Livro: Piketty - O Capital no Século XXI - Capítulo 9

                        

Livro: Piketty - O Capital no Século XXI



Pgs. 384-424


"CAPÍTULO 9: "A desigualdade da renda do trabalho"


336 - Salário é igual a produtividade marginal? Essa teoria simples — até mesmo simplista — tem limites e uma certa ingenuidade (na prática, a produtividade de um trabalhador assalariado não é uma grandeza imutável e objetiva que está escrita na testa dele, e as relações de força entre grupos sociais têm, frequentemente, um papel central na fixação de salários), mas tem o mérito de enfatizar duas forças sociais e econômicas que de fato são fundamentais para a determinação da desigualdade dos salários, inclusive para as teorias mais sofisticadas e menos ingênuas: a oferta e a demanda por qualificação. A oferta vem especialmente do funcionamento do sistema educacional.


337 - Disso podem surgir diversos problemas práticos (isto a seguir parece mais o caso do Brasil da ditadura, sendo o caso seguinte, ao menos na intenção, talvez o da redemocratização): ...se a oferta de qualificação não progride no mesmo ritmo que as necessidades tecnológicas, então os grupos cujas formações não progrediram o bastante acabarão com baixos salários e empregos desvalorizados, e a desigualdade do trabalho progredirá na mesma proporção. Para evitar o aumento da desigualdade, o sistema educacional deve fornecer formações e qualificações em progressão igualmente rápida. E, para reduzir a desigualdade, a oferta de qualificações deve progredir ainda mais depressa, sobretudo para os grupos com menos formação.


338 - Por que o avanço da educação não levou à redução da desigualdade salarial? A explicação mais natural é que todos os níveis de qualificação progrediram mais ou menos no mesmo ritmo, e as desigualdades apenas foram deslocadas para cima. As pessoas que estavam no nível de ensino fundamental passaram para o ensino médio e depois para o ensino superior, mas aquelas que já estavam no nível do ensino superior passaram para a pós-graduação e depois para um doutorado. Em outras palavras, a democratização do sistema escolar não reduziu a desigualdade das qualificações e, portanto, não permitiu reduzir a desigualdade salarial. Contudo, se tal democratização não tivesse ocorrido e se os descendentes dos egressos do ensino fundamental de um século atrás (três quartos de uma geração, na época) tivessem se mantido nesse nível, a desigualdade em relação ao trabalho e, acima de tudo, a desigualdade salarial teriam, sem dúvida alguma, aumentado muito.


339 - E o aumento da desigualdade salarial? Os pesquisadores Claudia Goldin e Lawrence Katz compararam de maneira sistemática duas séries entre 1890 e 2005: de um lado, a distância salarial entre os indivíduos com diplomas universitários e aqueles com diploma de ensino médio; do outro, o ritmo de crescimento do número de diplomas universitários. Para Goldin e Katz, a conclusão é inequívoca: as duas curvas evoluem inversamente. Em particular, a distância salarial, que diminuía com frequência bastante regular até os anos 1970, começou a crescer de repente, bem no momento em que, pela primeira vez, o número de diplomas universitários começava a estagnar ou a aumentar de maneira mais lenta do que no passado. Para os dois pesquisadores, não há dúvida: o crescimento das desigualdades salariais se explica pelo fato de que os Estados Unidos não investiram o suficiente no ensino superior ou, mais precisamente, deixaram uma grande parte da população fora dos quadros de formação superior, sobretudo por causa dos altos custos das anuidades das universidades, deixados ao encargo das famílias. Para reverter essa tendência, é necessário reinvestir fortemente na formação e garantir um acesso mais amplo à universidade


340 - ...Tudo nos leva a pensar que os países escandinavos, caracterizados por desigualdades salariais mais moderadas do que outros lugares, devem esse resultado, em grande parte, ao seu sistema de formação relativamente igualitário e inclusivo.


341 - EUA, salário mínimo - surgiu por lá em 1933 - e desemprego: É chocante constatar que, em termos de poder de compra, o salário mínimo alcançou seu nível máximo há quase cinquenta anos, em 1969, valendo 1,60 dólar por hora (ou seja, 10,10 dólares de 2013, considerando a inflação entre 1968 e 2013), numa época em que a taxa de desemprego era inferior a 4%. De 1980 a 1990, sob os governos Reagan e Bush pai, o salário mínimo federal ficou estancado em 3,35 dólares, uma baixa significativa do poder de compra levando em conta a inflação.



342 - ...Os Estados Unidos utilizaram o salário mínimo para aumentar bastante os salários modestos nos anos 1950-1960 e depois abandonaram esse instrumento a partir dos anos 1970-1980. Na França, ocorreu exatamente o inverso: o salário mínimo ficou congelado nos anos 1950- 1960 e foi empregado com muito mais frequência a partir dos anos 1970


343 - ...Inglaterra ficou num meio-termo. Países como a Alemanha e a Suécia escolheram não ter um salário mínimo nacional e deixar aos sindicatos a tarefa de negociar com os empregadores os salários mínimos — e, mais frequentemente, grades salariais completas — dentro de cada ramo de atividade. Na prática, o mínimo nesses dois países em 2013 era superior a 10 euros por hora em inúmeros setores (sendo, assim, mais altos do que nos países que adotavam um salário mínimo nacional)No entanto, ele pode ser sensivelmente inferior em setores pouco regulados ou pouco sindicalizados. A fim de fixar um piso comum, a Alemanha está criando um salário mínimo nacional em 2013-2014.


344 - Produtividade marginal do trabalho: não tem como saber exatamente qual é. Por exemplo, no caso do operário numa linha de montagem ou do atendente numa lanchonete do McDonald’s, a empresa pode calcular quanto ela terá de retorno — em termos de receita de vendas suplementar — com um funcionário a mais. Mas, de todo modo, será apenas uma estimativa aproximada, de um intervalo de produtividade, e não uma certeza absoluta


345 - Fora do mundo mágico da concorrência pura e perfeita: Por exemplo, se um pequeno grupo de empregadores num mercado de trabalho local se encontra em situação de monopsônio — ou seja, são praticamente os únicos a oferecer emprego (por existir uma mobilidade claramente reduzida da mão de obra local) —, então é provável que eles tentem explorar ao máximo sua vantagem e baixar os salários o quanto for possível, talvez abaixo da produtividade marginal dos assalariadosNessas condições, impor um salário mínimo pode ser não apenas justo, mas eficaz, no sentido de que um aumento do mínimo legal pode aproximar a economia do equilíbrio concorrencial e elevar o nível de emprego.


346 - ...vários estudos conduzidos nos Estados Unidos nos anos 1980-2000, sobretudo por Card e Krueger, mostraram que o salário mínimo americano caiu a um nível tão baixo ao longo desse período que seu aumento se deu sem que houvesse perdas de emprego, ou até mesmo permitindo que o nível do emprego crescesse, seguindo os modelos mais puros de monopsônio.


347 - ...Piketty lembra que essa estratégia tem um teto. Resumindo: para o longo prazo, investir na formação e na qualificação é a melhor maneira de aumentar os salários e reduzir as desigualdades salariais.


348 - A explosão dos altíssimos salários nos EUA: ...uma explicação possível — e relativamente popular entre alguns economistas americanos — seria que os altíssimos salários cresceram com muito mais força do que os salários médios nos Estados Unidos desde os anos 1970 simplesmente porque a evolução das qualificações e da tecnologia possibilitou que a produtividade dos assalariados mais qualificados progredisse bem mais rápido do que a produtividade média. No entanto, essa explicação — ou, ainda, seu caráter um pouco tautológico (sempre podemos “explicar” qualquer deformação das desigualdades salariais evocando uma mudança técnica adequada) — apresente várias dificuldades consideráveis, o que faz com que ela seja, a meu ver, muito pouco convincente. (...) as remunerações em torno de 100.000-200.000 dólares aumentaram um pouco mais rápido do que a média. Já aquelas superiores a 500.000 dólares explodiram (e mais ainda as remunerações de muitos milhões de dólares).


349 - ...se examinarmos a evolução das qualificações desses diferentes grupos, seja em termos de anos de estudo, seletividade das carreiras seguidas ou experiências profissionais, é muito difícil detectar a menor descontinuidade entre os “9%” e o “1%”. Em outras palavras, tendo por base uma teoria “objetivista” baseada nas qualificações e nas produtividades, deveríamos observar progressões salariais mais ou menos uniformes dentro do décimo superior, ou ao menos muito mais próximas entre os diferentes grupos do que as evoluções altamente divergentes que vemos na prática. Enfim, nem "investir em educação" parece funcionar aqui pra reduzir o "gap".


350 - Resumo: ...diversos fenômenos se acumularam ao longo das últimas décadas: de um lado, o aumento da distância salarial média entre as pessoas com diplomas universitários e aquelas que pararam seus estudos no ensino médio, fenômeno tratado por Goldin e Katz, o que é uma realidade; de outro lado, o salto das remunerações do “1%” (e, mais ainda, do “0,1%”), um fenômeno específico que se desenrolou entre pessoas com os mesmos diplomas universitários e que muitas vezes seguiram as mesmas carreiras longas e elitistasAcontece que esse segundo fenômeno é quantitativamente mais importante do que o primeiro. Em particular, vimos no capítulo anterior que o salto do centésimo superior explica a maior parte — quase três quartos — do aumento da parcela do décimo superior na renda nacional americana a partir dos anos 1970. Pior: se a causa tivesse sido meramente os caprichos das tecnologias, o mesmo fenômeno deveria ter ocorrido com os gestores nos demais países.


351 - ...Trata-se, curiosamente, de um fenômeno anglo-saxão: ...o salto dos salários elevados explica a maior parte — em geral pelo menos dois terços — da alta da parcela do centésimo superior na hierarquia das rendas (o restante se explica pela boa saúde da renda do capital). Em todas as nações anglo-saxãs, é sobretudo a ascensão dos superexecutivos, dentro dos setores financeiros e não financeiros, que explica a progressão da desigualdade da renda nas últimas décadas.


352 - Deve-se ressaltar, porém, que cada país anglo-saxão partiu de e chegou a um ponto diferente (o que dificulta ainda mais a explicação da teoria do "é só a tecnologia nova"). Nos anos 1970, a parcela do centésimo superior na renda nacional era muito próxima nos vários países. Ela estava entre 6% e 8% nos quatro países anglo-saxões estudados, e com os Estados Unidos não era diferente — os americanos eram até ligeiramente ultrapassados pelo Canadá, que atingia 9%, e a Austrália era a lanterninha, com apenas 5% da renda nacional para o centésimo superior no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980Trinta anos depois, no começo dos anos 2010, a situação é totalmente diferente. A parcela do centésimo superior atingiu quase 20% da renda nacional nos Estados Unidos, enquanto ela é da ordem de 14-15% da renda nacional no Reino Unido e no Canadá e chega a 9-10% da renda nacional na Austrália. Nova Zelândia tem trajetória parecida com a da Austrália. Sobre os EUA, teriam resultado ainda "pior" se fossem comparáveis entre os países os dados de ganhos de capital.



353 - No Japão, a evolução foi quase a mesma que se deu na França: a parcela do centésimo superior era de 7% da renda nacional no início dos anos 1980 e hoje, nos anos 2010, é de cerca de 9% — ou talvez um pouquinho mais. Na Suécia, a parcela do centésimo superior era de pouco mais de 4% da renda nacional no início dos anos 1980 (o nível mais baixo registrado no World Top Incomes Database, considerando todos os países e todas as épocas) e atingiu 7% neste início dos anos 2010. Incluindo os ganhos de capital chegaria a 9%.







354 - Se examinarmos os outros países europeus, encontraremos evoluções semelhantes, com elevações da parcela do centésimo superior da ordem de dois a três pontos da renda nacional ao longo dos últimos trinta anos, tanto no norte quanto no sul da Europa. Na Dinamarca, assim como em outros países nórdicos, o nível das rendas altas é mais baixo, mas o aumento é semelhante: o centésimo superior recebia um pouco mais de 5% da renda nacional dinamarquesa nos anos 1980 e se aproxima de 7% nos anos 2000-2010. Na Itália e na Espanha, as ordens de grandeza são muito semelhantes àquelas observadas na França, com uma parcela do centésimo superior passando aproximadamente de 7% para 9% da renda nacional ao longo desse mesmo período — ou seja, mais uma elevação de cerca de dois pontos da renda nacional (ver o Gráfico 9.4). A união do continente europeu é, neste exato momento, quase perfeita, exceto, é claro, o caso do Reino Unido, mais próximo da trajetória observada nos Estados Unidos. Adiciona que, ainda assim, em todos os países a elevações percentuais chocantes nos salários dos superexecutivos, bem acima da média dos demais salários. Ganhar poucos pontos percentuais na distribuição de renda já é uma mudança notável/impactante.


355 - O caso do milésimo superior - os 0,1% - também impressiona. ...ultrapassou 8% nos anos 2000-2010 nos Estados Unidos se omitirmos os ganhos de capital e passou de 12% se os considerarmos. (...) Na França e no Japão, a parcela do milésimo superior passou de 1,5% da renda nacional no começo dos anos 1980 para cerca de 2,5% no início dos anos 2010, ou seja, quase duplicou. Na Suécia, a mesma parcela passou, durante o mesmo período, de menos de 1% para mais de 2% da renda nacional.




356 - ...Para que as ordens de grandeza fiquem bem claras para todos, recordemos que uma participação de 2% da renda nacional para 0,1% da população significa, por definição, que cada um dentro desse grupo dispõe em média de uma renda vinte vezes maior que a média do país (por exemplo, 600.000 euros se a renda média for de 30.000 euros por habitante adulto). Uma participação de 10% nesse caso significa que cada um dispõe de cem vezes a média (ou seja, 3 milhões de euros se a renda média é de 30.000 euros). Enfim, a galera do topo ganhou nas últimas décadas enquanto o poder de compra média da maioria da população se manteve quase que estagnado.


357 - Níveis da coisa: ...nos países com menos desigualdade (como a Suécia nos anos 1970), os membros do 0,1% superior são duas vezes mais ricos do que a média dos que estão no 1% superior, ainda que a parcela do milésimo superior na renda total represente um quinto daquela do centésimo superior; nos países com uma desigualdade maior (como os Estados Unidos dos anos 2000-2010), eles são quatro a cinco vezes mais ricos, ainda que a parcela do milésimo superior represente 40-50% daquela do centésimo superior.


358 - Enfim, Piketty constata que, nos EUA, o caso dos 1% traz uma questão política muito mais nítida/visível. Na prática, a transferência em direção ao “1%” traz dois a três pontos da renda nacional na Europa continental e no Japão, contra dez a quinze pontos nos Estados Unidos, ou seja, entre cinco e sete vezes mais


359 - Na Europa continental e no Japão, a desigualdade de renda permanece, nos dias de hoje, bem mais suave do que no início do século XX e, na realidade, mudou pouco desde 1945, se a colocarmos numa perspectiva de longuíssimo prazo. (...) Isso não implica, claro, que as evoluções europeias e japonesas das últimas décadas devam sem ignoradas. Muito pelo contrário: a trajetória lembra em certos aspectos aquela observada nos Estados Unidos, com uma ou duas décadas de atraso. Relembra que a causa não é tecnologia. (Especialmente até 2010, data do livro, não tem muito diferença. Não é a explosão das "big tech" por exemplo. Idem para os crescimentos do PIB per capita próximos).


360 - Virada do século XIX pro XX: todo mundo era desigual. Europa até mais. Para a Suécia e a Dinamarca, é até mesmo possível observar, em certos anos isolados do período 1900-1910, as parcelas do “1%” atingindo 25% da renda nacional, ou seja, níveis mais elevados do que aqueles constatados no Reino Unido, na França e na Alemanha na mesma época (nos quais o máximo observado é mais próximo de 22-23%). No entanto, considerando as limitações das fontes disponíveis, não é completamente certo que essas diferenças sejam de fato significativas.




361 - É interessante notar que, se compararmos com a Europa, a desigualdade foi menos forte não só nos Estados Unidos e no Canadá (com participações da ordem de 16-18% da renda nacional para o centésimo superior no início do século XX), como também — e sobretudo — na Austrália e na Nova Zelândia (com participações da ordem de 11-12%). Foi então o Novo Mundo como um todo — e, mais ainda, as partes mais novas e mais recentemente povoadas — que se mostrou menos desigual do que a velha Europa na Belle Époque.


362 - Durantes os anos 1950-1970, a parcela do décimo superior era bastante estável e relativamente próxima nos Estados Unidos e na Europa, em torno de 30-35% da renda nacional. Mais tarde, a enorme divergência ... se iniciou nos anos 1970-1980.


363 - Período do nazismo alemão: É interessante notar que a parcela do centésimo superior aumentou intensamente na Alemanha de 1933 a 1938, ao contrário dos outros países: isso reflete a clara volta do aumento dos lucros industriais (impulsionados pelo comando público nas indústrias de armamento) e, de maneira mais geral, o restabelecimento das hierarquias de renda que marcaram o período nazista. Trata de vários problemas de continuidade nas estatísticas alemãs que dificultam comparações, mas joga alguns trechos soltos: .... Quando as estatísticas fiscais da Alemanha retomaram seu curso normal, em 1950, a hierarquia das rendas já havia, em parte, reencontrado seu nível de 1938. Na ausência de uma fonte completa, é difícil ir mais longe.


364 - Pouco depois de criar um imposto progressivo sobre a renda global na metrópole, o Reino Unido decidiu fazer o mesmo em várias de suas propriedades: foi assim que o imposto sobre a renda — bastante próximo, em sua concepção, do imposto introduzido em 1909 no Reino Unido — nasceu em 1913 na África do Sul e em 1922 no império da Índia (incluindo o atual Paquistão). A Holanda fez o mesmo ao instituir o imposto sobre a renda na Indonésia em 1920. Diversos países da América do Sul instituíram o imposto sobre a renda no período entreguerras, como, por exemplo, a Argentina em 1932. Para esses quatro países — África do Sul, Índia, Indonésia e Argentina —, dispomos de dados fiscais que começam, respectivamente, em 1913, 1922, 1920 e 1932 e se estendem, com algumas lacunas, até os anos 2000- 2010.


365 - China (talvez já tenha até piorado) pós-anos oitenta (quando começa a ter dados mesmo sobre isso): O aumento das desigualdades chinesas foi muito rápido após o movimento de liberalização da economia nos anos 1980 e durante o crescimento acelerado dos anos 1990-2000, mas, de acordo com nossas estimativas, a parcela do décimo superior nos anos 2000-2010 situa-se em torno de 10-11% da renda nacional — um nível inferior ao da Índia e da Indonésia (em torno de 12-14%, isto é, mais ou menos o nível do Reino Unido ou do Canadá) e claramente inferior ao da África do Sul e da Argentina (em torno de 16-18%, próximo ao nível dos Estados Unidos).



366 - Enfim, a desigualdade também era marcante nos subdesenvolvidos. E a trajetória tem várias semelhanças.


367 - A Colômbia, ao contrário, mostra-se como um dos países mais desiguais entre os inscritos no World Top Incomes Database: a parcela do centésimo superior situa-se em torno de 20% da renda nacional ao longo dos anos 1990-2000, sem uma tendência clara (ver o Gráfico 9.9). Trata-se de um nível de desigualdade ainda mais elevado do que o atingido pelos Estados Unidos nos anos 2000-2010, pelo menos se excluirmos os ganhos de capital: se eles forem incluídos, os Estados Unidos ultrapassam por pouco a Colômbia nos últimos dez anos.


368 - Nos raros países emergentes que fornecem dados fiscais desde as primeiras décadas do século XX, existem várias lacunas e interrupções nas séries de dados, sobretudo entre os anos 1950-1970, na época das independências, como na Indonésia.


369 - O enorme crescimento registrado nos países emergentes ao longo das últimas décadas, sobretudo na Índia e na China, proveio quase exclusivamente das estatísticas de produção. Quando se tenta medir a evolução das rendas utilizando questionários sobre o orçamento das famílias, com frequência é muito difícil reencontrar as taxas de crescimento macroeconômicas anunciadas: as rendas indianas e chinesas por certo progrediram a ritmos elevados, mas claramente menos do que os previstos pelas estatísticas de crescimento oficial. Esse paradoxo do “buraco negro” do crescimento nos países emergentes é sem dúvida problemático. A causa pode ser uma supervalorização do crescimento da produção (existem vários incentivos administrativos para manipular os fluxos de produção) ou uma subvalorização do crescimento da renda (as pesquisas junto às famílias também têm suas imperfeições) — ou, o que é mais provável, as duas coisasEm particular, isso também pode ser explicado pelo fato de que as rendas mais altas — especialmente mal registradas nos questionários de declaração — captaram uma parte desproporcional do crescimento da produção.


370 - Critica bastante a transparência dos dados chineses e mesmo da Índia. Sobre outros países, critica o uso isolado de pesquisas de domicílio para mapear evolução da desigualdade. Por exemplo, as declarações fiscais permitem constatar que o centésimo superior detinha sozinho mais de 20% da renda nacional na Colômbia nos anos 2000-2010 (e perto de 20% na Argentina). É possível que a desigualdade real seja ainda mais elevada. Mas parece difícil acreditar que as rendas mais altas declaradas nas pesquisas de domicílio conduzidas por esses mesmos países sejam apenas quatro ou cinco vezes mais altas do que a renda média (ninguém é de fato rico), de modo que a parcela do centésimo superior seja em geral inferior a 5% da renda nacional.


371 - Volta a atacar a teoria que vincular os salários meramente à produtividade marginal, eis que os EUA aparecem mais desiguais que alguns períodos da Índia ou África do Sul: Temos mesmo certeza de que a desigualdade fundamental das qualificações e das produtividades individuais é maior nos Estados Unidos deste início de século XXI do que na Índia com metade da população de analfabetos de algumas décadas atrás (ou mesmo de hoje) ou na África do Sul do apartheid (ou pós-apartheid)? Se fosse o caso, talvez seria um pouco inquietante para as instituições de educação americanas — que decerto devem ser melhoradas e mais acessíveis, mas sem dúvida não merecem esse excesso de indignidade.


372 - ...Quanto vale a contribuição de um diretor numa empresa com folha salarial de cinco bilhões e cem mil funcionários? 100.000? 1.000.000? 5.000.000? De fato, o resultado principal — e, de maneira geral, bastante evidente — dos modelos econômicos de experimentação ótima em presença de informação imperfeita é que os agentes (no caso, as empresas) nunca têm interesse em obter uma informação completa, já que existem custos de experimentação (é custoso testar dezenas de diretores financeiros antes de se finalmente escolher um), sobretudo quando a informação tem um valor público que exceda o valor privado para a empresa em questão. E se/quando encontrar esses "super-diretor" mais valioso, o contexto já pode ter mudado e exigir outras características. Enfim... Não seria estranho supor que as pessoas em posição de fixar seus próprios salários tenham uma tendência natural a ser mais generosas, ou ao menos a mostrarem-se mais otimistas do que a média quanto à avaliação de sua produtividade marginal. Tudo isso é humanamente justificável, sobretudo em situações em que a informação é muito imperfeita em termos objetivos. Tudo dependerá, ainda, dos contrapoderes que envolvem a boa governança empresarial, coloca. Mais à frente, dirá que essa história, porém, está falida.


373 - Crê que a diferença é, sobretudo, de tolerância social. Meio que uma cultura e tal. Atualmente, no início dos anos 2010, as remunerações de vários milhões de euros continuam a causar choque muito mais na Suécia, na Alemanha, na França, no Japão ou na Itália do que nos Estados Unidos ou no Reino Unido.


374 - ...Mais que tudo, Piketty vê a coisa como, no máximo, um meio termo entre teorias: Não pretendemos que as desigualdades salariais como um todo sejam inteiramente determinadas pelas normas sociais em matéria de equidade de remunerações. Como já vimos, a teoria da produtividade marginal e da disputa entre educação e tecnologia permite explicar de maneira plausível a evolução no longo prazo da divisão dos salários, ao menos até certo nível salarial e até certo grau de precisão. A lógica da tecnologia e das qualificações estabelece limites dentro dos quais a maior parte dos salários deve ser fixada. (...) para as funções não replicáveis — e quanto mais singulares elas forem, sobretudo dentro das hierarquias administrativas das grandes corporações —, as margens de erro sobre a produtividade individual tornam-se consideráveis.


375 - Produtividade marginal? Então por que remunerar a mais por fatores externos (tipo preço de matéria-prima ou bom desempenho do setor como um todo?)?! Ora, o fato é que nós observamos justamente o contrário: é quando as vendas ou os lucros crescem por razões externas que as remunerações dos dirigentes mais aumentam. Isso fica ainda mais claro ao examinarmos o caso das corporações americanas: o que Bertrand e Mullainhatan chamaram de “remuneração da sorte” (“pay for luck”). Diz que, na próxima parte do livro,  aprofundará tal ponto.


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