Debate entre Samuel Pessoa e Felipe Machado sobre texto anterior I


B - Felipe Augusto Machado - Pessôa doura a pílula da República Velha,

C - Samuel Pessoa - Réplica a Felipe Machado e...

D - Felipe Augusto Machado - Tréplica a Samuel Pessôa

 

61 - A nova versão dos dados de Maddison traz dois indicadores de renda per capita: o cgdppc (Real GDP per capita in 2011 US$, multiple benchmarks) e o rgdpnapc (Real GDP per capita in 2011US$, 2011 benchmark. O primeiro é mais adequado para comparar o nível da renda per capita dos países. O segundo é mais adequado para comparar o crescimento da renda per capita dos países. Talvez por isso meus cálculos não confiram com os do autor. Utilizando o segundo indicador, de 1929 a 1980, somente a Romênia, o Japão e a Coreia do Sul cresceram mais do que o Brasil. O Brasil cresceu 3,4% ao ano com base no rgdpnapc.

62 - Machado coloca que não entendeu o cálculo de revisão de PIB da República Velha. Pessoa torna a explicar na réplica. E acrescenta: Vale lembrar que temas como a revisão das séries de produto em momentos de industrialização acelerada não são estranhos à história econômica. Os mais antigos se lembrarão das séries clássicas de Deane e Cole para o crescimento da Inglaterra ao longo do período da Revolução Industrial. Como o passar do tempo e melhores séries de dados, chegou-se à conclusão que o crescimento do Reino Unido pelas séries de Deane e Cole para o período da Revolução Industrial estava superestimado, inclusive da indústria, e, que, portanto, o PIB e o crescimento no período anterior à RI estava subestimado.[4]

63 - … Felipe não considera tal explicação muito convincente e dá motivos: De todo modo, após a indicação da base de dados em sua réplica, confirmei que o ajuste realizado por Pessôa estava matematicamente correto. Porém, a metodologia utilizada, especialmente diante do propósito pretendido de relativizar as taxas de crescimento dos dois períodos, é, para dizer o mínimo, discutível. Como eu mesmo afirmei, “estimativas de PIB per capita histórico são um desafio, e é comum que sejam realizados ajustes nos dados”. Porém, Pessôa utilizou as estimativas feitas por Eustáquio Reis para períodos bem específicos (1919 a 1940) e comparou com períodos para os quais não foram realizados ajustes. Por exemplo, se em 1919 o PIB deveria ter sido 36% maior por causa dos bens produzidos localmente que não são contabilizados nas contas nacionais, o que garante que em 1900 ele também não deveria ter sido maior? Um ajuste em outros anos, especialmente nos extremos como em 1900 e em 1980, poderia alterar completamente as taxas de crescimento calculadas. (Creio que ele tem razão. Houve alguma leve industrialização de substituição também durante a I Guerra inclusive, salvo engano). … É por isso que a base de dados de Maddison é tão amplamente utilizada para mensurar desenvolvimento, pois parte de uma metodologia comum para tornar os países comparáveis.

64 - Os dados de Felipe também são mais precisos que o texto de Lisboa em relação ao GAP entre Brasil e EUA, mostrando que já era alto desde a “largada”. 30% do PIB PPC em 1800:

65 - Sobre a parte do texto de Pessoa que trata do financiamento de ferrovias via mercado de capitais, Felipe apresenta como algo temporário e limitado. No entanto, o próprio estudo também mostrou que após 1915 houve reversão do desenvolvimento financeiro e declínio rápido do mercado de ações (capítulos 9 e 10), com consequente concentração acionária em grandes corporações, usualmente familiares, e com o Estado possuindo e controlando as maiores empresas do país. Nas palavras de Musacchio: “A estrutura das finanças corporativas no Brasil mudou radicalmente após os anos 1930 e 1940, quando os bancos suplantaram os mercados de ações e títulos como a principal fonte de financiamento corporativo. O governo criou um banco de desenvolvimento que fornecia a maior parte do crédito de longo prazo e os bancos comerciais focaram em empréstimos de curto prazo”.

66 - ...Ainda Musacchio: Finalmente, o governo se tornou o maior acionista da economia brasileira, passando a controlar, após a Primeira Guerra Mundial, e especialmente após a Segunda Guerra Mundial, as maiores empresas do país, tanto por socorrer empresas existentes (por exemplo, ferrovias) quanto por promover a criação de empresas estatais (por exemplo, siderúrgicas, empresas de mineração, fábricas de produtos químicos e bancos).

67 - Machado continua: Ou seja, por um lado, o elogiado desenvolvimento financeiro ocorrido entre o final do Segundo Reinado e a Primeira Guerra Mundial não impediu que o país divergisse em relação à renda per capita dos países desenvolvidos naquele período. Por outro lado, a reversão do desenvolvimento financeiro após 1915 não impediu que o país convergisse com o mundo desenvolvido entre 1930 e 1980.

68 - Machado traz também um importante trecho sobre ferrovias:

No livro Order Against Progress, William Summerhill estimou conservadoramente que as ferrovias foram responsáveis por 19% do aumento da produtividade do trabalho observado de 1869 a 1913 e por 7% do aumento do nível do PIB. Já nos resultados mais favoráveis, as ferrovias teriam sido responsáveis por 66% do aumento da produtividade do trabalho observado e por 25% do aumento do nível do PIB naquele período[3]. Na tese de doutorado de Pedro Américo, The Historical Origins of Development: Railways, Agrarian Elites, and Economic Growth in Brazil, o autor afirma que, apesar do declínio da rede ferroviária pós-1950, o efeito sobre o desenvolvimento econômico persistiu ao longo do tempo:

“Municípios conectados à rede ferroviária antes de 1950 tinham uma renda per capita 34% maior e um PIB per capita 60% maior em 2010 quando comparado aos municípios não conectados”. Nós também descobrimos que esses mesmos municípios têm uma densidade populacional maior e mais trabalhadores dos setores de manufatura e serviços. Mostramos que os efeitos de ferrovias na mudança estrutural persistem desde a década de 1950, quando os municípios conectados ao sistema já eram mais industrializados do que aqueles não conectados.”

69 - … Termina este ponto fazendo três observações: i) a expansão das ferrovias não é estranha ao período nacional-desenvolvimentista (segundo Pedro Américo, ela continuou ocorrendo até 1950); ii) a expansão das ferrovias não impediu que o país ficasse para trás do mundo desenvolvido durante o Segundo Reinado e a República Velha; e iii) o declínio das ferrovias após 1950 não impediu que o Brasil continuasse se aproximando do mundo desenvolvido até 1980.

70 - Sobre Educação, Machado coloca: Esse nível de gastos certamente não era o ideal, mas não estava descolado das experiências de outros países relevantes. A Coreia do Sul, por exemplo, tida por muitos como grande exemplo de desenvolvimento baseado na educação, registrou média de gastos de 3% do PIB entre 1970 e 1980. A do Brasil foi 2,7%.

71 - Traz um dado ainda mais surpreendente e importante. Brasil teve uma incrível melhora nas avaliações internacionais de Educação. A escolarização trouxe sim avanços em testes (e olha que outros países também devem ter avançado nesse quesito). Pode até ser que poderíamos ter conseguido algo igual a custo menor. Talvez. Porém, não é como se nada acontecesse, feijoada. Pode ser visto nessa fonte: https://ourworldindata.org/grapher/learning-outcomes-1985-vs-2015

72 - Machado coloca, então, que o país se empenha sim, mas partiu muito mais de trás e talvez por isso precise gastar tanto. Não sei. Ademais, avança mais que outros na comparação de escolarização também, mas isso eu meio que já sabia. O ponto dele é que isso não resultou em avanço proporcional em PIB per capita. Longe disso. Conhecimento cresceu e a produtividade estagnou, por exemplo. É tosco mesmo. Desde 1990, o Brasil foi o 25º país que mais aumentou os anos de escola da população[6], e foi um dos países que mais aprimorou a qualidade da educação[7], mas em crescimento da renda per capita foi apenas o 113º. Nesse mesmo período, o Brasil cresceu tanto quanto o grupo chamado “países frágeis e afetados por conflitos”, compreendendo, por exemplo, Afeganistão, Rep. Centro-Africana, Congo, Haiti, Síria, Somália, Sudão do Sul, Faixa de Gaza, Iraque, Líbia e Iêmen. (...) Com base nos dados do Banco Mundial (mais recentes do que os de Maddison), o Brasil tinha atingido 29% da renda per capita dos EUA em 1980. Em 2018 esse indicador tinha caído para 20%.

73 - Samuel diz que o problema do gasto educacional no período “desenvolvimentista” é a estratégia de concentrar em universidades de elite. A tabela abaixo, obtida com tabulações dos dados compilados pelo meu aluno de mestrado, Paulo Maduro, apresenta o gasto público por aluno como proporção do PIB per capita para os três ciclos:

74 - Samuel critica, ainda, as baixíssimas taxas de matrícula antes dos anos 90. Gastava pouco e ainda com pouca gente. (Por essas e outras que talvez o gasto em educação na redemocratização tem que ser tão maior. Muito déficit para tirar).

75 - Pessoa atribui parte do sucesso do período nacional-desenvolvimentista à transição demográfica. (Não duvido, mas eu teria que ver a pirâmide etária da República Velha). E faz pesada crítica: penso que o atraso que acumulamos no desenvolvimento social, em especial na educação, ao longo das cinco décadas do período do ND agravaram em muito o desempenho econômico nas quatro décadas após 1980. (...) O ND nos legou uma renda per capita maior. No prato da balança dos custos temos: uma péssima distribuição da renda; baixíssima acumulação de capital humano; uma situação de desorganização macroeconômica; deterioração dos espaços públicos em nossas grandes cidades; início do ciclo de fortíssima elevação da criminalidade. (...) Meu argumento é que passar por uma transição demográfica e por um processo de urbanização, ambos muito fortes, sem pesados investimentos em saúde e, principalmente, em educação nos condena à pobreza. O cidadão simples no campo, mesmo com baixa escolaridade, domina um conjunto de técnicas que permite a sua sobrevivência. Há toda uma cultura tradicional que ordena a vida dos indivíduos e das famílias. Quando esse cidadão – a população caipira (ou cabocla ou sertaneja) – migra para a cidade sem escolaridade, está muito mais despreparado. Os mecanismos de círculo vicioso da pobreza se reforçam muito mais – por exemplo, a qualidade do ambiente doméstico se deteriora – e se torna muito mais difícil o processo de escolarização de uma população pobre e deseducada nas megalópoles modernas do terceiro mundo.

76 - Tabela de Gastos mundiais em Educação (1970 e 2013):

77 - Felipe na tréplica: A comparação internacional é importante porque, em geral, praticamente todos os países investiam menos em educação há 50 anos do que investem hoje. Com o passar do tempo, os Estados foram crescendo e assumindo maiores responsabilidades. Assim, é preciso analisar o período nacional-desenvolvimentista dentro do seu respectivo contexto histórico. (Sim, mas o argumento de Samuel na réplica é de que o gasto era muito mal distribuído). (...) A comparação com a Coreia do Sul é especialmente relevante porque, como afirmou o próprio Pessôa, a visão liberal considera que a educação foi determinante para o sucesso dos países do leste asiático. A média de Singapura entre 1970 e 1980 atingiu 2,6% do PIB, menor do que a brasileira (2,7%). A China investia somente 1,8% do PIB em educação naquele mesmo período.

78 - Por fim, lembra que as escolaridades de Brasil e China são praticamente iguais e a taxa de matrícula brasileira hoje em dia é até maior. Link de um rodapé: Ver Exame. Fuga de cérebros faz Brasil cair para 80° lugar em ranking global. 22 de janeiro de 2020. Disponível emhttps://exame.com/carreira/fuga-de-cerebros-faz-brasil-cair-para-80-lugar-em-ranking-global/

79 - Machado aproveita que o próprio Samuel elogiou Dani Rodrik na réplica e o reivindica. Aliás, sobre esse último período, Rodrik afirmou em uma entrevista: “Em minhas viagens aos países em desenvolvimento, fiquei impressionado com o fervor ideológico com que os formuladores de políticas, especialmente os da América Latina, abraçaram esta Agenda do livre-mercado”[12]. Não precisamos ficar apenas com Rodrik. O insuspeito Daron Acemoglu, por exemplo, tem defendido ardorosamente o retorno da liderança do Estado no desenvolvimento tecnológico com o objetivo de criar bons empregos [13].

80 - FMI e “catching-up”: Até o Fundo Monetário Internacional (FMI) reconheceu o peso das evidências. Em artigo de 2019[14], os autores ressaltaram como é difícil para países em desenvolvimento atingirem a renda alta (definida como superior a 50% da renda dos EUA). Desde 1970, apenas 13 países o fizeram, que podem ser agrupados em três grupos, segundo os autores: i) países ricos em recursos naturais/minerais; ii) países que se beneficiaram da adesão à União Europeia; e iii) os tigres asiáticos, que adotaram políticas industriais ambiciosas e arriscadas (moonshot approach). O cenário não se altera significativamente se considerarmos os últimos 70 ou 100 anos. - Ver Cherif; Hasanov. The Return of the Policy That Shall Not Be Named. IMF Working Paper WP/19/74, 2019.

81 - O rodapé tem interessante nota 5 sobre “argumentos culturais”. Japão foi vítima deles. China agora usa contra o Brasil. Suposta falta de paixão pelo trabalho. Dá todo um tema esse discurso ideológico! De Auschwitz ao “sebo nas canelas”.

82 - Acemoglu e Robinson em The Political Economy of the Kuznets Curve. Review of Development Economics, p. 183-203, 2002, observaram que Taiwan e Coreia do Sul não seguiram o comportamento previsto pela curva de Kuznets porque o nível de desigualdade inicial era muito baixo, resultado, em grande medida, de políticas como a da Reforma Agrária, que chegou a ser uma pauta de governo no período democrático do nacional-desenvolvimentismo, mas que acabou não sendo devidamente implementada no Brasil.

83 - BNDES: Apenas 14% dos desembolsos aprovados estiveram voltados para atividades em que o Brasil não era competitivo e que eram mais complexas do que a complexidade média da economia brasileira na véspera da implementação dessas políticas.

 

FIM

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