá dizer que sua hipótese do processo de
feitiçaria como embate entre culturas diferentes mostrou-se, depois da análise
da documentação friulana, mais correta que a responsável por enquadrar o
fenômeno da feitiçaria como mera forma primitiva de luta de classes. Afinal, “apesar do filtro interposto pelos
inquisidores, era possível reconstruir uma cultura profundamente diferente da
nossa”.
O capítulo procurou tratar do
processo inquisitório modenense de Chiara Signorini, evento que, para Ginzburg,
permite traçar paradigmas diversos ao apresentar de modo evidente associações
plausíveis, ainda que de caráter psicológico. Cita como exemplos: relações
entre feitiçaria e piedade popular; as motivações sociais da própria feitiçaria
e a sobreposição de esquemas inquisitoriais à realidade da feitiçaria popular.
CONTEÚDO
Apresentando o caso, conta-se que
a suposta feiticeira, em conluio com seu cônjuge Bartolomeo Signorini, segundo
o irmão da “vítima” do “malefício”, chamado Bartolomeo Guidoni, teria feito um
“trabalho” em vingança e chantagem para que o casal fosse readmitido na pequena
propriedade da qual foram expulsos pela “vítima”, Margherita Pazzani.
Segundo a acusação, Chiara, após o
malefício, teria dito que poderia curar a enferma em um mês e que Margherita
“não teria sido acometida de tal enfermidade” se não a tivesse expulsado.
Durante a narrativa acusatória,
afirma-se que Margherita teria sarado por um mês, sendo que Chiara recebeu
também roupa, quantia em dinheiro e artigos de linho pela cura. A recaída da
enferma viria, porém, porque Chiara supostamente soube que uma criada defendeu
que a “feiticeira” fosse acusada perante o Inquisidor e, por consequência,
queimada.
Todo o decorrer do texto traz a
descrição do processo, os depoimentos testemunhais, o interrogatório de Chiara,
as técnicas empregadas, e o que revelavam os embates entre o juiz, com seus
esquemas inquisitoriais pré-concebidos, e a acusada e sua religiosidade
impregnada do contexto local.
Ginzburg pincela, em certos
momentos, determinados assuntos aos quais não pôde ou preferiu não se deter, a
exemplo da polêmica acerca da coincidência entre o vigário provincial
Bartolomeo de Pisa e o teórico Bartolomeo Spina, depois confirmada numa nota ao
final do livro, ainda que sem detalhamentos.
Outra questão interessante, que
considerou porém de difícil aprofundamento, era se o isolamento do “casal
feiticeiro” se dava pela má fama ou se simplesmente se mantinham, na maioria
das vezes, entre indivíduos isolados e à margem da convivência comum. Por fim,
se queriam se aproveitar da “má fama” para ter algum temor ou respeito local ou
se realmente acreditavam em seus “poderes”, por exemplo. Por mais que não seja
uma questão exatamente marginal, as melhores fontes dessa questão são apenas
depoimentos da própria Chiara Signorini, obtidos por torturas e técnicas
contestáveis.
O autor do texto observa, ainda,
que é difícil diferenciar, no depoimento de Chiara, o que ela meramente tenta
inventar pra se salvar e o que ela realmente acredita ou no mínimo gostaria que
fosse verdade, como uma Virgem protetora, de formas humanas, e que viria para
redimir as injustiças de uma vida infeliz e miserável.
Embora não aprofunde, salvo em
certa medida na nota de rodapé 49, como eram os esquemas inquisitoriais dos
tratados de demonologia, não sendo tal detalhamento central para o entendimento
da dinâmica do interrogatório, o professor italiano observa que quase sempre,
especialmente nos processos modenenses, a empreitada em torno de “encaixotar”
totalmente a realidade local naqueles modelos pré-concebidos era feita com
algumas concessões, pode-se dizer assim.
Assim, no caso de Chiara, as
sobreposições do inquisidor não são totalmente aceitas pelas acusada, que
procura, ao menos, retirar os elementos que dizem pouco respeito à sua
religiosidade local. A “sugestão” de sabá, por exemplo, é sempre negada. Não se
deitou com o diabo, não renegou sua fé ou pisoteou símbolos, por exemplo. A confissão,
mais que qualquer coisa, “acaba por
constituir uma espécie de compromisso entre a própria acusada e o juiz”.
Aceitava-se que se escapasse um pouco ao esquema dos tratados de demonologia.
Afinal, a feiticeira “clássica” faz expressa
apostasia da fé católica e aceitação do diabo como seu senhor.
O capítulo é minucioso no que
tange à técnica utilizada para arrancar “crimes” da acusada, primeiro com
perguntas que já sugeriam implicitamente respostas que a levassem para a
“verdade” condenatória do inquisidor, artifício no qual Chiara cai
ingenuamente, imaginando que poderia estar a se salvar; segundo com o uso
sistemático da tortura, passando por retratações e readmissões de culpa, para
forçar as “confissões” pretendidas e o máximo de encaixe possível no modelo
condenatório.
Porém, mais do que essa análise,
Ginzburg traz ao leitor uma tese-reflexão mais complexa ao chamar a atenção
para o fato de que a narrativa de Chiara muda pouco para cada uma das fases do
interrogatório, digamos. Mesmo quando já está “confessando”, são quase as
mesmas falas, só que trocando “Nossa Senhora” pelo “diabo”. Seja qual for a
divindade, celeste ou demoníaca, percebe-se que ela intervém para livrar Chiara
das suas angústias; trazer males aos patrões que a expulsaram ou mesmo curar
algum deles se isso a for trazer benefícios. Parece haver um claro desespero
pela situação de isolamento e miséria absoluta que faz com que o plano
religioso apareça como algo necessário ou mesmo desejável.
Na sua “confissão final”, do dia
20 de fevereiro de 1519, isso aparece de forma bem nítida. Afirma, por exemplo
que, desesperada com sua expulsão e padecendo com sua extrema-pobreza, “invoca
o diabo todos os dias e todas as horas”.
CONCLUSÃO
É possível concluir que, não
obstante todo o esforço do juiz-inquisidor em obter confissões nos moldes dos
esquemas inquisitórios baseados em tratados de demonologia, a sobreposição não
é total, havendo desgastante embate entre modos diferentes de vivenciar a
religiosidade, o que inevitavelmente sofre toda a influência e variância da
cultura local e popular e gera formulações e novidades que desafiam as técnicas
mais insistentes de interrogatório, ainda que não possam vencê-las.
A situação de extrema-miséria na
qual se encontrava a população da época criava contexto favorável a que se
“invocasse” a religião - ou as religiões, já que elementos pré-cristãos e
superstições não haviam deixado de existir - da forma que mais se coadunasse
com as necessidades e angústias daquelas pessoas, incluindo aí a “feitiçaria popular”.
Tudo isso por mais que a ortodoxia religiosa e “culta” tentasse combater as
práticas e concepções populares.
Quanto ao resultado desses
processos, dificilmente se poderia esperar resultado diferente da confissão da
acusada, seja em razão das técnicas de interrogatório insidiosas, seja pelo
próprio uso de torturas, o que não elimina, porém, o nítido embate entre
culturas diferentes.
Por fim, vale ressaltar a
importância do texto para a formação do historiador na medida que dá os
indícios de novas, à época, maneiras de se analisar a história, mostrando que é
realmente possível, a partir de fatos aparentemente isolados ou no mínimo muito
específicos, procurar investigar traços mais generalizantes de um determinado
fenômeno. Talvez uma mera organização cronológica dos fatos apontados nas
fontes documentais pesquisadas por Ginzburg pouco ou nada pudesse dizer ao
leitor. Entretanto, devidamente inseridos no contexto cultural da época, os
fatos narrados tornam-se passíveis de gerar teses e reflexões sofisticadas.
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