Livro: Piketty - O Capital no Século XXI - Capítulo 12

                           

Livro: Piketty - O Capital no Século XXI



Pgs. 543-586


"CAPÍTULO 12: "A desigualdade mundial da riqueza no século XXI"


486 - Eu nem sabia disto aqui: No limite acadêmico, é de bom tom não ter muito apreço pelas listas de maiores fortunas publicadas por revistas (Forbes, nos Estados Unidos, e várias outras mundo afora). De fato, esses dados apresentam vieses graves e sérios problemas metodológicos (e isso é um eufemismo). Mas eles têm o mérito de existir e de tentar responder da melhor maneira possível a uma grande e legítima demanda social de informação sobre uma questão bem relevante dos nossos tempos: a distribuição mundial da fortuna e sua evolução. (...) A lista foi liderada por um bilionário japonês de 1987 a 1995, depois por um americano de 1995 a 2009 e, finalmente, por um mexicano desde 2010. (Livro é de 2012).



487 - Dados do ano do livro: Lembremos que o PIB mundial, expresso em paridade do poder de compra, é da ordem de 85 trilhões de dólares em 2012-2013 (cerca de 70 trilhões de euros) e que, de acordo com nossas estimativas, o total dos patrimônios privados (ativos imobiliários, profissionais e financeiros deduzidos de dívidas) é de cerca de quatro anos do PIB mundial, ou seja, da ordem de 340 trilhões de dólares (280 trilhões de euros).


488 - ...o mundo contabilizava cinco bilionários para cada cem milhões de habitantes adultos em 1987, e esse número subiu para trinta em 2013; os bilionários possuíam 0,4% da riqueza privada mundial em 1987, e eles passaram a deter mais de 1,5% em 2013, e com isso ultrapassaram o recorde anterior, atingido em 2008, às vésperas da crise financeira mundial e da falência do Lehman Brothers (ver o Gráfico 12.2)Contudo, essa forma de exprimir os dados permanece obscura: não há nada de surpreendente no fato de um grupo seis vezes maior de pessoas deter uma participação quatro vezes mais alta do patrimônio mundial.


489 - A única maneira de dar sentido a esses rankings de fortunas é examinar a evolução da riqueza detida por uma porcentagem fixa da população mundial, como, por exemplo, o vigésimo milionésimo mais rico da população adulta mundial — ou seja, cerca de 150 pessoas em três bilhões de adultos no fim dos anos 1980 e 225 pessoas em 4,5 bilhões de adultos no início dos anos 2010. Constata-se, assim, que o patrimônio médio desse grupo passou de pouco mais de 1,5 bilhão de dólares em 1987 para algo próximo de 15 bilhões em 2013, uma progressão média de 6,4% ao ano acima da inflação. 2 Se considerarmos agora o centésimo milionésimo mais rico da população mundial — isto é, trinta pessoas em três bilhões ao fim dos anos 1980 e 45 pessoas em 4,5 bilhões no início dos anos 2010 —, observamos que seus patrimônios médios passaram de pouco mais de 3 bilhões para perto de 35 bilhões de dólares, o que significa um aumento anual ainda mais elevado: cerca de 6,8% por ano acima da inflação. Em comparação, a riqueza média mundial por habitante adulto progrediu 2,1% ao ano, e a renda média mundial, 1,4% ao ano, como vemos na Tabela 12.1.



490 - ...Perceberemos que as conclusões dependem muito dos anos analisados. Por exemplo, se considerarmos o período 1990-2010, e não 1987-2013, a taxa de progressão real dos maiores patrimônios desce para cerca de 4% ao ano, em vez de 6-7%Isso se deve ao fato de que o ano de 1990 foi um pico para o ciclo financeiro e imobiliário mundial, enquanto 2010 foi um ponto baixo (ver o Gráfico 12.2). Esse ritmo de divergência poderia levar a concentração patrimonial mundial de 60% na mão dos  bilionários em 2100, calculou.



491 - Um alerta: Nas mídias, os patrimônios dos bilionários às vezes são expressos em proporção do fluxo anual da produção mundial (ou do PIB de determinado país, o que dá resultados assustadores); faz mais sentido exprimi-los em proporção do estoque patrimonial mundial.


492 - Listas de revistas e afins de bi ou milionários: Cada instituição quer ter seu próprio relatório, de preferência em papel couché. É bastante irônico ver instituições que vivem, em grande parte, de gerir fortunas tentarem preencher as lacunas deixadas pelas administrações oficiais de estatística e produzir um conhecimento desinteressado sobre a distribuição da riqueza no mundo. É necessário também reconhecer que esses relatórios são muitas vezes levados a fazer hipóteses e aproximações heroicas, nem sempre convincentes, para conseguir criar uma visão verdadeiramente “mundial” da riqueza.


493 - Coloca que a falta de dados organizados favorece todo tipo de lenda urbana, como o de que a França teria espantado os milionários (com seu IGF, creio): ...Por exemplo, as várias mídias francesas, acostumadas há anos a descrever a saída maciça das grandes fortunas (sem de fato verificar a informação de outra maneira a não ser por anedotas individuais), ficaram espantadas ao constatar, a cada outono desde 2010, nos relatório do Crédit Suisse, que a França aparece como a líder europeia das fortunas: o país sistematicamente figura na terceira colocação (atrás dos Estados Unidos e do Japão e nitidamente à frente do Reino Unido e da Alemanha) na lista dos países que abrigam o maior número de milionários, em dólares


494 - Perspectiva global da concentração patrimonial: Concretamente, o 0,1% mais rico do planeta, ou seja, cerca de 4,5 milhões de adultos em 4,5 bilhões, parece deter um patrimônio líquido da ordem de 10 milhões de euros, quase duzentas vezes o patrimônio médio mundial (por volta de 60.000 euros por adulto), daí uma participação no patrimônio total de quase 20%. O 1% mais rico, cerca de 45 milhões de adultos sobre 4,5 bilhões, possui um patrimônio médio da ordem de 3 milhões de euros (trata-se, grosso modo, da população que ultrapassa 1 milhão de euros de patrimônio individual), o que equivale a cinquenta vezes o patrimônio médio, de modo que a participação no patrimônio total é de 50%. (...) Em relação à distribuição mundial das rendas individuais, parece que o salto na participação do centésimo superior (que não se dá em todos os países) não impediu uma baixa do coeficiente de Gini em contexto mundial (apesar de haver muitas incertezas ligadas à medida da desigualdade em certos países, especialmente na China).


495 - ...o grupo social constituído pelo milésimo superior (4,5 milhões de pessoas que detêm em média 10 milhões de euros) possui cerca de 20% da riqueza mundial, o que é muito mais substancial do que o 1,5% detido pelos bilionários da Forbes.


496 - Piketty se pergunta sobre a capacidade de rendimento do milésimo superior. Seria igual a dos bilionários? ...se o milésimo superior se beneficia de um crescimento de seu patrimônio de 6% ao ano, enquanto a progressão do patrimônio médio é de apenas 2% ao ano, isso significa que ao fim de trinta anos sua participação no capital do planeta terá mais do que triplicado. O milésimo superior possuirá mais de 60% da riqueza mundial, o que é muito difícil de conceber no contexto das instituições políticas atuais, a não ser que imaginemos um sistema repressivo particularmente eficaz ou então um aparelho de persuasão muito potente, ou os dois ao mesmo tempoE, ainda que esse grupo se beneficie de um crescimento de patrimônio de apenas 4% ao ano, sua parcela, mesmo assim, quase dobrará de tamanho, passando para cerca de 40% da riqueza mundial no intervalo de trinta anos. Haveria um empobrecimento, no mínimo relativo, das classes médias para sustentar essa divergência.


497 - Meros herdeiros ou inventores? Todo mundo pode ganhar dinheiro a uma taxa parecida. Analisa os dados de 1990 a 2010 para constatar isso. Liliane Bettencourt nunca trabalhou, mas isso não impediu que sua fortuna crescesse tão rápido quanto a de Bill Gates, o inventor, cujo patrimônio continua a crescer com a mesma velocidade de sempre após ele ter cessado suas atividades profissionais. Resumindo melhor: Uma vez lançada a fortuna, a dinâmica da riqueza segue sua lógica própria e um capital pode continuar avançando a um ritmo sustentado por décadas apenas por conta do seu tamanho


498 - ...Podemos também notar que Steve Jobs — a encarnação, no imaginário coletivo, do empreendedor simpático e da fortuna merecida, ainda mais do que Bill Gates — possuía em 2011, no auge de sua glória e do preço das ações da Apple, 8 bilhões de dólares, seis vezes menos do que o fundador da Microsoft (que, no entanto, foi menos criativo do que o fundador da Apple, segundo vários especialistas) e três vezes menos do que Liliane Bettencourt.


499 - Se descermos para o patamar de alguns bilhões de dólares (de acordo com a Forbes, existem a cada ano várias centenas de novas fortunas nesse nível no mundo), e, mais ainda, ao nível de algumas dezenas ou centenas de milhões de euros, é provável que uma grande parte das fortunas herdadas tome a forma de carteiras relativamente diversificadas. Nesse caso, é muito difícil para os jornalistas das revistas detectá-las (ainda mais porque, em geral, essas pessoas têm muito menos vontade de se tornar famosas do que os empresários). Por esse simples viés estatístico, é inevitável que as listas de fortunas tendam a subestimar o tamanho das fortunas herdadas.


500 - As listas publicadas pela revista propõem, por sinal, uma divisão dos bilionários em três grupos: os empreendedores puros, os herdeiros puros e as pessoas que herdaram uma fortuna e a fizeram frutificar. De acordo com os dados publicados pela Forbes, em geral cada um desses grupos representa em torno de um terço do total, mas existe uma tendência — segundo a revista — de haver cada vez menos herdeiros puros e mais herdeiros parciais. O problema é que a Forbes nunca apresentou nenhuma definição precisa desses diferentes grupos (sobretudo a respeito da fronteira exata entre herdeiros puros e parciais), e nada é dito sobre os montantes das heranças. Enfim, sendo verdade, seria um patamar inferior ao da Belle Époque de participação de heranças herdadas nas grandes fortunas (cerca de 80 a 90%, não metade).


501 - Mecanismo r > g: Os empreendedores tendem, assim, a se transformar em rentistas, não somente com o passar das gerações, mas também ao longo do curso de uma mesma vida, especialmente porque as existências individuais se estendem por muito tempo: o fato de ter tido boas ideias aos quarenta anos não significa que se vá tê-las aos noventa, não mais do que a geração seguinte.


502 - Critica a "ultraexaltação", digamos assim, a Bill Gates. Para afirmações particularmente fortes sobre os méritos comparados de Carlos Slim e de Bill Gates, e infelizmente sem se apoiar em nenhuma informação precisa, ver, por exemplo, Acemoglu, D. e Robinson, J. Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity and Poverty. Nova York: Crown Publishers, 2012, p. 34-41. A dureza do tom surpreende, ainda mais porque o livro não trata de fato do tema da distribuição ideal das fortunas. Microsoft: ...imagino que essas contribuições tenham se apoiado no trabalho de milhares de engenheiros e pesquisadores em eletrônica e informática fundamental, sem os quais nenhuma invenção nesse campo teria sido possível, mas que não patentearam seus artigos científicos.


503 - Coloca que, em geral, mídia e analistas do Ocidente colocam as fortunas dos orientais como imorais ou os taxam de esbanjadores (em vez de investidores) enquanto enaltecem as fortunas ocidentais, fazendo mais vista grossa aos herdeiros esbanjadores do lado de cá, digamos assim. 


504 - A propriedade "sagrada": Vejamos um último exemplo, ainda mais extremo. Em fevereiro de 2012, a justiça francesa tomou mais de duzentos metros cúbicos de bens (automóveis de luxo, quadros de mestres da pintura etc.) de um palacete localizado na avenida Foch, em Paris, que pertence a Teodorin Obiang, filho do ditador da Guiné Equatorial. Longe de mim querer defender o bilionário: não há dúvida de que sua participação na exploração de madeira guineense (de onde ele tira, ao que tudo indica, a maior parte de sua renda) foi adquirida ilegalmente e que os recursos foram roubados dos habitantes da Guiné Equatorial. O caso é, além disso, característico e instrutivo porque mostra que a propriedade privada é um pouco menos sagrada do que às vezes se diz e que é tecnicamente possível, quando assim se deseja, encontrar uma saída no complexo labirinto das várias sociedades de fachada com as quais Teodorin Obiang administrava seus bens e suas participações. Mas não há dúvida de que acharemos, sem dificuldade, em Paris ou em Londres, outros exemplos de fortunas individuais que, no fim, se formaram a partir de apropriações privadas de recursos naturais, levando em conta, por exemplo, as oligarquias russas ou catarianas.


505 - Em certos casos, a acumulação do capital começa ... pelo roubo, e a arbitrariedade de seu rendimento muitas vezes volta a perpetuar o roubo inicial.


506 - Existem hoje mais de oitocentas universidades públicas e privadas nos Estados Unidos que administram fundos de dotações. Esses fundos vão desde algumas dezenas de milhões de dólares, como o da North Iowa Community College (classificada em 785º em 2012, com uma dotação de 11,5 milhões de dólares), a dezenas de bilhões de dólares. As primeiras universidades da lista são invariavelmente Harvard (com, no início dos anos 2010, cerca de 30 bilhões de dólares), seguida por Yale (perto de 20 bilhões), depois Princeton e Stanford com mais de 15 bilhões. Então vêm o MIT e a Columbia, com um pouco menos de 10 bilhões, as universidades de Chicago e da Pensilvânia, que têm em torno de 7 bilhões, e assim por diante. Total de ativos somados: 400 bilhões de dólares em 2010.


507 - ...Isso representa, é claro, menos de 1% do total dos patrimônios privados detido pelos domicílios americanos. (...) A dotação em capital total das universidades americanas representa o equivalente a cerca de 3% do PIB americano, e a renda produzida a cada ano é da ordem de 0,2% do PIB, ou seja, 10% das despesas totais do ensino superior nos Estados Unidos. Mas essa parte pode subir a 30-40% dos recursos nas universidades mais bem dotadas. Por outro lado, essas dotações em capital desempenham um papel na governança e na autonomia dos estabelecimentos que muitas vezes ultrapassa seu peso nos recursos totais. O retorno deles/delas? Elevadíssimo. E rendimento líquido real! Não devem nada aos bilionários da Forbes:



508 - ...Piketty coloca que as carteiras são bem diversificadas, com muita renda variável nacional e internacional, títulos privados e pouca participação dos títulos do tesouro americano (especialmente raros nas maiores). 


509 - Interessante: À medida que subimos na hierarquia das dotações, observamos um enorme uso de “estratégias alternativas”, ou seja, investimentos com retorno muito alto, como as ações não cotadas (private equity) e principalmente ações não cotadas estrangeiras (que exigem uma grande expertise); os fundos especulativos (hedge funds); os derivativos; e as alocações imobiliárias e em matérias-primas: energia, recursos naturais, diversos produtos derivados de matérias-primas (trata-se ainda de investimentos que exigem uma expertise muito específica e são potencialmente muito rentáveis). Se examinarmos o montante aplicado nesses “investimentos alternativos”, cujo único ponto em comum é sair do âmbito dos investimentos financeiros clássicos (ações, títulos) que são acessíveis a todos, constatamos que esses investimentos representam pouco mais de 10% das carteiras para as dotações inferiores a 50 milhões de euros, depois atingem rapidamente 25% entre 50 e 100 milhões de euros, 35% entre 100 e 500 milhões de euros, 45% entre 500 milhões e 1 bilhão de euros, para finalmente culminar com mais de 60% da carteira para as dotações superiores a 1 bilhão de euros. Os dados disponíveis, que têm o mérito de serem públicos e muito detalhados, permitem constatar, sem nenhuma dúvida, que esses investimentos alternativos são os responsáveis por possibilitar às maiores dotações obter rendimentos reais que chegam a 10% ao ano, enquanto as dotações menores devem se contentar com 5%.


510 - A volatilidade meio que não muda muito entre todas essas instituições/estratégias. Em outras palavras, o rendimento mais alto obtido pelas maiores dotações não se deve ao fato de essas instituições adotarem uma estratégia com mais risco, mas, sobretudo, por adotarem uma estratégia de investimento mais sofisticada, permitindo o acesso a carteiras com estruturas consistentemente mais rentáveis.


511 - O papel da escala aqui: ...Harvard gasta hoje quase 100 milhões de dólares por ano em management costs para administrar sua dotação em capital. Isso representa uma boa quantia para se remunerar equipes preparadas de gestores de carteiras, capazes de descobrir as melhores oportunidades de investimento alternativo pelo mundo. No entanto, na escala da dotação de Harvard (cerca de 30 bilhões de dólares), significa um custo de gestão de pouco mais do que 0,3% ao ano. Se essa escolha permitir obter um retorno anual de 10% em vez de 5%, é claro que é um ótimo negócio. Contudo, para uma universidade cuja dotação seria de apenas 1 bilhão de dólares (o que já é uma bela dotação), não existe a possibilidade de pagar 100 milhões de dólares para uma equipe de gestores: isso representaria 10% de custo de gestão por ano.


512 - É particularmente importante perceber que são esses retornos que explicam, em grande parte, a prosperidade das maiores universidades americanas, e não as doações dos antigos alunos, que oferecem quantias muito mais reduzidas, da ordem de cinco ou dez vezes menores do que o retorno anual obtido pela dotação. (...) Por exemplo, no caso de Harvard, os relatórios financeiros anuais indicam que a dotação gerou um retorno real da ordem de 10% ao ano entre 1990 e 2010, enquanto as novas doações incorporadas na dotação representam em média cerca de 2% ao ano.


513 - Os patrimônios universitários não têm os perigos da dilapidação por herdeiro irresponsável. São esses “choques” dentro das trajetórias familiares que permitem — em princípio — evitar um crescimento infinito das desigualdades em termos individuais e convergir para uma distribuição de equilíbrio do patrimônio.


514 - Fundações nem sempre são doações desinteressadas. Tanto é assim que muitos optam por manter forte controle sobre ativos (a Bill e Melinda, por exemplo, é contada como fortuna pessoal na Forbes). É também interessante notar que as doações declaradas ao fisco sofrem uma enorme queda quando as condições de controle se tornam mais duras (por exemplo, quando se exige que os doadores apresentem recibos mais precisos ou que as fundações apresentem contas mais detalhadas a fim de atestar que seu objetivo oficial é bem respeitado e que os usos privados não são excessivos), o que confirma a ideia de uma porosidade entre os usos privados e públicos dessas estruturas. Menciona, por fim, que alguns bilionários admitem expressamente que a fundação criada serve a meros fins sucessórios. Evitar brigas familiares e coisas do tipo.


515 - Crê que os ricos possuem melhor condição de "surfar" as variações e ciclos inflacionários. Por certo podemos pensar que a inflação também tem o efeito de reduzir um pouco o retorno puro médio do capital, no sentido de que ela obriga as pessoas a darem mais atenção à alocação de seus bens. No mais... a inflação é um instrumento extremamente grosseiro, até mesmo contraprodutivo, se o objetivo é evitar o retorno da sociedade de rentistas e, de maneira mais geral, das desigualdades patrimoniais. O imposto progressivo sobre o capital é uma instituição bem mais apropriada, tanto por razões de transparência democrática quanto por eficácia real.


516 - Cita, agora, fundos soberanos como os da Noruega. O rendimento parece ser um pouco menor (dados dificultam a comparação com os das universidades), porém, são bons.


517 - Isto aqui já mudou esta década? Eu não sei: Se examinarmos os outros fundos soberanos, e em particular os do Oriente Médio, constatamos, infelizmente, uma opacidade muito maior. Os relatórios financeiros são com frequência resumidos demais. É quase impossível saber com clareza a estratégia de investimento e os retornos obtidos são mencionados de maneira imprecisa e por vezes pouco coerente de um ano para outro. Os últimos relatórios publicados pela Abu Dhabi Investment Authority, que administra o mais importante fundo soberano internacional (quase tão grande quanto o da Noruega), anunciam um rendimento real médio superior a 7% ao ano para o período 1990-2010 e superior a 8% para o período 1980-2010. Levando em conta os retornos observados para as dotações universitárias, isso parece realmente plausível. No entanto, devido à ausência de informações anuais detalhadas, é difícil tirar muitas conclusões.


518 - Não sei como estão, hoje, esses dados demográficos do chamado "mundo árabe": Os Emirados Árabes Unidos (do qual Abu Dabi é o maior componente) tinham, de acordo com o último recenseamento de 2010, uma população nacional de um milhão de habitantes (e mais de sete milhões de trabalhadores estrangeiros). A população nacional do Kuwait é semelhante. O Catar contabiliza cerca de trezentos mil cidadãos e 1,5 milhão de estrangeiros. A Arábia Saudita tem sozinha dez milhões de estrangeiros (além da sua população nacional, de quase vinte milhões). Enquanto isso, Egito e Irã tinham cerca de 80 milhões de pessoas. Grandões do Oriente Médio.


519 - Estratégia diferente/conservadora na Arábia? De acordo com os documentos oficiais, o rendimento médio obtido para as reservas da Arábia Saudita não ultrapassa 2- 3%, o que se explica sobretudo pelo fato de que uma grande parte dessas reservas é alocada em títulos da dívida pública americana. Piketty especula motivos do jogo geopolítico: ...Se os Estados Unidos, apoiados por outros países ocidentais, não tivessem retirado o exército iraquiano do Kuwait em 1991, é provável que o Iraque tivesse em seguida ameaçado os campos de petróleo sauditas, e não podemos excluir que outros países da região, como o Irã, teriam entrado nesse jogo militar regional de redistribuição da renda vinda do petróleo. Seria bom manter o aliado.


520 - De acordo com estimativas disponíveis, notoriamente imperfeitas, a totalidade dos investimentos dos fundos soberanos representava em 2013 pouco mais de 5,3 trilhões de dólares, dos quais cerca de 3,2 trilhões eram fundos dos países exportadores de petróleo. (...) Para lembrarmos as ordens de grandeza, podemos notar que se trata de quase a mesma massa da fortuna total dos bilionários elencada pela Forbes. (...) Em outras palavras, no mundo de hoje os bilionários possuem aproximadamente 1,5% do total das riquezas privadas no mundo, e os fundos soberanos também. Podemos nos tranquilizar sabendo que isso ainda deixa 97% do capital mundial para o resto do planeta.


521 - Outro aspecto: ...a boa parte do capital mundial toma formas pouco líquidas (particularmente sob a forma de capital imobiliário e capital de empresas não permutável no mercado financeiro), de modo que a participação dos fundos soberanos — e em menor medida, dos bilionários — nos ativos financeiros imediatamente mobilizáveis, por exemplo, para retomar uma empresa em falência, comprar um time de futebol ou investir num bairro em dificuldade, suprindo assim as carências de um Estado sem dinheiro, é na realidade maior


522 - ...Contexto: Se excluirmos os imóveis e os ativos profissionais não cotados, então os ativos financeiros em senso estrito representam, no início dos anos 2010, entre um quarto e um terço do patrimônio privado mundial, ou seja, entre um ano e 1,5 ano do PIB mundial (e não quatro anos). Os fundos soberanos representam, assim, o equivalente a 5% dos ativos financeiros mundiais. Referimo-nos aqui aos ativos financeiros líquidos detidos pelas famílias ou pelos governos. Considerando as altas participações cruzadas entre sociedades financeiras e não financeiras, não só dentro dos países como entre países, os ativos financeiros brutos são muito mais elevados: mais de três anos do PIB mundial.


523 - Os fundos petrolíferos continuarão a crescer? Rendas de recursos naturais costumam oscilar entre 2 a 5% (picos de "1980" e "2010", por exemplo) do PIB mundial ao que parece. (No fundo, a coisa é um tanto imprevisível, mas já há um enorme tamanho para "recapitalizações"/diversificações. Piketty "se empolga" e chega a falar de barril a 200 dólares em 2020). 


524 - Projeções trabalham com uma Ásia forte na acumulação de capital no Século XXI, levando todos os continentes - à exceção da África e sua demografia particularmente jovem - a uma relação renda-capital próxima dos 700%.



525 - Traz especulações sobre taxa de poupança asiática: ...Por exemplo, se a China poupar 20% de sua renda nacional até 2100, e a Europa e os Estados Unidos pouparem 10%, uma boa parte do Velho Continente e do Novo Mundo serão possuídos, até o final do século, pelos gigantescos fundos de pensão chineses.


526 - ...Em todo caso, essa ameaça de divergência internacional ligada à posse gradual dos países ricos pela China (ou pelos fundos dos exportadores de petróleo) parece menos crível e perigosa do que uma divergência do tipo oligárquica, ou seja, um processo no qual os países ricos seriam possuídos pelos próprios bilionários ou, de maneira mais geral, um cenário em que o conjunto de países (incluindo a China e os países exportadores de petróleo) seria cada vez mais detido pelos bilionários e por outros multimilionários do planeta. 


527 - Sobre as percepções francesas, coloca: ...De onde vem, então, esse medo, esse sentimento de perda de posse, em parte irracional? Ele se explica, sem dúvida, por uma tendência universal a responsabilizar os outros pelas dificuldades domésticas. Por exemplo, por vezes imaginamos na França que os ricos compradores estrangeiros são responsáveis pelo aquecimento do mercado imobiliário parisiense. Ora, se examinarmos minuciosamente a evolução das transações em função da identidade dos compradores e do tipo do apartamento, constataremos que a progressão do número de compradores estrangeiros (ou residentes no exterior) permite explicar apenas 3% do aumento dos preços. (...) Para a maioria dos habitantes dos países ricos, sobretudo da Europa e da França, a ideia de que as famílias europeias detêm vinte vezes mais capital do que as reservas chinesas parece relativamente abstrata, na medida em que se trata de patrimônios privados e não de fundos soberanos imediatamente mobilizáveis, como, por exemplo, para ajudar a Grécia, como gentilmente propôs a China nos últimos anos.


528 - Países ricos e propriedade de ativos: É necessário, porém, insistir no fato de que se trata de uma posição ligeiramente negativa (que representa 1% do patrimônio mundial). Em todo caso, como já vimos diversas vezes, vivemos num período histórico em que as posições internacionais são mais ou menos equilibradas, ao menos em comparação com o período colonial, quando a posição positiva dos países ricos em relação ao resto do mundo era incomparavelmente maior.



529 - ...O problema com esses dados? ...se adicionarmos o conjunto de estatísticas financeiras para os diferentes países, chegaremos à conclusão de que os países pobres também apresentam uma posição negativa e que o planeta como um todo tem uma posição nitidamente negativa. Em outras palavras, seríamos possuídos por Marte. Trata-se de uma “anomalia estatística” relativamente antiga, mas as organizações internacionais perceberam seu agravamento ao longo dos anos (o balanço de pagamentos é regularmente negativo no mundo inteiro: mais dinheiro sai dos países do que entra neles, o que em tese é impossível), sem que possa de fato ser explicado. É necessário ressaltar que essas estatísticas financeiras e esses balanços de pagamentos concernem em princípio ao conjunto dos territórios do planeta (os bancos situados nos paraísos fiscais têm, em teoria, a obrigação de transmitir suas contas às instituições internacionais, pelo menos de maneira global) e que muitos tipos de vieses e erros de mensuração podem a priori explicar essa “anomalia”.


530 - Os ativos financeiros não declarados mantidos em paraísos fiscais são maiores do que a dívida estrangeira líquida oficial dos países ricos. (...) Ao confrontar o conjunto de fontes disponíveis e investigar os dados bancários suíços inexplorados até hoje, Gabriel Zucman revelou que a explicação mais plausível para essa diferença é a existência de uma massa importante de ativos financeiros não registrados detidos nos paraísos fiscais. (Ou seja, próximo de 7-8% do total dos ativos financeiros líquidos mundiais (ver mais acima).) Sua estimativa, prudente, é que essa massa representa o equivalente a quase 10% do PIB mundial. Certas estimativas realizadas por organizações não governamentais concluem que há massas ainda maiores (até o dobro ou o triplo). No estado atual das fontes disponíveis, a estimativa de Zucman me parece um pouco mais realista.


531 - ...tudo indica que a maioria desses ativos financeiros localizados nos paraísos fiscais é detida por residentes dos países ricos (no mínimo três quartos). A conclusão é evidente: a posição patrimonial dos países ricos em relação ao resto do mundo é na verdade positiva (os países ricos possuem em média os países pobres, e não o inverso, o que não chega a ser surpreendente), mas essa evidência é mascarada pelo fato de que os habitantes mais afortunados dos países ricos ocultam uma parte de seus ativos nos paraísos fiscais. Esse resultado significa, em particular, que a forte alta dos patrimônios privados — em proporção à renda nacional — observados nos países ricos ao longo das últimas décadas, que analisamos na Segunda Parte, na realidade é ainda um pouco maior do que estimamos a partir das contas oficiais. O mesmo ocorre com a tendência de alta da participação dos grandes patrimônios na riqueza total.


532 - Segundo uma estimativa realizada por Roine e Waldenström, levar em conta os ativos possuídos no exterior (estimados a partir das incoerências do balanço de pagamentos sueco) pode conduzir a certas hipóteses que reaproximam muito a participação do centésimo superior sueco ao nível constatado nos Estados Unidos (que deveria, sem dúvida, ser relevante também).



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