Livro: Piketty - O Capital no Século XXI - Capítulo 10
Livro: Piketty - O Capital no Século XXI
Pgs. 425-477
"CAPÍTULO 10: "A desigualdade na apropriação do capital"
376 - Diz que todos os países viram meio que o colapso das rendas do capital durante a primeira metade do Século XX. Desigualdade caiu por isso. A estrutura salarial pouco mudou.
377 - Escolhe quatro países que possuem os melhores e longevos dados sobre patrimônios. EUA, Suécia, Inglaterra e França. As séries parciais disponíveis para os outros países fornecem resultados igualmente coerentes. Por exemplo, as evoluções observadas na Dinamarca e na Noruega desde o século XIX são muito próximas da trajetória constatada na Suécia. Os dados sobre o Japão e a Alemanha indicam uma dinâmica parecida com a da França. Um estudo recente sobre a Austrália mostra resultados coerentes com aqueles obtidos para os Estados Unidos.
378 - (...) O caso da França é particularmente interessante, pois se trata do único país para o qual dispomos de uma fonte histórica de fato homogênea, o que permite estudar a distribuição da riqueza de modo contínuo desde o fim do século XVIII e o início do século XIX.
379 - O novo imposto sobre heranças implementado pela Revolução Francesa é universal em três sentidos: atinge da mesma forma todos os tipos de bens e propriedades (terras agrícolas, bens imobiliários urbanos e rurais, ativos líquidos, títulos de dívida pública ou privada, ativos financeiros de toda natureza, ações, participações societárias, móveis, objetos preciosos etc.), quaisquer que sejam seus detentores (nobres ou plebeus) e a despeito dos montantes, por menores que sejam. O objetivo dessa reforma fundamental não era, naquele momento, apenas trazer receitas fiscais para o novo regime, mas também permitir ao governo conservar o registro do conjunto de transmissões patrimoniais pela herança (óbito) ou pela doação (pessoa viva), de maneira a poder garantir a todos o pleno exercício do direito de propriedade. (...) É assim que foi implementado, no fim dos anos 1790 e no começo dos anos 1800, um sistema relativamente completo de registro das propriedades e, em particular, um cadastro de bens imóveis que perdura até hoje.
380 - ...Nos Estados Unidos, o imposto federal sobre as heranças e doações foi criado apenas em 1916 e até hoje atinge apenas uma minoria (há impostos estaduais muito heterogêneos que por vezes afetam segmentos mais amplos de proprietários).
381 - Imposto francês sobre herança: O imposto tornou-se ligeiramente progressivo em 1901, após uma longa batalha parlamentar. Coloca que isso ajudou a sofisticar o já bom acervo de dados franceses sobre patrimônios. Elogia as amplas/detalhadas fontes disponíveis no país.
382 - ...Paris é ainda mais concentrada. No mais, ao que parece, a desigualdade patrimonial queria era aumentar. O décimo superior da hierarquia da riqueza já possuía entre 80% e 85% do patrimônio total no início do século XIX e detinha perto de 90% no início do século XX. (...) Tendo em vista essa curva, é natural se perguntar até onde a concentração das fortunas poderia ter chegado se as guerras não tivessem acontecido.
383 - Não há conflito etário (geracional). Nossos dados sobre herança também permitem constatar que a desigualdade da riqueza mantém quase a mesma força dentro de cada faixa etária ao longo de todo o século XIX. (...) a concentração patrimonial entre os vivos é poucos pontos maior do que a desigualdade das fortunas dos falecidos, e todas as evoluções temporais são basicamente as mesmas. Há anexos técnicos pra quem quiser entender melhor, afirma e "linka".
384 - Ainda a Revolução Francesa: ...tudo parece indicar que a desigualdade dos patrimônios privados se reduziu um pouco entre os anos 1780 e os anos 1800-1810, levando em conta as redistribuições de terras agrícolas e as anulações de títulos da dívida pública realizadas durante a Revolução Francesa e, de maneira mais geral, os choques que afetaram as fortunas aristocráticas. É possível que a parcela do décimo superior tenha atingido, ou mesmo ultrapassado, 90% do patrimônio total às vésperas de 1789, e que a parcela do centésimo superior tenha atingido e talvez superado 60%. Por outro lado, a lei do “bilhão dos emigrantes” em 1825 e o retorno da nobreza à cena política favoreceram a reconstituição de algumas antigas fortunas durante o período das monarquias censitárias (1815-1848). De fato, nossos dados sobre herança permitem constatar que a porcentagem de nomes aristocráticos dentro do centésimo superior da hierarquia dos patrimônios parisienses passou gradualmente de 15% nos anos 1800-1810 para perto de 30% nos anos 1840, antes de enfrentar um declínio implacável a partir dos anos 1850-1860 e cair para menos de 10% nos anos 1890-1900.
385 - ...De toda forma, o impacto da Revolução na desigualdade foi pequeno. O capital agrícola foi paulatinamente substituído pelo industrial e financeiro em ordem de importância. Ao longo desse período, o décimo superior sempre deteve 80-90% do patrimônio total, e o centésimo superior, cerca de 50-60%. (Como os gráficos acima mostram).
386 - Nossos dados sobre herança também permitem constatar que a queda da parcela do décimo superior na riqueza nacional ao longo do século XX deu-se inteiramente em benefício dos 40% intermediários e que a parcela dos 50% mais pobres não evoluiu em nada (ela sempre se manteve inferior a 5%). Ao longo de todo o século XIX, assim como no século XX, a metade mais pobre da população quase não possuía patrimônio. (...) Se considerarmos a França como um todo, cerca de metade da população morria assim, sem patrimônio a transmitir — ou com patrimônio negativo —, no século XIX. E essa proporção em nada evoluiu no século XX. (...) Os dados disponíveis para os outros países europeus, apesar de suas imperfeições, demonstram sem deixar dúvidas que a extrema concentração dos patrimônios nos séculos XVIII, XIX e XX até a Primeira Guerra Mundial é um fenômeno europeu, e não somente francês. (Imagino que praticamente mundial...)
387 - As fontes britânicas são imperfeitas, sobretudo para o século XIX, mas as ordens de grandeza são bastante claras: a concentração de riqueza era extremamente forte no Reino Unido no século XIX e não manifestava nenhuma tendência de baixa até 1914 — pelo contrário. De um ponto de vista francês, o mais surpreendente é que a desigualdade do capital no Reino Unido era, no final de contas, pouco maior do que na França da Belle Époque, ainda que as elites republicanas do momento gostassem de descrever a França como um país igualitário em comparação ao vizinho monarquista do outro lado do canal da Mancha. Na realidade, a natureza formal do regime político não tinha, visivelmente, grande impacto sobre a realidade da distribuição de riqueza nos dois países.
388 - A Suécia (as primeiras décadas são de estimativas a partir de alguns dados):
389 - ...a concentração dos patrimônios em 1900-1910 era tão forte na Suécia quanto na França ou no Reino Unido.
390 - É interessante notar que o nível extremo de concentração de riqueza — da ordem de 80-90% do capital detido pelo décimo superior, dos quais 50-60% pertenciam ao centésimo superior — parecia ser mais ou menos o mesmo na maior parte das sociedades até o século XIX e sobretudo nas sociedades agrárias tradicionais, tanto na época moderna como na Idade Média e na Antiguidade.
391 - Pós-choques: A diferença essencial é que existe hoje uma classe média patrimonial que possui um terço da riqueza nacional, algo bastante considerável. Mesmo na Suécia, a parcela dos 50% mais pobres nunca ultrapassou os 10% do total de patrimônio do país.
392 - Dados do Século XIX dos EUA não são muito precisos. Piketty menciona ...estimativas mais frágeis referentes aos anos 1810 e 1870 que se baseiam nos inventários por óbitos e num recenseamento dos patrimônios explorados, respectivamente, por Jones e Soltow.
393 - Dados dos EUA (basicamente existiam dois países em um): ...são altamente imperfeitos e variam muito dos estados do Norte (onde as estimativas indicam níveis de desigualdade inferiores à Suécia dos anos 1970-1980) para os do Sul (onde a desigualdade era mais próxima dos níveis europeus da mesma época).
394 - Um século atrás, as percepções e a realidade eram rigorosamente inversas: era evidente para todos que o Novo Mundo era, por natureza, menos desigual do que a velha Europa e essa diferença representava um motivo de orgulho. Ao fim do século XIX, ao longo da chamada “Gilded Age”, os “anos dourados”, quando foram acumuladas nos Estados Unidos fortunas industriais e financeiras inéditas até aquele momento (a época dos Rockefeller, Carnegie, J. P. Morgan), inúmeros observadores se alarmaram com a ideia de que o país pudesse perder seu espírito pioneiro e igualitário — em parte um mito, claro, mas parcialmente justificado pela comparação com a concentração das fortunas europeias. Impostos progressivos sobre herança e renda surgiram lá muito baseados nessa concepção.
395 - No final, a desconcentração da riqueza foi relativamente limitada nos Estados Unidos ao longo do último século: a parcela do décimo superior passou de 80% para 70% da riqueza total, enquanto na Europa passou de 90% para 60% (ver o Gráfico 10.6) (média com França, Suécia e Reino Unido, já que "tudo indica que são representativos").
396 - ...Em certa medida, já existia uma classe média patrimonial — branca — no início do século XIX. Ela sofreu um pouco durante a “Gilded Age”, depois retomou sua saúde no meio do século XX e voltou a padecer a partir dos anos 1970-1980.
397 - Principal fator de concentração patrimonial, para Piketty, é este: Por exemplo, se g = 1% e r = 5%, então basta poupar um quinto da renda do capital — e consumir os quatro quintos restantes — para que um capital herdado da geração anterior progrida no mesmo ritmo que a economia como um todo. O século XX testemunhou forte crescimento, especialmente até antes dos anos setenta. Foi exceção. O retorno de capital, por seu lado, sofreu muito com os choques e algumas políticas progressistas.
398 - Como ilustrado no Gráfico 10.7, a taxa de rendimento do capital (aproximadamente 5%) era bem mais elevada do que a taxa de crescimento na França entre 1820 e 1913 (em torno de 1% ao ano). As rendas do capital representavam perto de 40% da renda nacional, e poupar um quarto era suficiente para gerar uma taxa de poupança da ordem de 10% (ver o Gráfico 10.8), permitindo, assim, que os patrimônios aumentassem um pouco mais rápido do que a renda e que a concentração de riqueza tivesse uma tendência de crescimento.
399 - Ao combinar crescimento demográfico e econômico, podemos considerar que a taxa de crescimento global entre a Antiguidade e o século XVII jamais excedeu 0,1-0,2% ao ano por longos períodos. Sejam quais forem as incertezas históricas, não resta dúvida de que a taxa de rendimento do capital sempre foi claramente superior: o valor central observado para períodos longos gravita em torno de um rendimento de 4-5% ao ano. Trata-se, sobretudo, de um rendimento fundiário, em porcentagem do valor das terras, na maior parte das sociedades agrárias tradicionais. Mesmo adotando uma estimativa muito mais baixa do rendimento puro do capital (por exemplo, se considerarmos o argumento de vários proprietários de terra ao longo da história de que não é fácil administrar uma grande extensão de terra e que uma parte desse rendimento corresponde, na realidade, à justa remuneração do trabalho altamente qualificado realizado pelo dono), chegaremos a um retorno mínimo (e, a meu ver, pouco realista e pequeno demais) de pelo menos 2-3% ao ano. Em todo caso, isso é superior a 0,1-0,2%. Para um período extenso da história da humanidade, o fato mais importante é que a taxa de rendimento do capital sempre foi ao menos dez ou vinte vezes superior à taxa de crescimento da produção e da renda.
400 - Duas observações importantes sobre o gráfico. Primeiro que, para alguns períodos antigos, a estimativa pode estar até conservadora. Para a renda fundiária, os dados mais antigos disponíveis para a Antiguidade e a Idade Média sugerem rendimentos anuais da ordem de 5%. Para os empréstimos a juros, observamos muitas vezes nos períodos antigos taxas superiores a 5% — em geral da ordem de 6-8% — incluindo os empréstimos realizados sobre bens imobiliários. Ver, por exemplo, os dados reunidos por Homer, S. e Sylla, R. A History of Interest Rates. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1996. Tais dados não permitem, porém, saber precisamente a representatividade desses diferentes rendimentos.
401 - ... Salientemos também que o rendimento do capital indicado no Gráfico 10.8 é o retorno antes da tributação (e também não contabiliza as perdas de capital decorrentes de guerras e os ganhos e perdas de capital, particularmente importantes ao longo do século XX).
402 - Os impostos: ...podemos considerar que as taxas de retorno antes e depois dos impostos eram quase as mesmas. A partir da Primeira Guerra Mundial, as taxas dos impostos sobre as rendas, os lucros e os maiores patrimônios logo alcançaram níveis significativos.
403 - No Gráfico 10.10, mostramos as estimativas do rendimento médio do capital depois de considerados os impostos e contabilizadas as deduções de uma estimativa média para as perdas de capital decorrentes das destruições ocorridas no período 1913-1950. Para facilitar, também supomos que a concorrência fiscal aos poucos conduziria a um desaparecimento completo dos impostos ao longo do século XXI: a taxa média de cobrança sobre o rendimento de capital é fixada em 30% para o período 1913-2012, depois passa para 10% em 2012-2050 e para 0% em 2050-2100. Na prática, é mais complicado: os impostos variam muito de acordo com os países e os tipos de patrimônio e às vezes podem ser progressivos.
404 - De volta à excepcionalidade do Século XX: Enfim, observamos que os choques fiscais e não fiscais do século XX levaram, pela primeira vez na história, o rendimento líquido do capital a ficar abaixo da taxa de crescimento. Por uma conjunção de fatores (destruições causadas pelas guerras, políticas fiscais progressivas desencadeadas pelos choques dos anos 1914-1945, crescimento excepcional dos Trinta Gloriosos), esse quadro se prolongou por todo um século. Tudo leva a crer que ele está a ponto de terminar.
405 - Temos todo um problema mesmo se o futuro for de impostos progressivos: Mesmo se a tributação média do capital se mantiver num nível da ordem de 30%, o que não será nada fácil, o rendimento líquido do capital provavelmente voltará a ultrapassar a taxa de crescimento, ao menos no cenário de referência.
406 - ...Podemos também observar que a hipótese de um crescimento mundial de 1,5% ao ano no longuíssimo prazo é, aos olhos de inúmeros observadores, excessivamente otimista. Lembremos que o crescimento médio da produção por habitante foi de 0,8% ao ano no nível mundial entre 1700- 2012 e que o crescimento demográfico — também de 0,8% para os três últimos séculos — deverá, de acordo com as previsões mais aceitas, sofrer uma forte queda até o final do século XXI.
407 - Na prática, não parece existir na história um exemplo de sociedade em que a taxa de rendimento do capital tenha caído naturalmente a níveis inferiores a 2-3% por longos períodos — e os valores médios em geral observados, sem entrar na questão da diversidade de alocações e de rendimentos, são mais próximos de 4-5% (antes da dedução dos impostos). Em particular, o rendimento das terras agrícolas nas sociedades tradicionais, como o dos bens imobiliários nas sociedades contemporâneas — nos dois casos, as formas de propriedade mais comuns e seguras —, costuma ser da ordem de 4-5% ao ano, com uma ligeira tendência à queda para períodos muito longos (3-4% em vez de 4-5%), conforme vimos na Segunda Parte.
408 - Estaria correta a teoria quase tautológica da preferência temporal? Segundo essa teoria, a estabilidade histórica do rendimento do capital em 4-5% seria explicada por razões psicológicas: a impaciência humana e as inclinações da nossa espécie fariam com que o retorno do capital não se afastasse muito desse nível. Caso o retorno se afaste disso, o estoque de capital deixará de ser por algum momento o ótimo/desejável/demandado pelas pessoas, forçando a taxa a retornar ao seu patamar "natural" para normalizar o estoque. Há um imã.
409 - ...Exemplo de como atuaria a coisa: Do mesmo modo, numa sociedade onde se acumulou tanto capital que o rendimento caiu definitivamente a um nível muito baixo, por exemplo, de 1% ao ano (ou onde todas as formas de riqueza, incluindo as propriedades das classes modestas e médias, seriam tão taxadas que o rendimento líquido cairia a esse nível), é bem provável que uma parte considerável dos detentores de patrimônio procurasse se desfazer de suas terras, casas e ativos financeiros, mesmo que o estoque total do capital começasse a diminuir até que o rendimento subisse um pouco.
410 - ...A grande questão é: quão forte é esse imã? (a teoria da preferência não é perfeita, mas funciona em algum grau). Uma previsão desse tipo não é nada realista: todas as experiências históricas mostram que a elasticidade da poupança é positiva, mas não infinita, sobretudo quando o retorno varia dentro de proporções moderadas e razoáveis.
411 - ...Em suma, o comportamento de poupança e as atitudes perante o futuro não podem ser resumidos por um único parâmetro. Essas escolhas devem ser analisadas no âmbito de modelos mais complexos, que levem em consideração ao mesmo tempo a preferência pelo presente, a poupança de precaução, os efeitos relacionados ao ciclo de vida, a importância dada à riqueza como tal e muitos outros fatores. Elas dependem do ambiente social e institucional (por exemplo, o sistema público de previdência), de estratégias e pressões familiares, de limitações que os diferentes grupos sociais impõem (como certos direitos aristocráticos que não podem ser vendidos livremente pelos herdeiros), assim como de fatores psicológicos e culturais.
412 - "R" muito maior que "G" é desigualdade aumentando pra sempre? De um lado, se os detentores de riqueza em conjunto fazem crescer suas fortunas mais rápido do que a renda média, então a relação capital / renda tenderá a aumentar sem limite, o que no longo prazo deve conduzir a uma baixa na taxa de rendimento do capital. Dito isso, tal mecanismo pode levar décadas, sobretudo numa economia aberta em que os detentores de riqueza podem acumular ativos estrangeiros, como foi o caso do Reino Unido e da França no século XIX e até a Primeira Guerra Mundial. A outra "esperança" de baque nesse processo de concentração de renda seriam os choques de todo tipo, inclusive demográficos - muitos descendentes ou nenhum, por exemplo. Isso pulverizaria o capital.
413 - Coloca que a primogenitura como regra de herança foi abolida tardiamente na Alemanha. Teve que esperar a Weimar. França desde a Revolução já não tinha. Pulverização da herança era o que causava o medo da derrubada da regra antiga. Outros viam como algo extremamente positivo. França: ...Os partidários da Revolução estavam convencidos de que eles tinham aí a chave para a igualdade futura. Se adicionarmos a isso que o Código Civil dava a cada um a mesma igualdade de direitos perante o mercado e a propriedade e que as corporações foram abolidas, o resultado final é sem dúvida que esse sistema só podia levar ao desaparecimento das desigualdades do passado.
414 - Intuitivamente, a diferença r-g mede a velocidade com a qual um patrimônio, cujas rendas serão inteiramente reinvestidas e recapitalizadas, se afasta da renda média. Quanto mais alta for r-g, mais essa força será divergente. Os impostos na França revolucionária, apesar de abrangentes, eram tão baixos (1 a 2% inclusive sobre as grandes heranças) que nem arranhavam a tendência. Serviram mais como histórica fonte de dados.
415 - Progenitura e comparações: Isso pode ajudar a explicar por que a parcela do décimo superior era ligeiramente mais alta no Reino Unido de 1900-1910 (um pouco mais de 90% da riqueza total, contra um pouco menos de 90% na França) e, sobretudo, por que a parcela do centésimo superior é bem maior do lado britânico: 70% contra 60%, o que parece se justificar pela manutenção de um pequeno número de latifúndios muito extensos. Contudo, esse efeito é em parte compensado por uma redução do crescimento demográfico francês (a desigualdade cumulativa dos patrimônios é estruturalmente maior quando a população está estagnada, ainda por causa da diferença entre r e g) e tem um impacto moderado sobre o conjunto da distribuição, que é, no final das contas, muito próximo nos dois países.
416 - De acordo com o modelo teórico, para que a desigualdade da distribuição diminua de forma considerável, levando em conta uma taxa de rendimento da ordem de 5% ao ano, é necessário que a taxa de crescimento ultrapasse 1,5-2% — ou então que os impostos sobre o capital reduzam o rendimento líquido para abaixo de 3-3,5%, ou que as duas coisas ocorram ao mesmo tempo (voltaremos a tratar disso). (Deve estar estimando poupança de 20%).
417 - Escreve sobre Pareto: O que mais impressiona quando lemos os trabalhos de Pareto, com o distanciamento que temos hoje, é que ele não dispunha de nenhum dado que lhe permitisse concluir sobre a estabilidade. Pareto escreveu em torno de 1900 e utilizou algumas tabelas fiscais disponíveis em sua época, obtidas a partir dos impostos sobre a renda aplicados na Prússia e na Saxônia, bem como em algumas cidades suíças e italianas, nos anos 1880-1890. Eram dados esparsos, referentes a no máximo uma década, e que indicavam ainda mais uma leve tendência de aumento das desigualdades, o que Pareto procurou dissimular com certa má-fé. (Como todo "fasci").
418 - Os grandes choques no capital no período das guerras: ...No topo da hierarquia das fortunas, o patrimônio é com maior frequência o produto de uma acumulação vinda de longe, e, assim, leva-se muito mais tempo para se reconstituir fortunas dessa magnitude do que para se acumular um patrimônio modesto ou médio.
419 - Podemos calcular que 1% dos herdeiros parisienses mais ricos dispunham, na Belle Époque, de um patrimônio que lhes permitia financiar um nível de vida da ordem de oitenta a cem vezes mais alto do que o salário médio da época e ainda reinvestir uma pequena parte do capital, de modo a aumentar um pouco a riqueza que foi recebida. (Isso corresponde a um nível de vida da ordem de 2-2,5 milhões de euros anuais em um contexto em que o salário médio é da ordem de 24.000 euros por ano). (...) . O equilíbrio se quebra, nitidamente, no entreguerras: o 1% dos herdeiros parisienses mais ricos continuam vivendo mais ou menos como no passado, mas o que eles deixam à geração seguinte permite financiar um padrão de vida entre trinta e quarenta vezes o salário médio da época, quiçá vinte vezes, ao final dos anos 1930. Para os rentistas, era o princípio do fim. (...) Acrescentemos a isso o fato de que a composição dos maiores patrimônios os expunha mais maciçamente — em média — às perdas de capital desencadeadas pelas duas guerras. Ativos estrangeiros - e muitos viraram pó - eram meio que um quarto dos ativos de muitos patrimônios.
420 - ...todos os níveis de patrimônio, e não somente os mais elevados, mantinham às vésperas da Primeira Guerra Mundial uma quantidade considerável de ativos estrangeiros. De modo geral, se examinarmos a estrutura dos patrimônios parisienses no fim do século XIX e na Belle Époque, ficamos bastante espantados pelo caráter extremamente diversificado e “moderno” dessas carteiras. Às vésperas da guerra, os bens imobiliários representavam pouco mais de um terço dos ativos. Enfim, não era um rentismo antiquado.
421 - Relembremos, enfim, que o período 1914-1945 se encerrou em vários países europeus, e sobretudo na França, com certo número de redistribuições que atingiram de maneira mais intensa os patrimônios mais elevados — e, em particular, os acionistas das grandes corporações industriais — do que os patrimônios modestos e médios. Referimo-nos principalmente às nacionalizações sancionadas na Liberação (o exemplo emblemático é o da fabricante de automóveis Renault), assim como no imposto de solidariedade nacional, também instituído em 1945. Esse imposto excepcional e progressivo, ao mesmo tempo sobre o capital e sobre os enriquecimentos surgidos ao longo da Ocupação, foi arrecadado uma única vez, mas suas taxas extremamente elevadas constituíram um choque adicional muito pesado para as pessoas afetadas. (explica no rodapé o imposto. Pesadíssimo. Chegava a 100% dos patrimônios em alguns casos. Até pessoas que não enriqueceram, de forma real, na guerra foram taxadas sobre o patrimônio nominal).
422 - Por que o nível anterior de desigualdade não é restaurado rapidamente e a classe média patrimonial continua a prosperar? A explicação mais natural e mais importante é a criação, ao longo do século passado, de impostos fiscais significativos sobre o capital e seus rendimentos. Houve, então, mudança(s) estrutural(is) no pós-guerra. Não foi só a guerra, foi a chegada pra valer dos impostos também. (Talvez controle sobre os aluguéis possam ser citados também?)
423 - ...Para simplificar, podemos considerar, num primeiro momento, que a taxa média de tributação do rendimento do capital era muito próxima de 0% até 1900- 1910 (e, em todo caso, inferior a 5%) e se estabilizou nos países ricos em torno de 30% a partir dos anos 1950-1980 e, em certa medida, até os anos 2000-2010, mesmo com uma pressão recente para baixá-la, no âmbito da concorrência fiscal entre os Estados, exercida sobretudo pelos países de menor tamanho. (...) Ora, uma taxa média de tributação da ordem de 30%, que diminuiu o rendimento do capital antes dos impostos de 5% para um retorno deduzido de impostos de 3,5%, é em si suficiente para ter efeitos consideráveis no longo prazo.
424 - O estoque de capital de um país necessariamente perde com impostos sobre os ricos? ...o fato de a taxa de tributação do capital ter passado de 0% para 30% (e do retorno líquido do capital de 5% para 3,5%) pode muito bem não ter efeito algum sobre o estoque total de capital no longo prazo, pela simples razão de que a queda da riqueza do centésimo superior é compensada pela ascensão da classe média. Isso é precisamente o que ocorreu no século XX — uma lição às vezes esquecida hoje em dia.
425 - Coloca que o imposto sobre herança teve alíquota crescente durante o século XX, saindo de meros 1 a 2% para cerca de 20% ou até mais em alguns casos. Isso ajuda na dispersão de patrimônio.
426 - Por outro lado, fica mais fácil para aqueles que partem de mais baixo encontrar seu lugar ao sol, por exemplo, comprando empresas ou ações vendidas no momento da abertura de uma sucessão. Simulações simples mostram, ainda, que um imposto progressivo sobre as heranças pode reduzir muito a parcela do centésimo superior na distribuição da riqueza no longo prazo. (Creio que o problema aí são os paraísos fiscais)
427 - As diferenças entre os regimes sucessórios aplicáveis nos diferentes países também podem contribuir para explicar certas distinções entre os países, como a maior concentração de altíssimas rendas do capital (que parecem levar a uma concentração muito forte da riqueza) observada na Alemanha desde a Segunda Guerra Mundial: o imposto aplicado às maiores heranças não ultrapassou em geral 15-20% do lado alemão do Reno, enquanto muitas vezes ele atingia 30-40% do lado francês.
428 - Será o século mais desigual de todo o fim do nosso? E a batalha Século XVIII versus Século XXI? Na prática, como indica o Gráfico 10.11, é provável que a diferença r-g seja menor no futuro do que foi até o século XVIII, por conta de um retorno menor (por exemplo, 4-4,5% em vez de 4,5-5%) e de um crescimento maior (1-1,5% em vez de 0,1-0,2%), até mesmo para uma situação em que a concorrência entre os Estados conduza à supressão de toda forma de tributação sobre o capital. Ou seja, talvez não voltemos aos níveis 1900-1910.
429 - ..."Porém, contudo e todavia"...Há "boas" forças na possibilidade contrária também: Trata-se, em particular, da possibilidade de um crescimento demográfico negativo (que pode levar o crescimento do século XXI, sobretudo nos países ricos, para níveis inferiores àqueles do século XIX, o que poderia, por sua vez, dar aos patrimônios acumulados no passado uma importância inédita) e de uma possível tendência em direção a um mercado de capitais cada vez mais sofisticado, “perfeito” no sentido dos economistas (o que significa, relembremos aqui, que o retorno obtido é cada vez mais desconectado das características individuais do detentor e, assim, leva a uma direção rigorosamente inversa àquela dos valores meritocráticos, reforçando a lógica da desigualdade r > g).
430 - Resumo da ópera toda: é ilusório pensar que existem, na estrutura de crescimento moderno, ou nas leis da economia de mercado, forças de convergência que conduzam naturalmente a uma redução da desigualdade da riqueza ou a uma estabilização harmoniosa.
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