Vavá (PP) - Guiné Bissau, Uma Luta Por Luz e Água
Vavá (PP) - Guiné Bissau,
Uma Luta Por Luz e Água:
1170 - Expectativa de
vida não chega a 50 anos (2014). Frequentemente,
a Guiné-Bissau integra a lista dos dez países mais pobres do mundo. Cerca de
65% da população vive abaixo da linha da pobreza. Mesmo em famílias cujos
membros estão empregados, os salários auferidos garantem apenas a compra de
alimentos para uma refeição diária [4]. À crise alimentar soma-se a falência da
empresa pública de água e eletricidade. Sem acesso à água potável, o quadro
sanitário do país é cada vez pior e doenças como febre tifoide e cólera
tornaram-se epidêmicas.
1171 - Como em outros países da África subsaariana,
a elite autóctone (pequena burguesia) nacionalista assumiu o controle do Estado
e dos recursos naturais após a independência. O “suicídio de classe” da pequena
burguesia, recomendado por Cabral, nunca ocorreu.
1172 - Cleptocracia: as frações dessa pequena burguesia negra se
digladiam pelo controle dos recursos públicos em sucessivos golpes de Estado
levados a cabo pelos seus respectivos representantes no interior das Forças
Armadas.
1173 - Na privacidade dos bairros miseráveis de
Bissau e das vilas do interior (tabancas), os guineenses criticam duramente
políticos e militares. No espaço público, nunca ousaram. Os assassinatos,
espancamentos e detenções arbitrárias, sobretudo nos últimos dois anos [8],
estão fortes no imaginário popular e ajudam a consolidar a cultura política do
medo.
1174 - História: A capital do país, Bissau, foi construída em
1941 com mão-de-obra local. Em geral, quando remunerados, os trabalhadores
locais recebiam 3 ou 4 vezes menos do que um português a exercer a mesma
função. Os postos de chefia estavam vetados aos nacionais da Guiné.
1175 - Prova disso é a existência de 40 partidos
políticos num país com apenas 1,5 milhão de habitantes. Não obstante o elevado
número, os partidos não se diferenciam ideologicamente. Seus programas são um
amontoado de frases feitas e senso comum liberal.
1176 - Protestos
autônomos têm surgido. Não só protestos, em
alguns bairros, jovens criaram grupos de limpeza e restauração de ruas.
1177 - “Em Bandim Bilá, por exemplo, acho que parte
da comunidade ganhou maturidade de classe e agora entende que eles também podem
trabalhar para melhorar a comunidade. Não devem ficar à espera dos
representantes eleitos, que não fazem nada durante anos”
1178 - Os protestos do
MPL passaram na TV e muito se perguntaram porque Guiné não tinha um movimento
autônomo/ista do tipo. “... No final
dessa formação, que contou 40 jovens de diferentes associações, foi realizado
um djumbai [debate] para identificar as principais dificuldades vividas pelos
jovens nas suas comunidades. E todos os grupos presentes falaram sobre a falta
de luz e água. … No início de outubro, cerca de trinta jovens
de diversas associações criaram o Movimento Luz ku Iagu (Mov. Luz e Água –
MLI).
1179 - Nesse primeiro ano de existência, as
principais decisões são tomadas coletivamente pelos membros reunidos na
assembleia geral e baseiam-se em propostas elaboradas por comissões temáticas
ou em sugestões individuais.
1180 - “Ninguém trabalha em nome do movimento. Para
trabalhar para o movimento você precisa ser delegado pela assembleia geral.
Quando a assembleia geral toma uma decisão, ela mesmo elege um grupo de pessoas
voluntárias para executar o trabalho.” – Luizinho B. (...) “Os membros do
movimento, presentes na assembleia geral, interessados num determinado trabalho
criam uma comissão específica. Criada a comissão, a sua primeira tarefa será
elaborar uma proposta à assembleia geral. Aprovada, caberá à comissão
executá-la. É assim que funcionamos.”
1181 - Dificuldades: um
jovem acusou o grupo de querer acabar com a “cultura de chefia” tão própria de
Guiné. Numa outra circunstância, o
presidente de uma renomada associação recomendou ostensivamente a eleição de um
presidente para o MLI, chegando mesmo a ameaçar não mais se reunir com os
delegados do movimento caso não fosse eleito um “responsável”.
1182 - A nossa meta é fazer com que, a curto
prazo, a EAGB [empresa pública de luz e água] se submeta ao controle social. A
médio prazo, queremos criar dois conselhos nacionais de gestão democrática dos
recursos naturais e outro de gestão da luz e água. E a longo prazo queremos que
a EAGB seja completamente gerida pelo povo, pois assim nos garante a nossa
constituição nos artigos 2 e 3.
1183 - Núcleos de
trabalho: se uma comunidade tem problemas com o “lixo”, vamos resolvê-lo
coletivamente.
1184 - Escola autogerida:
Desde março de 2014, são oferecidas três
disciplinas: Inglês, Ciência Política e História da Guiné-Bissau – excluída do
programa das redes pública e privada de ensino. As aulas são ministradas em
português.
1185 - No início de 2014, alunos da escola, juntos
a outros estudantes não integrantes do MLI, fundaram o Coletivo Autônomo de
Estudantes (CAE) – uma organização também horizontal. Em oposição à burocracia
da confederação nacional de estudantes (CONEAGUIB), e sem temer as ameaças de
repressão do Estado, em maio de 2014, o CAE organizou assembleias de estudantes
da rede pública e os primeiros protestos estudantis em anos. Como consequência,
o Estado e os dois sindicatos de professores foram obrigados a ceder às
exigências dos estudantes: retomada imediata das aulas e recuperação do ano
letivo 2013/14.
1186 - Assumir os
serviços públicos abandonados. “Se você
vai falar sobre política numa comunidade, ela se fecha. Ela demora a entender
as nossas ideias. Isso é natural, pois nem todos participaram das formações que
deram origem ao movimento ou frequentam a Escola da Democracia Direta [13]. Por
isso nós temos feito sobretudo atividades práticas nas comunidades. E eu penso
que essa tática seja correta.” – Zelmar R.
1187 - Atualmente, duas comissões trabalham para a
fundação da escola comunitária. Uma comissão é responsável por organizar a
formação pedagógica dos futuros professores; e a outra está encarregada de
organizar a reabilitação da estrutura da escola (telhado, portas, pintura das
paredes etc). Ambas são constituídas por moradores e membros do MLI.
1188 - Leonardo Cordeiro
comenta: Saber que nossa luta animou e
provocou companheiros a agir em terras tão distantes daqui, impulsionando uma
luta dos trabalhadores como essa, renova nossas forças para lutar no Brasil. Narra
soluções zapatistas: Hoje, existem
pequenos sistemas elétricos (parciais) autogeridos. As assembleias locais e
regionais do movimento definem uma tarifa mínima que é paga por cada usuário
para cobrir as despesas com manutenção e deslocamentos para jornadas nacionais
de protestos por um sistema elétrico público. Os transformadores, grandes e
caros, que permitem ligar a rede das casas ao sistema de distribuição são a
principal dificuldade – no estado de Chiapas, houve alguns expropriados de
instalações militares pelo povo! E já se está começando a discutir a
possibilidade de gerar eletricidade autonomamente… (...) Enfim segue abaixo um
artigo (que encontrei agora, então ainda não pude ler) sobre o assunto e um
comunicado do movimento. Parece que no estado de Oaxaca estão começando a ser
instaladas redes de celulares autônomas, que tornam possível tarifas irrisórias
(inclusive para os EUA, onde muitos tem parentes, utilizando provedores de
chamadas pela internet), em comunidades cuja cobertura não é lucrativa para as
grandes operadoras… mas isso já é outra história.
1189 - Vavá: A possibilidade de mudança da própria
realidade sem recorrer aos concorridíssimos editais da cooperação
internacional, sem elaborar projetos (!), e sem pedir doações a políticos, os
motiva muito. (...) Para mim, o MLI tem mostrado a importância de encetar,
desde a etapa inicial da organização, o debate sobre autogestão, democracia
direta, ação direta e autonomia. Sim, as atividades práticas e de resultado
imediato são importantes para mobilizar as comunidades, mas se o MLI não
promover essas mesmas reflexões teóricas sobre os modelos de organização nos
“núcleos de bairros”, esses vão se tornar rapidamente em associações de três pessoas:
presidente, vice-presidente e tesoureiro. E a comunidade volta para casa.
Nesses dois anos e meio que estou por aqui, vi isso acontecer algumas vezes. E
não é diferente do Brasil, não é verdade? (...) A experiência de Freire foi
complexa e, a meu ver, profundamente contraditória com o ideal de “emancipação”
apregoado pela sua pedagogia. Estou refletindo sobre a estrutura de um texto
que possa expor essa crítica. Adianto-lhe que Paulo Freire é completamente
desconhecido na Guiné e nunca viveu aqui. Esteve em missões esporádicas (entre
1975-77) a convite do Comissariado de Educação da Guiné-Bissau. Durante este
período, ele trabalhou perfilado ao ideal nacionalista imposto pelo autoritário
Estado-partido guineense.
1190 - Marcelo Lopes
“defende” um pouco Freire: Sem dúvida, é
possível, de um ponto de vista libertário, ver “fraquezas” no personagem em
questão, desde a sua ligação com o catolicismo (ainda que “de esquerda”) até o
“terceiro-mundismo” (que, nos anos 60 e 70, era mais desculpável que hoje,
sobretudo a partir de uma perspectiva do “Sul”, que às vezes se arriscava a
fechar um dos olhos – caso de Paulo – ou os dois olhos ao surgimento de novas
elites etc.). (...) Tive o privilégio de
conhecê-lo pessoalmente e de almoçar em sua casa, alguns anos antes de ele
morrer. Era uma pessoa humilde, apesar de suas ideias e convicções fortes; e
não parecia esforçar-se para não viver em contradição com o que defendia: me
pareceu e parece que, de fato, havia, em sua vida, muita coerência. Contudo, as
escolhas que fez e as cooperações que estabeleceu, sem dúvida podem incomodar
(em alguns casos mais que em outros). Mas talvez até isso sirva como lição,
vale dizer, como algo de que se extrair ensinamentos. Algo me diz que Paulo Freire
seria o primeiro a aceitar conversar construtivamente (e como ouvinte atento e
humilde) sobre nossas ressalvas.
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