Livro: João Bernardo - Economia dos Conflitos Sociais - Capítulo 6

                                                                              

Livro: João Bernardo - Economia dos Conflitos Sociais



Pgs. 302-326


"CAPÍTULO 6: "Reprodução em escala ampliada do capital"


223 - O valor só se mantém como tal quando reinserido em processos de valorização, o que significa que o capital é a reprodução do capital.


224 - Opinião de JB sobre a "questão do imperialismo": o capitalismo sempre precisou se expandir. O colonialismo foi indispensável à gênese do capital, ao que Marx denominou a acumulação primitiva, e continuou indispensável ao desenvolvimento do modo de produção. O imperialismo não constitui qualquer problema específico, cuja compreensão requeira uma elaboração teórica especial. A explicação do imperialismo é a mesma que justifica as próprias condições mais simples e básicas da existência do capitalismo. (...) O imperialismo não é uma etapa do capitalismo, mas um aspecto que o caracteriza em qualquer das suas etapas.


225 - Na realidade, o conteúdo do consumo e da procura não constitui uma categoria supra-histórica nem decorre de impulsos psicológicos eternos. Cada um consome e deseja consumir aquilo, e isso apenas, para que está condicionado pela variedade das relações sociais em que se insere. Por isso não conseguiu o capitalismo estender a outras civilizações o mercado dos seus produtos sem uma colossal promoção extramercantil destes bens, mediante a imposição dos padrões culturais europeus. Esse resultado só pôde ser obtido mediante confrontos diretamente sociais e foi prévio à extensão do contato mercantil propriamente dito, de que constituiu uma das condições.


226 - O processo fundamental foi um único e sempre o mesmo: o capitalismo despossuiu o grosso das populações daqueles meios de produção que lhes asseguravam a existência básica e com que proviam as necessidades correntes. A este desapossamento chama-se proletarização. Para isso, tanto nas metrópoles européias como a partir dos pólos de penetração coloniais implantados em outros continentes, teve de desarticular, recorrendo a várias formas de violência — todas elas extramercantis os sistemas econômicos em vigor. Contra o campesinato europeu, um processo decisivo consistiu na apropriação privada, pelos maiores donos de terras, dos espaços incultos até então abertos ao uso comum. Rompeu-se assim uma estrutura de produção agrária multissecular e que ao longo do regime senhorial se reforçara e se consolidara.


227 - Áreas onde a proletarização estava mais avançada e não havia um sistema escravagista limitando o trabalho assalariado: ...desde cedo, os conflitos sociais nestas áreas começaram a ocorrer exclusivamente no quadro do novo modo de produção. Rapidamente a força de trabalho deixou de se revoltar enquanto antigos camponeses, enquanto artesãos desapossados, para reivindicar enquanto produtora de mais-valia. Pelo mesmo motivo, desde cedo também, os capitalistas sentiram a pressão para responder às reivindicações mediante os mecanismos de incremento da produtividade.


228 - JB coloca que os historiadores têm dificuldade em reconhecer que também a Ásia caminhava para o progresso capitalista.  A Índia era então um importante produtor de manufaturas, que manifestava já a tendência para incorporar o artesanato rural nos estabelecimentos de fabricação urbanos. E na China, ao mesmo tempo que as colheitas eram comercializadas em larga escala, difundiam-se as manufaturas em ramos variados. No têxtil chegara-se mesmo a uma divisão muito acentuada do trabalho, quase em transição para a fase industrial propriamente dita. Tal como havia sucedido na Europa, uma camada de empresários privados era enquadrada e supervisionada pela burocracia estatal, num sistema certamente aparentado com o mercantilismo. (...) Apesar destas favoráveis condições de penetração econômica, não foi pelo aproveitamento das relações de mercado, mas pela recorrência à ação política direta, que as potências colonizadoras aí se introduziram e reiniciaram, nos seus termos próprios, o desenvolvimento capitalista. O colonialismo desarticulou os embriões desse sistema original.


229 - China e a proibição do ópio: Quando as autoridades imperiais pretenderam seriamente travar o contrabando de ópio, não foi aos mecanismos da produtividade nem aos automatismos do mercado que o capitalismo britânico recorreu, mas à guerra.


230 - O fato de ter permanecido - embora agora controlada pelo modo de produção capitalista - certa "economia tradicional" nos gigantes asiáticos limitou as potencialidades da exploração capitalista ao que entendi. É um círculo vicioso, pois a mera existência de um tão extenso setor de sobrevivência, vindo na continuação direta de formas tradicionais, oferece à força de trabalho um horizonte organizacional extracapitalista, desviando a contestação do campo da produção de mais-valia. Enfim, a já prévia dualidade dessas economias asiáticas foi agravada. O mais fácil desenvolvimento capitalista, decorrente do fato de ter-se processado já antes da penetração colonial, foi em boa parte contrabalançado pelo prevalecimento de um regime de mais-valia absoluta.


231 - Se comparamos o processo ocorrido na Europa e no Japão com o que embrionariamente se esboçava na Índia e na China, ou ainda com o que se verificou no império otomano, podemos concluir que o capitalismo foi um objetivo de evolução das sociedades providas de Estados fortes e centralizados, com uma burocracia numerosa. O papel do Estado e do que podemos considerar como uma camada de protogestores parece ter sido o fator determinante, e não qualquer particularização e dispersão de iniciativas empresariais, como pretendem os apologistas do mito livre-concorrencial. Uma vez que todas estas sociedades dotadas de Estados despóticos estavam lançadas numa evolução que a prazo as conduziria ao capitalismo, o fator decisivo passou a ser o ritmo das transformações operadas em cada uma. A que primeiro conseguisse reorganizar-se cabalmente nos moldes do novo modo de produção poderia substituir às outras a sua própria via de evolução, adquirindo uma superioridade decisiva e tornando-se, portanto, potência colonizadora. Foi o que sucedeu.


232 - África: Nos outros casos, embora fosse indubitável a presença do Estado, ele não atingiu nunca um grau de centralização que implicasse a supervisão despótica de uma área de poder, com a conseqüente proliferação burocrática. Mesmo os grandes impérios da África ao Sul do Saara foram, na realidade, federações um tanto frouxas de múltiplas sociedades locais, com uma pirâmide hierárquica ampla na base e de vértice não muito elevado. Não ocorria, por isso, qualquer desenvolvimento autóctone, por mais tênue ou embrionário que fosse, no sentido do capitalismoAs potências colonizadoras não puderam, portanto, empregar os mesmos métodos que aplicaram na China e na Índia, ou ainda nas nações em que se fragmentou o antigo império otomano. O capitalismo aqui só podia resultar — como resultou — da completa desarticulação das sociedades indígenas, não encontrando réplica em nenhum dos seus eixos estruturais. Houve forte luta. O colonizador não aproveitava as contradições destes sistemas para consolidar instituições que pudessem servir de eixo a um reinício da evolução capitalista e dispersar as restantes


233 - Quando a escravização e tráfico deixaram de ser interessante surgiram, coincidência ou não, as campanhas humanitárias. Na medida em que enfraquecera as sociedades africanas, a ampliação do tráfico humano favoreceu a ação colonizadora, mas depois, quando se tratava de implantar outro modo de produção, erguia-se como um obstáculo.


234 - Colonização portuguesa e o "imposto da palhota": ...as primeiras tentativas de cobrança desse imposto admitiam uma fase transitória, em que podia ser pago com gêneros, devendo depois a obrigação ser cumprida unicamente em dinheiro. Ora, a questão crucial — que resultava de uma imposição absolutamente exterior à esfera do mercado — consistia no fato de o único tipo de dinheiro aceito pela potência colonizadora para o pagamento do imposto ser aquele por ela emitido, o que obrigava os africanos a venderem previamente algo no mercado dominado pelos europeus, único lugar onde podiam obter esse dinheiro. (...) Quanto mais sistematicamente o imposto era cobrado, maior o número dos que tinham de se assalariar ao serviço do patronato europeu, quer fosse a administração colonial, quer as grandes companhias, ou ainda capitalistas particulares.


235 - ...Ao mesmo resultado procuraram ainda os colonialistas chegar por outras vias, nomeadamente confinando as populações autóctones em reservas de terra insuficientes para produzir o que necessitavam, de maneira a obrigá-las a assalariar-se fora de tais reservas. A expansão do mercado capitalista e o reforço da sua capacidade concorrencial só se converteram, portanto, em processos efetivos após a prévia desarticulação dos regimes econômicos existentes.


236 - Absolutamente alheia a quaisquer formas autóctones de desenvolvimento do capitalismo, a África subsaariana sofreu um processo de proletarização que resultou exclusivamente da desarticulação das economias tradicionais. Foi por isso que aqui as administrações coloniais mais demoraram a subverter as estruturas existentes, depararam mais com as revoltas freqüentes e repetidas, e recorreram mais sistematicamente à violência generalizada e à extrema crueldade nos casos individuais. Na lista dos horrores resultantes de cinco milênios de sociedades estatais, será difícil ultrapassar em atrocidade aquilo que por feroz ironia foi denominado de Estado Independente do Congo. Essas lutas visavam, porém, a preservação das sociedades tradicionais e, quanto mais ampla fosse a sua desarticulação, mais aquele objetivo se apresentava como único. O que significa que, de todas as áreas de colonização, foi nesta que os conflitos sociais menos incidiram na produção de mais-valia, sendo aqui, portanto, mínimas as pressões para o aumento da produtividade.


237 - Fases da expansão da força de trabalho produtiva - reprodução intensiva do capital: À medida ... que a mais-valia relativa hegemonizou os principais centros do capitalismo, este tipo de expansão tornou-se inadequado e, de qualquer modo, o sistema econômico passara já a abranger a totalidade do globo, sendo impossível recorrer ao aumento da sua área. Desde então, o desenvolvimento da força de trabalho tornou-se intensivo, o que quer dizer que, num dado conjunto populacional já globalmente inserido no capitalismo, aumenta o número dos trabalhadores produtivos e que, relativamente a cada um deles, o seu caráter produtivo é reforçado.


238 - ...Num estágio inicial assalariava-se em empresas apenas um número reduzido de pessoas por família, os elementos masculinos geralmente. (...) A partir do momento, porém, em que se acentuou o desenvolvimento da mais-valia relativa, e nas áreas onde ela se desenvolveu, esgotada já a possibilidade de ampliar as fronteiras do modo de produção, a proletarização intensificou-se mediante o aumento do número relativo de assalariados por família.


239 - Que a exploração passe a tomar como alvo preferencial o aspecto mental da atividade produtiva constitui, sem dúvida, uma remodelação profunda nas condições de existência da classe trabalhadora, quero dizer, na sua orgânica interna e no modo específico de relacionamento com os capitalistas. Mas esta reorganização não significa o término da classe trabalhadora.


240 - Existe também a proletarização dos gestores: ...Quando, porém, as cadeias empresariais de comando se reorganizam e deslocam, de forma a inibir a capacidade decisória de certas camadas, estas encontram-se expulsas da classe gestorial, mesmo que continuem a sentar-se no mesmo lugarSão as próprias funções que executam que são despromovidas e aqueles escriturários, aqueles contabilistas, aquelas secretárias que antes constituíam uma camada de gestores, inferior mas dotada de um efetivo, embora reduzido, poder de controle e de deliberação, deixam de controlar o que quer que seja e passam a ser trabalhadores produtivos no ramo das informações.


241 - Forças da proletarização: Por isso aí convergem, junto com os elementos despromovidos da classe gestorial e os criados em tradicionais famílias trabalhadoras, outros que resultam da proletarização de famílias até então dedicadas a atividades extracapitalistas.


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