Livro: Piketty - O Capital no Século XXI - Capítulo 11
Livro: Piketty - O Capital no Século XXI
Pgs. 478-542
"CAPÍTULO 11: "Mérito e herança no longo prazo"
431 - Qual a natureza do capital atual? É mais acumulado pelo trabalho de uma longa vida? É mais fruto de herança? É muito provável que a herança desempenhe no século XXI um papel significativo e comparável ao que ela teve no passado.
432 - ...Adianta a coisa: A desigualdade r > g significa de certa forma que o passado tende a devorar o presente: as riquezas vindas do passado progridem automaticamente mais rápido — sem que seja necessário trabalhar — do que as riquezas produzidas pelo trabalho, a partir das quais é possível poupar. De maneira quase inescapável, isso tende a gerar uma importância desproporcional e duradoura das desigualdades criadas no passado e, portanto, das heranças. Ao menos em alguns países isso pode acontecer, Herança será importantíssima.
433 - Possível nova configuração do rentismo: ...Entretanto, isso não significa que a estrutura da desigualdade no século XXI será a mesma que existiu no século XIX, tanto porque a concentração de riquezas é menos extrema (hoje há mais rentistas pequenos e médios e menos rentistas muito grandes, ao menos por ora), como porque a hierarquia das rendas do trabalho tende a se ampliar (a ascensão dos superexecutivos) e também porque as duas dimensões, riqueza e trabalho, estão mais correlacionadas do que antes. É possível ser ao mesmo tempo um superexecutivo e um “rentista médio” no século XXI: aliás, a nova ordem meritocrática recomenda essa aliança, em detrimento do trabalhador pequeno e médio, sobretudo se ele for um rentista minúsculo.
434 - O Gráfico 11.1 ilustra a evolução do fluxo de herança na França entre 1820 e 2010. Médias decenais suavizarão a coisa:
435 - ...Em primeiro lugar, o fluxo de herança representa, a cada ano, o equivalente a 20-25% da renda nacional no século XIX, com uma ligeira tendência de alta no fim do século. Veremos que se trata de um nível extremamente elevado para o fluxo anual e que isso corresponde a uma situação em que a quase totalidade do estoque de riqueza provém da herança. Se a herança é um tema onipresente nos romances do século XIX, não é apenas graças à imaginação dos escritores, e em particular de Balzac, ele mesmo crivado de dívidas e compelido a escrever sem parar para saldá-las.
436 - ... Nos anos 1950-1960, as heranças e doações somavam apenas o equivalente a alguns pontos de renda nacional por ano, de modo que podemos imaginar legitimamente que a herança quase desapareceu e que o capital, em geral menos importante do que no passado, a partir de então era uma substância a ser acumulada por conta própria, por meio da poupança e do esforço.
437 - Doações são significativas na França. Para a nossa sorte, as doações são relativamente bem registradas na França (apesar de um pouco subestimadas), o que não é o caso nos outros países. No mais, muitas páginas sobre a "mera" mensuração da coisa toda.
438 - A importância (o impacto) da herança depende do estoque de capital total (riqueza) de uma sociedade; da taxa de mortalidade (Numa sociedade onde todos fossem eternos e a taxa de mortalidade m fosse nula, a herança desapareceria) e da relação μ entre a riqueza média no momento do óbito e a riqueza média dos vivos.
439 - ...Suponhamos que o patrimônio médio de pessoas na idade de falecer seja o mesmo que o do conjunto da população. Nesse caso, μ = 1, e o fluxo de herança by será igual ao produto da taxa de mortalidade m e da relação capital / renda β. Por exemplo, se a relação capital / renda β é igual a 600% (o estoque de riqueza privada representa seis anos de renda nacional) e a taxa de mortalidade da população adulta é de 2% ao ano, então o fluxo de herança anual será automaticamente igual a 12% da renda nacional. (...) Se o patrimônio dos falecidos for em média duas vezes mais alto que o dos vivos, ou seja, se μ = 2, o fluxo anual de herança será automaticamente igual a 24% da renda nacional (sempre para β = 6 e m = 2%), mais ou menos o nível observado no século XIX e no início do século XX.
440 - ...Por outro lado, numa sociedade em que o patrimônio tivesse por função principal financiar os anos de aposentadoria e as pessoas escolhessem consumir ao longo da aposentadoria o capital acumulado em sua vida ativa (por exemplo, por meio das rendas anuais ou “anuidades” pagas por seus fundos de pensão ou por seu capital de aposentadoria e se estendendo até o falecimento) — seguindo assim a teoria pura da “riqueza do ciclo de vida” (life-cycle wealth), desenvolvida nos anos 1950-1960 pelo economista ítalo-americano Franco Modigliani —, por definição a relação μ seria nula, uma vez que cada um se organizaria para morrer sem capital ou ao menos com um capital bem reduzido.
441 - ...A teoria de Modigliani oferece uma visão tranquilizadora e unidimensional da desigualdade social, segundo a qual as desigualdades do capital são o simples deslocamento das desigualdades do trabalho no tempo. (...) Essa teoria fez grande sucesso durante os Trinta Gloriosos, época em que a sociologia funcionalista americana — sobretudo a de Talcott Parsons — queria, ela também, descrever um mundo de classes médias e de executivos em que a herança teria quase desaparecido, 6 e é ainda hoje muito popular entre os baby-boomers. (...) É claro que as qualificações e as competências humanas progrediram muito na história, mas o capital não humano também progrediu em proporções equivalentes.
442 - A expectativa de vida mais longa também tiraria a força natural da herança, em tese, mas não impediu a reversão de tendência no meio do século XX. (A previsão de subida da taxa no século XXI: A explicação para isso é a chegada à idade de falecimento dos baby-boomers, mais numerosos do que as gerações anteriores (porém mais ou menos de mesmo tamanho que as seguintes))
443 - No século XIX, a população permaneceu quase estacionária e a expectativa de vida era de cerca de sessenta anos — ou seja, uma duração de vida adulta pouco superior a quarenta anos. As taxas de mortalidade eram, assim, próximas de 1/40, nesse caso cerca de 2,2%. Já no século XXI, a população — de acordo com várias previsões oficiais — deverá novamente se estabilizar, com uma expectativa de vida próxima a oitenta anos, ou seja, uma duração de vida adulta da ordem de sessenta anos e uma taxa de mortalidade em regime estacionário de 1/65, ou em torno de 1,4-1,5%, levando em conta o leve crescimento demográfico. No longo prazo, num país desenvolvido e demograficamente quase estagnado como a França (e onde o crescimento da população se deve sobretudo ao envelhecimento), a queda da taxa de mortalidade adulta gira em torno de um terço.
444 - Desse ponto de vista, a França não é o país onde esse efeito será mais intenso: nos países europeus em que a população começou a declinar significativamente ou não está longe disso (com uma redução nítida do tamanho das gerações) — em particular a Alemanha, a Itália e a Espanha, bem como, é claro, no Japão —, esse mesmo fenômeno levará, na primeira metade do século XXI, a uma alta da taxa de mortalidade adulta muito mais forte do que na França e fará com que o volume de transmissão patrimonial cresça automaticamente. O envelhecimento da população adia os óbitos, mas não os elimina: só um aumento forte e contínuo do tamanho das gerações permitirá reduzir estrutural e permanentemente a taxa de mortalidade e o peso da herança.
445 - Heranças e possível futuro da demografia: Na França, onde se morrerá em média entre os oitenta e 85 anos no século XXI, a mortalidade adulta se estabilizará em menos de 1,5% ao ano, contra 2,2% no século XIX, quando se morria com pouco mais de sessenta anos. Esse aumento da idade média de falecimento conduziu automaticamente a uma alta semelhante da idade média no momento da herança. No século XIX, recebia-se a herança em média aos trinta anos de idade; no século XXI, isso acontecerá com mais frequência em torno dos cinquenta anos. Como indica o Gráfico 11.3, a diferença entre as idades médias no momento do óbito e no momento da herança permaneceu em torno dos trinta anos, pela simples razão de que a idade média do nascimento dos filhos — o que costumamos chamar de “duração da geração” — se estabeleceu de maneira relativamente estável em torno de trinta anos no longo prazo (perceberemos, contudo, uma leve alta neste início de século XXI).
446 - Contratendências no Século XXI: ...se as pessoas estão morrendo e recebendo a herança mais tarde, isso significa que ela esteja perdendo importância? Não necessariamente, pois o aumento da importância das doações compensou em parte esse efeito, como veremos mais adiante, e também porque herdamos mais tarde montantes maiores, uma vez que os patrimônios também tendem a envelhecer numa sociedade cada vez mais idosa.
447 - O fato de receber a herança mais tardiamente pode obrigar mais pessoas do que antes a escolherem uma profissão. Contudo, isso é compensado pelos maiores montantes herdados, tão superiores que podem tomar a forma de doações antecipadas. Em todo caso, é mais uma diferença de grau do que a ruptura civilizacional que muitos imaginam.
448 - O "ciclo da vida" de Modigliani não tem muita base empírica: ...ao longo dos dois últimos séculos, dos anos 1820 aos anos 2010, os falecidos foram sempre — em média — mais ricos do que os vivos na França: a relação μ sempre foi superior a 100% (e em geral muito superior a 100%), à exceção do período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, nos anos 1940-1950, quando a relação não reintegrava as doações feitas antes do óbito e era ligeiramente inferior a 100%.
449 - Seguridade social e necessidade de poupar menos em algumas sociedades em que ela é forte: Segundo a expressão consagrada, a aposentadoria por repartição é “o patrimônio daqueles que não têm patrimônio”. Relação capital/renda tende a ser menor do que poderia onde não se precisa poupar muito.
450 - Doações: Neste início de século XXI, o capital transmitido por doações é quase tão importante quanto as heranças propriamente ditas. (...) os falecidos já transmitiram cerca de metade de seus ativos. Se reintegrássemos no patrimônio dos defuntos as doações feitas antes do óbito, notaríamos que a relação μ é na realidade superior a 220%: o patrimônio corrigido dos falecidos é mais de duas vezes mais alto que o dos vivos. Trata-se, na verdade, de uma nova era de ouro das doações, muito maior do que a do século XIX. Geralmente são imóveis para os filhos. (...) A importância crescente das doações desde os anos 1970-1980 permite reduzir um pouco a idade média dos recebedores: nos anos 2000-2010, a idade média no momento da herança se aproximava de 45 a cinquenta anos, mas a idade média no momento da doação era da ordem de 35 a quarenta anos.
451 - .... Em 1820, as pessoas idosas eram, em média, um pouco mais ricas do que os quinquagenários (escolhidos como grupo de referência): em média os sexagenários eram 34% mais ricos, e os octogenários eram 53% mais ricos. Mas essa diferença não parou de crescer. Em 1900-1910, o patrimônio médio detido pelos sexagenários e septuagenários era da ordem de 60-80% maior do que o dos quinquagenários, e os octogenários eram 2,5 vezes mais ricos. E isso porque estamos tratando da média para a França como um todo. Se for só Paris, piora. (Vale destacar que essas estimativas consideram uma correção relativamente forte para a mortalidade diferencial (ou seja, o fato de que as pessoas mais ricas vivem em média mais anos), fenômeno importante, mas que não explica o perfil descrito aqui)
452 - Os idosos não precisam nem poupar tudo pra crescer até acima de "g": ...Suponhamos, por exemplo, que essas pessoas obtenham um rendimento de 5%, consumam dois quintos disso e reinvistam os três quintos restantes. O patrimônio, então, progredirá a 3% ao ano, e elas serão, aos 85 anos, mais de duas vezes mais ricas do que eram aos sessenta anos.
453 - Ao que entendi, o Século XXI tende a ser ainda menos "meritocrático" que o XIX: Entre 1870 e 1914, as fortunas francesas ou parisienses observadas nas idades de cinquenta ou sessenta anos não eram herdadas: ao contrário, vemos um número considerável de patrimônios industriais e financeiros que tiveram sua origem principal em atividades de empreendedorismo.
454 - O apogeu rentista: Na lógica r > g, o empreendedor tende sempre a se transformar em rentista, seja um pouco mais tarde na vida (esse problema torna-se essencial à medida que a vida se prolonga: se alguém teve boas ideias aos trinta ou quarenta anos, isso não significa que ainda as tenha aos setenta ou oitenta, e, não obstante, o patrimônio continua a se reproduzir por conta própria), seja na geração seguinte. Qualquer que tenha sido a inventividade industrial e o dinamismo empreendedor das elites econômicas francesas do século XIX e da Belle Époque, o fato principal é que seus esforços e suas ações não fizeram mais do que reforçar e eternizar uma sociedade de rentistas — em grande parte sem ter conhecimento disso, apenas pela força da lógica r > g.
455 - O período das guerras tinha um cenário bem diferente: Em 1912, às vésperas da guerra, os octogenários eram mais de 2,5 vezes mais ricos do que os quinquagenários. Já em 1931, essa diferença não passava de 40%. E em 1947, foram os quinquagenários que se tornaram os mais abastados: numa sociedade em que o total de patrimônios caiu a um nível muito baixo, os quinquagenários ficaram 50% mais ricos do que os octogenários. Numa afronta suprema, os octogenários foram ultrapassados até mesmo pelos quadragenários em 1947. Após a Segunda Guerra Mundial, o perfil da riqueza em função da idade de repente se tornou uma curva em forma de sino (primeiro crescendo, depois decrescendo em função da idade, com o grupo entre cinquenta e 59 anos no topo, ou seja, uma forma aproximada do “triângulo de Modigliani”, com a diferença importante de que a curva não cai a zero para as idades mais elevadas). Destruições, inflação, falências, expropriações, tudo isso explica o quadro.
456 - ...A guerra age como um retorno ao zero — ou quase isso — dos contadores de acumulação de riqueza e conduz automaticamente a um rejuvenescimento das fortunas. Nesse sentido, foram as guerras que, no século XX, fizeram tábula rasa do passado e deram a ilusão de uma superação estrutural do capitalismo. E o idoso que "perdeu tudo" já não tem mais força pra reerguer o patrimônio geralmente, coloca. Em particular, isso permite compreender por que o colapso da herança é ainda mais forte do que o colapso patrimonial — quase duas vezes maior.
457 - Simulações para o Século XXI: ...um cenário de referência, com a hipótese de uma taxa de crescimento de 1,7% ao ano para o período 2010-2100 16 e de um retorno líquido do capital de 3% para o período 2010-2100; e um cenário alternativo, com a hipótese de um crescimento reduzido a 1% para o período 2010-2100 e um rendimento líquido do capital de 5%. Isso corresponde à supressão completa dos impostos sobre o capital e suas rendas, inclusive sobre os lucros das empresas, ou uma supressão parcial acompanhada por uma alta da participação do capital. (Lembra, porém, que apesar das previsões, no fundo, tudo é possível: ...em teoria, pode-se muito bem imaginar um mundo em que cada um escolheria transformar o conjunto de sua fortuna em renda vitalícia, de modo a morrer sem nenhum patrimônio. Se tal comportamento de repente se tornar predominante no século XXI, o fluxo de herança será reduzido a pouca coisa)
458 - Não constatamos o intenso comportamento de despoupança nas idades mais avançadas que é previsto pela teoria do ciclo de vida, qualquer que seja a evolução da expectativa de vida.
459 - No século XIX e até o início do século XX, quando o fluxo de herança alcançava a cada ano o equivalente a 20-25% da renda nacional, os patrimônios herdados representavam a quase totalidade da riqueza privada: entre 80% e 90%, com uma tendência de alta. É necessário ressaltar que nessas sociedades sempre existe, em todos os níveis de riqueza, uma participação significativa de detentores de patrimônio — entre 10% e 20% — que criam fortunas a partir do nada. (...) se acumulamos um fluxo de herança anual de cerca de 20% da renda nacional durante mais ou menos trinta anos, chegamos automaticamente a uma enorme massa de heranças e doações, da ordem de seis anos da renda nacional, o que representa a quase totalidade dos patrimônios...
...No rodapé, há, inclusive, esta observação: ...caso se capitalize inteiramente todas as heranças recebidas, inclusive o retorno consumido pelos herdeiros, por exemplo sob a forma de aluguel economizado, então ultrapassaríamos nitidamente 100% do patrimônio total). Ver o Anexo Técnico para as estimativas utilizando diferentes definições.
460 - ...O ponto mais baixo foi atingido nos anos 1970: depois de várias décadas de heranças pequenas e acumulação de novos patrimônios, o capital herdado representava pouco mais de 40% do capital privado. Pela primeira vez na história — à exceção dos países novos —, os patrimônios acumulados pelos vivos constituíam a maior parte da riqueza: quase 60%.
461 - Taxa anual de poupança versus fluxo anual da herança: ...quando o fluxo de herança cai para 5% da renda nacional, como foi o caso nos anos 1950-1960, ou seja, duas vezes menos do que o fluxo da nova poupança (supondo sempre uma taxa de poupança da ordem de 10%, valor próximo da realidade), não surpreende que o capital poupado ultrapasse o capital herdado. O fato é que o fluxo anual de herança passou a frente da taxa de poupança ao longo dos anos 1980-1990 e é nitidamente superior nos anos 2000-2010. No início da década de 2010, seu valor é equivalente a quase 15% da renda nacional, sob a forma de heranças e doações anuais.
462 - Renda nacional versus renda disponível: ...em termos de fluxo de herança e fluxo de renda disponível, já "estamos" como no século XIX. (...) Para termos uma noção melhor dos montantes em jogo, é bom relembrar que a renda disponível (monetária) das famílias representa cerca de 70-75% da renda nacional em um país como a França neste início de século XXI (considerando a importância das transferências em espécie: saúde, educação, segurança, serviços públicos etc., sem levar em conta a renda disponível). (...) Como explicamos no Capítulo 5, para fazer comparações espaciais e temporais é mais justificável utilizar a renda nacional (e não a renda disponível) como denominador de referência.
463 - Mais um gráfico sobre heranças abaixo. Nele, "todos os recursos, ou seja, a herança (incluindo aí doações) e as rendas do trabalho, após as deduções dos impostos, foram capitalizados ao longo da vida utilizando o rendimento líquido médio do capital em vigor na França durante os diferentes anos" (Desde os bebês de 1970 que a coisa já voltou a ser muito boa para os herdeiros):
464 - Salários medianos: Em regra geral, as 50% menores rendas do trabalho recebem coletivamente em torno de 30% do total das rendas do trabalho (ver o Capítulo 7, Tabela 7.1) e ganham, então, individualmente cerca de 60% do salário médio (40-50% da renda nacional média, considerando que as rendas do trabalho representam em geral por volta de 65-75% da renda nacional).
465 - Apoderar-se de herança(s) ou estudo/trabalho? O "dilema de Vautrin" está voltando à moda com tudo. No século XIX, os recursos que o 1% mais rico dos herdeiros (o 1% que recebe as heranças mais altas de sua geração) detinha ao longo de sua vida correspondiam a cerca de 25 a trinta vezes o nível de vida popular. Em outras palavras, ao se apropriar de tal herança, em geral graças aos pais ou aos pais do cônjuge, era possível contratar os serviços de 25 a trinta empregados domésticos remunerados nesse nível. Ao mesmo tempo, os recursos aportados pelo 1% com os empregos mais bem remunerados (por exemplo, os juízes, procuradores e advogados mencionados por Vautrin) correspondiam a cerca de dez vezes esse nível de vida popular.
466 - ...Relembremos que uma participação de 6-7% da massa salarial para o centésimo superior significa por definição que cada pessoa ganha em média seis, sete vezes o salário médio, ou seja dez, doze vezes o salário médio recebido pelos 50% menos bem pagos.
467 - Coloca os "Trinta Anos Gloriosos" como uma sociedade de executivos e trabalhadores. ...um mundo fundamentalmente unido, comungando o mesmo culto ao trabalho, fundado no mesmo ideal meritocrático, onde todos pensavam ter ultrapassado definitivamente as desigualdades patrimoniais e arbitrárias do passado.
468 - Concentração das heranças - que é meio que a concentração do capital - ajuda a criar a "sociedade patrimonial": Se a herança fosse repartida da mesma maneira que a renda do trabalho (com níveis idênticos para a parcela do décimo superior, do centésimo superior etc. no total das heranças e das rendas do trabalho), o mundo de Vautrin nunca poderia existir.
469 - ...Ainda sobre concentração de capital "versus" concentração de altos salários: Esse foi precisamente o caso nas sociedades dos séculos XVIII e XIX, com cerca de 50-60% da riqueza total para o centésimo superior (chegando a 70% no Reino Unido ou na Paris da Belle Époque), ou seja, quase dez vezes maior do que a parcela do centésimo superior da hierarquia da renda do trabalho na massa salarial total (em torno de 6-7%, nível que vimos ser relativamente estável no longo prazo). Essa relação de um para dez entre as concentrações patrimoniais e salariais permite contrabalançar a relação de um para três entre os volumes e compreender por que uma herança do centésimo superior garantia uma vida quase três vezes melhor do que um emprego do centésimo superior na sociedade patrimonial do século XIX.
470 - Os ricos da literatura do início do Século XIX: O limiar de Balzac e de Austen — vinte a trinta vezes a renda média — corresponde aproximadamente à renda média de 0,5% das pessoas que dispõem das heranças mais elevadas (ou seja, cem mil pessoas sobre os vinte milhões de adultos vivendo na França de 1820-1830, ou cinquenta mil pessoas sobre dez milhões de adultos britânicos de 1800-1810; Balzac e Austen tiveram, assim, um vasto universo para escolher seus personagens). (...) O 1% dos empregos mais bem pagos oferecem no século XIX um nível de vida dez vezes mais elevado do que o nível popular (ver o Gráfico 11.10), ou seja, cinco vezes a renda média. Pode-se estimar que somente o 0,01% das pessoas mais bem pagas (ou seja, duas mil pessoas sobre vinte milhões, no máximo) tem uma renda média da ordem de vinte a trinta vezes a renda média da época. Vautrin não erra muito quando diz que não existem mais de cinco advogados em Paris que ganham mais de 50.000 francos por ano (ou seja, cem vezes a renda média).
471 - ...Ainda os romances: ...O leitor pode constatar que se vive objetivamente muito mal quando se dispõe de apenas três ou cinco vezes a renda média, e o dia a dia é passado com preocupações sobre a subsistência. E, se alguém deseja se presentear com livros, instrumentos musicais ou ainda joias ou vestidos de baile, então se torna indispensável ter pelo menos vinte ou trinta vezes a renda média da época. (...) Os escritores às vezes debocham das pretensões e necessidades excessivas de seus personagens, como quando Marianne, já imaginando sua elegante vida de casada com Willoughby, explica enrubescendo que, de acordo com seus cálculos, é difícil viver com menos de 2.000 libras por ano (mais de sessenta vezes a renda média da época): “Estou certa de não ser extravagante nas minhas exigências. Um número adequado de serviçais, uma carruagem, talvez duas, e cavalos para a caça não podem ser sustentados com menos.”
472 - Quaisquer que sejam os excessos de seus personagens, os escritores do século XIX nos descrevem um mundo no qual a desigualdade é de certa maneira necessária: se não existisse uma minoria dotada de patrimônio suficiente, ninguém poderia se preocupar com outra coisa além de sobreviver. Tal visão da desigualdade tem ao menos a qualidade de não se descrever como meritocrática. Meio que ninguém achava que os ricos eram ricos porque mereciam. A legitimação meio que se dava mais pela força/poder mesmo do que pelo poder da ideologia, digamos assim.
473 - Certos trabalhos gozaram de prestígio desde antes da "sociedade meritocrática", justamente por resquícios de mérito. Como observa Adolphe Thiers em 1831 na tribuna da Câmara dos Deputados: “Os prefeitos devem poder se situar num patamar igual ao dos habitantes notáveis dos departamentos onde eles vivem.”
474 - ...O fato de que os altos funcionários americanos da época eram pagos muito mais modestamente do que na França é observado também por Tocqueville, que vê nisso um dos sinais infalíveis do espírito democrático reinante nos Estados Unidos. Apesar de muitos incidentes, esse punhado de altíssimos ordenados perdurou na França até o primeiro conflito mundial (ou seja, até a queda dos rentistas).
475 - O mais inquietante, talvez, é que encontramos esse mesmo tipo de alegação nas sociedades mais ricas, onde o argumento austeniano da necessidade e da dignidade faz menos sentido. Nos Estados Unidos dos anos 2000-2010, escutamos muitas vezes justificativas dessa ordem para as remunerações estratosféricas dos superexecutivos (em certos casos cinquenta ou cem vezes maiores do que a renda média, ou até mais): insiste-se que, sem tais remunerações, só os herdeiros poderiam atingir um verdadeiro conforto material, o que seria injusto. Em suma, as rendas de vários milhões ou dezenas de milhões de euros dadas aos superexecutivos promoveriam uma maior justiça social.
476 - Lembra, num rodapé, que, a depender do cenário (especialmente fiscal), a "dicotomia" herança-trabalho como fonte de renda e patrimônio pode se tornar ainda mais acirrada que no século XIX. Herança já recuperou sua importância no bolo total e pode ultrapassar. Pelo menos a "concentração do centésimo" hoje é menor. Os percentis logo abaixo ganharam representação nos bolos de heranças.
477 - ...Na França deste início de século XXI, existe de fato um número menor de grandes heranças — as heranças de 30 milhões de euros, ou mesmo de 10 milhões ou 5 milhões de euros são menos abundantes — do que no século XIX. Entretanto, levando em conta que a massa global das heranças voltou quase a seu ponto inicial, isso significa também que existem muito mais heranças médias e médias-altas: por exemplo, em torno de 200.000, 500.000, 1 milhão e 2 milhões de euros. Tais heranças, apesar de serem insuficientes para permitir o abandono de uma profissão e o início de uma vida de rentista, representam ainda assim montantes consideráveis, sobretudo em comparação com o que uma boa parte da população ganha durante uma vida de trabalho.
478 - Gráfico acima: Em outras palavras, perto de um sexto de cada geração receberá uma herança maior do que o valor que metade da população ganha por meio do trabalho ao longo de toda a vida (em grande medida, essa é a mesma metade da população que não recebe praticamente herança alguma).
479 - Coloca que o termo "renda" ganhou conotação amplamente negativo em nossos tempos.
480 - Voto: O sufrágio universal masculino, brevemente introduzido em 1793, aplicou-se a partir de 1848. O Reino Unido contabilizava menos de 2% de eleitores até 1831, depois uma série de reformas em 1831 e, sobretudo, em 1867, 1884 e 1918 gradualmente põe fim às exigências em termos de propriedade mínima.
481 - Ao que tudo indica, não existe em nenhum outro país fontes de heranças tão ricas e sistemáticas como na França. Porém, vários pontos parecem estar bem estabelecidos. Primeiro, os dados imperfeitos reunidos até hoje para outros países europeus, e em particular para a Alemanha e o Reino Unido, levam a crer que a curva em U observada para o fluxo de herança na França ao longo do século XX na verdade diz respeito à Europa como um todo (ver o Gráfico 11.12).
482 - ...É também interessante notar que essa forte retomada do fluxo de herança alemão se explica em grande parte por uma progressão muito forte das doações, assim como ocorreu na França. Reino Unido curiosamente é exceção aqui. Doações não cresceram muito ao que entendi. Piketty especula se os dados de lá não estão subestimados... Com os dados hoje disponíveis, infelizmente é impossível afirmar se a menor retomada do fluxo de herança britânico corresponde a uma diferença real do comportamento (os britânicos mais ricos consomem mais seus patrimônios e transmitem menos aos filhos do que seus homólogos franceses e alemães) ou a um viés puramente estatístico.
483 - Quanto aos dados dos EUA, diz que são bem imperfeitos. (...) Na França, constata-se, por exemplo, que as doações e heranças declaradas nas pesquisas representam apenas metade do fluxo observado nos dados fiscais (que, no entanto, é por definição uma margem inferior do fluxo real, já que não respondem à chamada os ativos isentos, como o seguro de vida). É claro que as pessoas interrogadas tendem a se esquecer de declarar aos entrevistadores o que elas de fato receberam e a mostrar suas trajetórias patrimoniais sob uma luz que lhes seja mais favorável (o que é, por sinal, uma evidência interessante sobre as percepções da herança nas sociedades modernas). 64 Em vários países, e em particular nos Estados Unidos, infelizmente é impossível fazer essas comparações com a fonte fiscal. Porém, nada impede de pensar que o viés declarativo seja menos importante do que na França, até porque as percepções públicas da herança são no mínimo tão negativas quanto nos Estados Unidos.
484 - Antes de tudo, é necessário esclarecer que todos se fundavam em dados de péssima qualidade referentes ao fim dos anos 1960 e início dos 1970. Se reexaminássemos essas estimativas à luz dos dados disponíveis hoje, acharíamos que a verdade está no meio do caminho, mas bem mais próxima de Kotlikoff-Summers: os patrimônios herdados representam, sem dúvida, pelo menos 50- 60% do total de patrimônios privados nos Estados Unidos nos anos 1970-1980. Estimativas menores não contabilizavam a renda capitalizada no patrimônio.
485 - A leve menor importância das heranças nos EUA se deve essencialmente à demografia, afirma. Se o crescimento da população nos Estados Unidos desaparecer um dia, como levam a imaginar as previsões de longo prazo, é provável que o retorno da herança seja tão forte quanto na Europa.
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