Juarez - Breve Resenha do ‘Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil’ III
(continuação...)
Capítulo 5 – Guerra do Paraguai
Também não conheço o assunto a ponto de debatê-lo com profundidade. De positivo, surgiu o interesse em pesquisar mais sobre ele. Mas algumas teses apresentadas por Narloch são risíveis em si, como a de que uma das causas da guerra foi a falta de jornais privados para controlar a loucura de Solano López (claro, assim como os jornais privados e partidos políticos impediram eficientemente, nos últimos anos, as bobagens de Bush em vez de apoiá-lo acriticamente...). Ademais, é de se estranhar a presença de uma série de informações sem dizer a fonte – aliás, um mal infelizmente recorrente do livro. Há dezenas de informações importantes sem qualquer menção da fonte pelo “guia”.
Também muito mal explicado o fato de Narloch culpar o Paraguai por “não ter ficado em paz quando o Brasil invadiu o Uruguai.” Cá pra nós que se um país (regionalmente poderoso) invade outro, os demais da mesma região devem, no mínimo, ficar atentos. Enfim, afirmações como essas não podem ficar sem maiores explicações. No entanto, foi o que aconteceu. Não duvido dos erros e defeitos de Sólano López, mas atribuir a culpa unicamente ao Paraguai me parece tão exagerado quanto o oposto.
Também são estranhas algumas críticas que Narloch traz à tona em relação à figura de Elisa, a mulher de Solano López, apresentando-a como uma pessoa fútil que se preocupava com o guarda roupa enquanto os paraguaios passavam fome. Ora, isso é incomum na sociedade da época ou mesmo com a nossa? A crítica vale pra todo mundo que faz isso? Ou é só birra com os desafetos? “Ah, mas a guerra trouxe fome extrema”. Então se for a pobreza “normal” do dia-a-dia, tudo bem? Tais perguntas ganham especial relevo com a lembrança de que uma das propostas – ao menos declaradas – do livro é não cair nos esquemas mocinho-vilão. Talvez a essa altura do livro isso já tenha sido esquecido.
Outro erro. Ou melhor, contradição performativa. Usar “interesses ingleses” para explicar a “culpa” da Inglaterra seria coisa de historiador parcial, politiqueiro, ou sabe-se-lá-o-que. Entretanto, a explicação de Narloch para inocentar a Inglaterra (que, por algum motivo, sempre aparece como anjo no livro) se baseia - adivinhem no que? - nos interesses econômicos ingleses (!), que, em tese, seriam abalados pela guerra. Aí vale. Faltaram apenas duas coisas: a) explicar porque a outra tese não vale, já que a questão não é somente a quantidade de dinheiro que o Brasil tomou emprestado, e b) pensar sobre se a guerra não é mesmo mais lucrativa que os tais negócios que seriam “abalados”. Enfim, mais uma das dezenas ou, quem sabe, centenas de explicações rasas do livro. Não que os dados trazidos não tenham importância, mas o autor do “guia” devia ter percebido que eles sozinhos não dizem muita coisa.
A parte que inocenta o exército brasileiro também é cheia de perólas ao estilo “ocorreram estupros e assassinatos de paraguaias indefesas”, mas também houve “ajuda” e “até casamentos” (p. 195). Ora, ninguém está reclamando dos tais casamentos ou das exceções que confirmam a regra. Outro argumento é que os brasileiros não mataram tanto assim como se diz, pois o censo não era confiável e tal. Argumentos parecidos não cansam de ser repetidos por defensores de figuras bastante criticadas por Narloch (com razão) como Hitler e Stálin. Por causa disso, chega-se a afirmar que não houve genocídio – como se as “novas porcentagens” citadas pelo próprio livro fossem baixas...
Aliás, ao fim do capítulo, afirma-se inclusive que o Brasil foi “bonzinho” (p. 196) com o Paraguai, pois a indenização cobrada pela guerra foi perdoada em 1930.
Capítulo 6 – Aleijadinho é literatura;
Capítulo 7 – Acre;
Capítulo 8 – Santos Dumont
Todos secundários, a meu ver. Mesmo neles há defeitos graves. No caso do primeiro, como o próprio título dá a entender, lança uma série de dúvidas até sobre a existência do artista, mas de nenhuma maneira o pouco apresentado justifica a conclusão (“é literatura”). Realmente é difícil não dizer que é uma manchete sensacionalista – o que é até “tranquilo”, tendo em vista os inúmeros problemas graves do “guia”.
Quanto ao Acre, por algum motivo (que sinceramente desconheço), Narloch o escolheu como Cristo, digamos. Entretanto, não faz qualquer sentido lamentar que o Acre faça parte do Brasil. Pelo mesmo raciocínio que ele utilizou ao final do capítulo, seriam eliminados diversos estados, um-a-um, até sobrarem cidades, que também poderiam ser eliminadas, uma-a-uma, depois bairros, casas, indivíduos... E o melhor mesmo, no fim das contas, seria a República Brasileira Eike Batista e Só. Até o próprio Narloch iria cair fora num determinado momento. Aliás, pra quem critica o nacionalismo, colocar que o Acre não ajuda os interesses nacionais é algo, no mínimo, contraditório. Enfim, um dos capítulos mais nonsense.
Também não considero tão importante saber qual vôo foi mais legítimo, o de Dumont ou dos Wright. Até li o capítulo todo (infelizmente não pulei nada do livro), mas é o típico texto que não faria falta.
Capítulo 9 – Elogio à Monarquia
A idéia central desse capítulo é a de que os processos de independências de boa parte dos demais países foram seguidos de batalhas sangrentas e outras tragédias. Se as coisas não andaram bem no “pós-independência” dos países da América Latina – até por fatores externos em muitos casos – não entendi em que isso implica elogiar o que houve no Brasil.
É um dos piores capítulos do livro por motivos bem simples: afirma que o conservadorismo brasileiro à época do Império (e de brinde, o longo sistema escravocrata) é preferível a um suposto “caos entre os cidadãos” (p. 274) (não sei se os escravos, por exemplo, são considerados cidadãos nessa citação aí). Eu realmente nem preciso comentar isso. Um caos que supera uma ordem escravocrata de quase cem anos tem que ser realmente muito caótico. E como garantir que existiria esse caos? O próprio Narloch afirma que houve, por exemplo, a exceção chilena a esse “caos” dos outros países. Nunca vi se pregar tão abertamente o “medo de ser feliz”. Aproveitando a deixa, Narloch diz que é mais ou menos o mesmo caso da ditadura de 64. Preferível para o contexto. Assim como imagino que saudaria, bem como diversos consevadores europeus da época, a ascenção do fascismo europeu como um mal menor e necessário.
Aliás, a lógica do “poderia ser pior” é a preferida de muita gente questionável quando se trata de exercer poderes. É, por exemplo, o discurso de muitos petistas quando criticados pela falta de, ao menos, um projeto popular no seu governo. “Na época do FHC, era pior”... “se o PSDB vencer, será pior”.
Narloch certamente deve conhecer boa parte das teorias que justificavam a escravidão na Idade Antiga (uma delas é de John Locke, liberal da Era Moderna). O raciocínio era simples. Se, numa guerra, posso matar um homem, vira ato de piedade transformar este mesmo homem num mero escravo. Afinal, pior seria se eu matasse a pessoa. Assim fica legitimado todo tipo de canalhice, bastando algum vizinho ter feito algo pior ou semelhante (isso tomando como pressuposto um julgamento correto, o que dificilmente acontece no “guia”). Aliás, não é a primeira vez que esse tipo de lógica pouco construtiva ou significante aparece no “guia”.
Tem mais. Ter que ver um sistema, que incluia a escravidão e uma bizarrice chamada “poder moderador”, ser elogiado como “projeto bem pensado” (p. 275) em pleno Século XXI? Com o perdão do termo, é uma aberração.
A lógica do “poderia ser pior” também está presente na defesa do “poder moderador”. Narloch afirma, por exemplo, baseado não sei em qual apanhado estatístico (ou mesmo nenhum), que Dom Pedro II só tamava decisões autoritárias em raros momentos (p. 277). Automaticamente penso que as outras eram legítimas decisões democráticas. Claro. Porque o que existia no Brasil nessa época era uma democracia... Faz todo sentido...
Mais a frente, a gente descobre que Pedro II sequer gostava de ser chefe do poder Executivo e Moderador, coitado. Até preferia ser mero presidente ou simplesmente um professor. Isso é tomado como verdade por Narloch. Por quê? Porque Dom Pedro II disse, oras.
Narloch faz críticas pesadas a Pedro I (imperador 1822-31), mas também traz o seu “lado bom”: a Constituição de 1824! Voto censitário não era um problema, afinal, como explica o “guia”, a renda mínima para poder votar era baixa... ... Realmente isso é elogiável... Principalmente numa sociedade com milhões de escravos...
Uma parte estranha é a que relata que a separação Brasil-Portugal não estava em pauta nos debates políticos dos anos anteriores à “independência”. Ora, é meio difícil tomar isso como verdade já que vários movimentos pela independência foram esmagados em anos anteriores. Logo, como assim “ninguém queria se separar de Portugal”? Os massacrados são “ninguéns”? Por que são “ninguéns”? Era uma sub-raça? Obviamente que isso não passa pela cabeça de Narloch (espero), logo, inaceitável que coisas assim fiquem sem qualquer explicação na obra.
Algumas informações trazidas não possuem muita relevância. O fato de boa parte da população apoiar a escravidão (se existiu mesmo tal apoio) não nos diz nada sobre a justeza ou não da própria escravidão ou das consequências destas. No máximo, reforça a tese marxista de que as idéias da classe dominante geralmente são as idéias dominantes de uma época. Ou seja, a naturalização da escravidão, à época, é algo esperado. O que não se espera, sinceramente, é que alguém venha elogiar, em nossos dias, um sistema que se caracterizava por traços como esses aí.
Enfim, mais um capítulo que não faz qualquer sentido, por falta de atualidade das poucas novidades trazidas. Não passa de uma defesa despropositada (na melhor das hipóteses) de mais um período ruim e vergonhoso da história brasileira.
Capítulo 10 – Comunistas
O capítulo se inicia com uma longa crítica a Prestes. Não vejo muito problema nelas (com algumas até concordo), mas no fato do livro querer tomar Prestes como símbolo do “sonho socialista”. Ora esse “projeto” é tão heterogêneo quanto os “projetos capitalistas” de que fazem ou fizeram parte gente tão diversa como Keynes. Schumpeter, Hitler e Narloch. Ou seja, é um erro primário reduzir a luta anticapitalista a Prestes – devido à sua qualidade “top of mind” ou algo do tipo. Por isso mesmo, essa parte do capítulo nem merece muitos comentários.
Sobre a parte em que tece críticas aos comunistas que lutavam contra a ditadura brasileira, Narloch faz algo que deveria ter feito em diversos outros capítulos, admitir as “selvagerias” (p. 313) praticadas contra seus “desafetos” - ao fim do livro, não consegui achar um termo mais ameno. Pena que isso dure algumas frases simples, mas não dava pra esperar muito mais.
Há fatos verdadeiros, mas a interpretação que se faz deles é primária e ideológica. Isso sem mencionar alguns absurdos como a idéia de que não havia motivo para se empreender guerrilha antes de 68 (p. 316). Isso pelo suposto motivo de que a ditadura ainda não era tão ruim como ficou depois - quando nem habeas corpus valia mais. Ora, as pessoas podem decidir por quem querem ser governadas, como querem, ou mesmo se querem. Até liberais concordam com isso, mas Narloch, lamentavelmente, parece ter dificuldades em aceitar esse direito básico, o que gera momentos lamentáveis no livro, de defesa de “males menores”, digamos.
Outro erro comum do capítulo é pegar exemplos isolados de ações desastradas e tirar pretensas “lições gerais” delas. Assim, uma ação imprudente vira “exemplo da imprudência dos guerrilheiros” (p. 320). Quais guerrilheiros? Todos?
Outra pergunta se coloca: qual a importância de se passar páginas falando sobre como a ditadura brasileira foi “menos atroz” que a maioria das outras? Ademais, o método de comparação da “malvadeza” das ditaduras é infantil. Repleta de erros talvez causados por má vontade mesmo. Só pra citar alguns: a) Utilização, sem a devida problematização, de contextos históricos completamente diferentes. b) Escolha despropositada do Camboja – já que a lógica usada pelo próprio Narloch era comparar com modelos que declaradamente serviam de inspiração aos guerrilheiros. c) presunção ridiculamente falsa de que um regime que “se inspira” em outro apresentará resultados iguais quanto a índices tão específicos como “número de mortes”.
Também é interessante notar as incoerências do autor - aliás, um traço marcante de todo o livro. Os números de mortes dos eventos que não pretende criticar com a mesma ênfase – por mais que sejam gravíssimos – com que critica outros (esse outros são, obviamente, os eventos dos seus “alvos”) são sempre considerados exagerados ou, no mínimo, incertos. No entanto, o número de mortes dos regimes que critica (às vezes com alguma razão) é sempre apresentado como algo inconteste, por mais que outras fontes históricas apresentem outros números, como muita gente sabe. Ora, como não considero muito importante saber qual ditadura é mais “mortal”, isso não me incomodou tanto, mas é algo a ser notado.
Algumas “teses” aparecem sem muito motivo. Assim, a “os militares torturavam tanto porque eram pouco inteligentes” em nada inocenta os mesmos. Qual a relevância atual dessa informação (se é que é verdadeira)?
Num trecho do livro (p. 332-3), há uma frustrada tentativa de elogiar a pouca interferência dos militares na livre iniciativa. Isso porque Narloch se limita, num dos piores usos de estatísticas que já vi, – a exemplo do que petistas fizeram nas últimas eleições, comparando, sem a devida contextualização, os índices econômicos da “era Lula” e dos “anos FHC” – a vomitar números e eleger, sem maiores explicaçoes, algumas categorias como produtoras dos mesmos. Entretanto, a ponte entre uma coisa e outra não é feita, deixando o texto mais panfletário que campanha política feita por marqueteiro. Extremamente superficial (pois é, mais uma parte assim). Muito castrista ou stalinista não teria dificuldades para fazer um panfleto semelhante a fim de defender seus “líderes”, com resultados econômicos até mais volumosos – embora igualmente enganosos.
Porém, o que mais impressiona é que Narloch, devido a uma coletânea extremamente limitada de fatos arbitrariamente escolhidos, parece chegar ao final do livro certo de que compreendeu minimamente as correntes que lutavam contra a ditadura militar, afinal, só isso explica o seu delírio final (p. 336, a última página), tão messiânico quanto o messianismo que criticou uma página antes, de que o Brasil foi salvo pelo “governo” – sim, ele se referia à ditadura – e pela “sociedade brasileira” – não, não faço idéia quem seria esta e nem ele diz – da ameaça dos “profetas da salvação”. (e, pra piorar, faz a leitura mais acrítica que já vi sobre índices de melhoria de vida). Como tive acesso recentemente há alguns textos mais interessantes sobre a história das esquerdas nesse período, só me restou lamentar a superficialidade da “pesquisa” contida no “guia”, quase que completamente inútil para mim. Conclusões megalomaníacas advindas de argumentos falhos são, em verdade, um dos piores defeitos que qualquer pesquisador pode ter. E, infelizmente, o final do capítulo em questão não é amostra isolada disso, como já deu pra perceber. Peço desculpas ao autor do livro pela expressão, mas é querer caçar no mato sem perceber que está usando uma pistola de brinquedo.
Enfim, se fosse pra dar uma nota pro livro, seria 1 ou no máximo 2. Com tantos livros bons por aí – inclusive escritos por conservadores -, este se mostrou uma grande perda de tempo.
FIM
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