Juarez - Breve Resenha do ‘Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil’ II
(continuação...)
Capítulo 2 – Negros
Depois dos vergonhosos trechos mencionados nos últimos parágrafos, tive que encontrar alguma animação para continuar lendo o livro e a esperança veio na idéia de que o pior já tinha passado. Nem tanto. O capítulo sobre o povo negro é quase tão ruim quanto o dos índios – que é, certamente, o pior.
Pelo menos não há, neste capítulo, inovação quanto aos principais defeitos do livro. Narloch em nenhuma parte do texto coloca o quanto é irrelevante para a injustiça da escravidão, se o escravizado naturaliza ou não a sua condição (ou mesmo deseja estar no pólo opressor). Outra obviedade histórica é que, não raro, oprimidos e explorados podem se converter em opressores e exploradores se tiverem uma chance. Não precisa sequer ler livro de história pra isso, mas observar o cotidiano. Nada disso deslegitima a crítica central a esse período brasileiro: escravidão, opressão e exploração existiram e não decorreram de relações justas. Ademais, tudo isso teve consequências atuais e gravíssimas que qualquer pessoa em sã consciência percebe (certamente também Narloch).
Enfim, fazendo mais um exercício mental simples, é óbvio que se alguém não se enxerga com poder suficiente para mudar as regras do jogo, vai se contentar em estar bem posicionado no mesmo, o que implica estar do lado explorador, até por enxergar isso como uma coisa natural. E o fato de boa parte da população ter achado a escravidão algo natural não a validava. Isso a semelhança do que ocorrerá com futuras gerações, quando os próximos habitantes da Terra (essa ainda existindo) olharão para o passado e se envergonharão de coisas abomináveis que fazemos hoje, mas que, para nossa geração, é tão natural como foi a escravidão para outras. Inclusive a literatura da época será avaliada. Livros que hoje são aceitos sem muita vergonha, tornar-se-ão igualmente abomináveis, assim como já acontece com algumas obras que se empolgavam com o stalinismo e-ou nazismo.
Uma parte do livro me deixou extremamente preocupado com tudo que li antes e mesmo com o que li depois. Trata-se do trecho sobre Palmares. Cadê o contexto da POSSÍVEL - e apenas isso - escravidão em Palmares? E sua abrangência temporal? Os porquês? A não-generalização da coisa?! Tudo isso escapa. Até vídeos do "Youtube" são mais profundos sobre essa questão. Eu esperava do autor do “guia”, no mínimo, o mesmo rigor com que trata os atos das “minorias” (pra usar o termo dele, p. 83). Por que só revelar "fatos desconhecidos" “do outro lado”? Ainda mais quando os problemas de um dos lados tem tudo a ver com a guerra promovida pelo outro (também um fato não muito conhecido do público em geral). Enfim, por sorte, eu conheço alguns textos variados sobre Palmares, mas e quanto às outras partes do texto? Será que ele não está com os mesmos casos mal explicados nas outras dezenas (centenas) de fatos trazidos? Se eu, que não sou formado em história, posso fazer uma breve resenha com inúmeros equívocos do livro, imagino o que fariam os historiadores se resolvessem perder tempo com o “guia”.
Um mal recorrente do capítulo é a “exceção que confirma a regra”. “Ah, mas negros não foram apenas vítimas”. É óbvio que há exceções. O importante é saber se há exceções que têm alguma relevância atual, já que elas não mudam a regra, que é a exploração do negro pelo branco. Talvez o exemplo mais ridículo – infelizmente não há outra palavra – seja o do subtópico “Muito Além da Casa-Grande”. O título é devido a uma peça de teatro de 1838 que mostra senhor e escravo comendo na mesma mesa. Ora, isso era uma peça de teatro, não a regra.
Com a eliminação dos capitães-do-mato na década de 1820, o controle da população escrava urbana passou a ser compartilhado cada vez mais pelos senhores e o Estado. A tarefa direta da punição disciplinar foi outra área em que se deu essa colaboração no interesse mútuo de subjugar a população escrava. Na década de 1820, as autoridades policiais continuaram a aplicar o açoite corretivo a pedido dos senhores de escravos, cobrando uma taxa mínima de 160 réis por centena de golpes, mais 40 réis por dia para cobrir os custos de subsistência, sem fazer perguntas sobre o suposto delito. Uma relíquia da era escravista, que ainda deve chocar o leitor moderno, é o livro em que se escriturou a receita proveniente do pagamento desse serviço no ano de 1826. Naquele ano, um total de 1.786 escravos, entre os quais 262 mulheres, foram açoitados no Calabouço a pedido de seus senhores, o que dá uma média de quase cinco por dia. A maioria recebeu 200 açoites, enquanto alguns receberam 50 e outros, 400. Nesse ritmo, os funcionários da prisão passavam várias horas por dia açoitando escravos. (HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 1997, p. 64)
(...)
Alguns senhores que despejavam lixo nas ruas e praças também não tinham escrúpulos em jogar fora seus escravos agonizantes, em “um estado de perfeita nudez”. Quando visitou a cidade em 1814, Schillibeer ficou horrorizado ao ver “tantos escravos mortos nas ruas”. Quando pediu uma explicação, disseram-lhe “que quando doentes e considerados sem recuperação, eles eram rejeitados por seus senhores, para evitar despesas de um funeral, e jogados porta afora, quando suas vidas miseráveis eram logo levadas a um miserável fim. Quando qualquer desses cadáveres é encontrado (o que ocorre constantemente), um soldado é posto sobre ele com uma caixa, e o corpo não é removido do local até quando uma quantia suficiente seja deixada pelos passantes para custear as despesas decorrentes do enterro”. Quando morriam os filhos dos escravos, uma prática comum era abandoná-los à noite diante da porta de uma igreja para que fossem enterrados, enquanto outros eram deixados na roda dos expostos. (KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 190/191)
(...)
É óbvio que nem todos os escravos teriam a sorte de receber até mesmo a dieta dos pobres, pois dependiam completamente da distribuição inadequada que seus senhores faziam da farinha, que tem pouco valor nutritivo, feijão e um pouco de carne-seca, se tanto. Com freqüência demasiada, a refeição era composta apenas de farinha coberta com suco de laranja, uma dieta claramente insuficiente para suprir as necessidades de proteína de um homem ou uma mulher que realizava trabalho físico pesado, e particularmente inadequada para mulheres grávidas ou amamentando, bem como para crianças e adolescentes. (KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 206)
Ao fim do capítulo, mais uma parte ruim. Narloch, através de um exercício de unicausalismo dos mais contestáveis, faz o que ele acusa, durante todo o livro, os outros historiadores de fazer. Trata os negros como bonecos passivos – e, pra piorar, mal-agradecidos, já que não agradeceram aos libertadores ingleses, digamos. Assim, as revoltas escravas do século XIX não são sequer mencionadas. Enfim, quem não tem leitura de outras fontes sobre o período é capaz de terminar o capítulo achando mesmo que os negros não desempenharam nenhum papel especial na abolição. Ademais há o erro de confundir os abolicionistas da Inglaterra com a Inglaterra. Tanto eles não estavam no poder que suas campanhas foram influenciando apenas muito gradualmente as decisões políticas da época, como mostra o espaço de tempo entre o início das campanhas e a definitiva abolição inglesa.
Inclusive creio que se Narloch conhecesse algumas frases extremamente racistas e preconceituosas – que se pretendiam científicas – de Hume e Locke sobre negros e índios (vide obra “Contra-história do liberalismo” de Domenico Losurdo), ficaria profundamente arrependido de alguns de seus escritos sobre o assunto. Vale lembrar que se trata, aqui, de duas das personalidades inglesas mais influentes de toda a história que, certamente, refletem ao menos parcialmente o espírito de suas épocas. Nada mais normal. Teorias pseudocientíficas e racistas faziam sucesso mesmo na Europa do fim do século XIX, ou seja, após a morte dos pensadores citados. Levou um tempo até figuras como “Lombroso” ficarem ridicularizadas. Agradecer aos ingleses? Só rindo. Talvez à barulhenta parte abolocionista e, ainda assim, após tantos outros agradecimentos mais urgentes, como, por exemplo, aos negros que se revoltaram contra a exploração e enfrentaram a ira de autoridades da época, sempre culpando a raça indolente pelo ‘caos’.
Pode-se mencionar ainda outro problema gravíssimo, que é o de tomar a “abolição brasileira” como fim da história do negro no Brasil. Em nenhum momento do livro, vê-se uma visão crítica do ocorrido no período da “abolição”. Ocorre que visões críticas sobre esse processo podem ser encontradas inclusive em autores ultradireitistas ao tratarem das questões das terras na América Latina (vide alguns textos, por exemplo, de Murray Rothbard, um estrangeiro), o que só piora a situação do autor do “guia”.
Vale sempre bater numa tecla: Que “nova história” há em revelar que a história não é feita de vilões e heróis (embora Narloch tente criar os seus mocinhos e bandidos durante todo o livro, vide exemplo acima dos ingleses e o dos bandeirantes)? A meu ver, não há nenhuma novidade. O que a maioria dos livros traz, e nisso estão corretissimos, é que existiram no passado relações de opressão e exploração e que essas explicam boa parte da realidade atual. Isso só mesmo um historiador de má-fé poderia negar e, por presumir boa-fé, prefiro crer que Narloch não tentou fazer isso.
O “guia” traz uma série de “novos” fatos históricos que, em tese, até por ocuparem boa parte do livro (ele todo?), seriam importantes. Entretanto, em nenhum momento fica clara a importância atual destes. O que implica mostrar que Zé Alfaiate foi escravo e depois se tornou traficante de escravos? Implica que os negros não foram inaceitavelmente explorados pelos brancos? Claro que não e acho que ninguém defende isso. “Ah, mas tambem teve negro entrando no jogo dos brancos”. Ok e quais foram as consequências atuais que esse fato histórico apresentou? Por que foi selecionado? O que ele explica da nossa realidade atual? Pra mim só serve para demonstrar que nenhuma relação de dominação pode se dar de uma forma extremamente rígida, impermeável, perfeita. Pelo menos não por centenas de anos.
Capítulo 3 – Escritores
Neste capítulo, ao contrário dos anteriores, há diversas críticas que fazem sentido (isso até por ser um capítulo menos pretensioso que os demais). Narloch, inclusive, poderia refletir, tendo em vista o que escreveu até o “Escritores”, sobre até que ponto ele próprio não se encaixa em parte dos modelos denunciados... Enfim, só não vou me prolongar por não considerar importante aqui esse tipo de crítica.
Porém, algumas coisas precisam ser comentadas.
O capítulo também tem algumas amostras do quanto Narloch é cuidadoso ao lançar suas ‘verdades’. Quem conhece um pouquinho da história do senador Bernardo de Vasconcelos sabe que sua argumentação não era exatamente a apresentada na página 117 do “guia”. Era inclusive bem diversa. Experimente ler o que está lá e depois saber que a argumentação do político conservador passava pela idéia de que a vinda de escravos para fazer trabalhos indesejados liberava os “grandes homens”, que podiam, assim, enriquecer e crescer - e mais coisas do tipo. Ora, não há nada de “politicamente correto”, como Narloch diz, nisso. Boa parte dos argumentos do senador podem ser vistos aqui (vale conferir quão politicamente corretos eles são):
http://www.universosdahistoria.net/volume1/Jo%C3%A3o%20Carlos%20Escosteguy%20Filho.pdf
Enfim, se Narloch remodela fatos a seu bel prazer, como posso confiar nos relatos que ele faz sobre temas que eu não domino razoavelmente? Ainda assim, estou tomando várias afirmações do autor do “guia” como verdades provisórias. Isso não me impediu, entretanto, de mostrar inúmeros erros numa obra relativamente curta (o livro tem 367 págs.). Como não tenho tanto conhecimento assim de história brasileira, isso significa que o livro é, no mínimo, fraco. Ou pelo menos o mais fraco livro de história que já li, por mais que não tenham sido muitos.
Capítulo 4 – Samba e Fascismo
Não conheço o assunto, ou seja, abstenho-me de maiores comentários. Mas achei estranho não haver qualquer linha sobre o outro berço do samba, a Bahia. Será mesmo que a raiz do samba é tão “menos autêntica” assim? (se é que me faço entender).
...
Comentários
Postar um comentário