Livro: Piketty - O Capital no Século XXI - Capítulo 2
Livro: Piketty - O Capital no Século XXI
Pgs. 88-137
"CAPÍTULO 2: "O crescimento: ilusões e realidades"
61 - Século XX parece ter sido superior ao XIX:
62 - Demografia e 70 bilhões de pessoas na Terra em 2300 (com quase essa média de 1700 a 2012)? Não vai rolar: ...A conclusão simples que se extrai dessa tabela é que taxas de crescimento superiores a 1-1,5% por ano são impossíveis de se sustentar eternamente, uma vez que geram expansões demográficas vertiginosas.
63 - As pequenas porcentagens de crescimento e o longo prazo: A tese central deste livro é precisamente que uma diferença que parece pequena entre a taxa de retorno (ou remuneração) do capital e a taxa de crescimento pode produzir, no longo prazo, efeitos muito potentes e desestabilizadores para a estrutura e a dinâmica da desigualdade numa sociedade. Tudo decorre, de certa maneira, da lei do crescimento e do retorno acumulado, e, portanto, é aconselhável que nos familiarizemos com essas noções.
64 - Se o ritmo de crescimento demográfico observado entre 1700 e 2012 — 0,8% por ano em média — tivesse começado na Antiguidade, a população mundial teria se multiplicado por cerca de cem mil entre o ano 0 e 1700. Levando em conta que a população de 1700 era de mais ou menos seiscentos milhões de pessoas, teríamos de supor uma população minúscula na época de Jesus Cristo (menos de dez mil habitantes para todo o planeta) para sermos coerentes com os números apresentados. Mesmo uma taxa de 0,2% acumulada ao longo de 1.700 anos implicaria uma população mundial de apenas vinte milhões de habitantes no início da nossa era, embora as informações disponíveis sugiram uma população superior a duzentos milhões, dos quais cinquenta milhões apenas no Império Romano. Quaisquer que sejam as imperfeições das fontes históricas e das estimativas da população mundial nessas datas, não há dúvida de que o crescimento demográfico médio entre o ano 0 e 1700 foi bem inferior a 0,2% ao ano, e certamente menor do que 0,1%.
65 - O crescimento não era estável. Longe disso, havia crises alimentares e sanitárias. Maior exemplo foi a Peste Negra dizimando talvez um terço da população mundial, já que chegou até pela Ásia.
66 - Europa: ...a taxa de crescimento da população europeia caiu pela metade, com 0,4% por ano entre 1913 e 2012, contra 0,8% entre 1820 e 1913. Esse é o fenômeno bem conhecido da transição demográfica: o aumento contínuo da expectativa de vida não foi suficiente para compensar a queda da taxa de natalidade, e, assim, o ritmo de crescimento demográfico voltou lentamente aos baixos patamares anteriores. (...) Na Ásia e na África, entretanto, a natalidade permaneceu elevada por muito mais tempo do que na Europa.
67 - América Vs Ásia e África: A diferença crucial, sem dúvida, é que o crescimento demográfico do Novo Mundo se explica em grande parte pelos fluxos de imigrantes de outros continentes, sobretudo da Europa, enquanto os 1,5-2% de crescimento demográfico da Ásia e da África no século XX são inteiramente derivados da expansão natural da população (o excedente de nascimentos com relação às mortes).
68 - Entre 1970 e 1990, a população mundial se expandiu mais de 1,8% ao ano, o que é quase igual ao recorde histórico observado entre 1950 e 1970 (1,9%). Entre 1990 e 2012, o ritmo foi ainda de 1,3%, o que é muito alto.
69 - Isto aqui deve ter sido muito impulsionador do crescimento do PIB per capita: Levando em conta o envelhecimento, o ritmo de crescimento da população adulta mundial ainda foi muito alto: 1,9% por ano, em média, de 1990 a 2012 (a participação dos adultos na população mundial passou de 57% a 65% ao longo desse período e alcançou em torno de 80% na Europa e no Japão e 75% na América do Norte).
70 - Previsões demográficas:
71 - ...É preciso salientar, ainda, que o fraco crescimento demográfico previsto para a segunda metade do século (0,2% entre 2050 e 2100) deve-se inteiramente ao continente africano (com uma expansão de 1% por ano). No caso dos outros três continentes, a população deverá se estabilizar (0% nas Américas) ou diminuir (– 0,1% na Europa e –0,2% na Ásia). Essa situação de crescimento negativo prolongado em tempos de paz constituiria uma experiência inédita na história.
72 - O problema das previsões: A história demográfica mostra que essas escolhas de fertilidade são, em grande parte, imprevisíveis. Elas dependem de fatores às vezes culturais, econômicos, psicológicos e íntimos, relacionados aos objetivos de vida que os indivíduos estabelecem para si próprios.
73 - EUA vs Europa: a diferença é um mistério: Em particular, a alta taxa de fertilidade americana sem dúvida não se explica por políticas mais generosas para as famílias: essas são praticamente inexistentes do outro lado do Atlântico.
74 - A França: Na Europa, a França era um dos países mais populosos no século XVIII (como já salientamos, Young e Malthus viram nisso a origem da miséria dos camponeses e até a causa da Revolução Francesa), mas depois passou a ser caracterizada por uma transição demográfica insolitamente precoce, com uma queda brutal da taxa de natalidade e uma quase estagnação da população a partir do século XIX (fenômeno em geral atribuído a uma descristianização igualmente prematura), para, enfim, passar por um novo aumento atípico da taxa de natalidade no século XX — comumente associado às políticas voltadas para a família adotadas após as conflagrações militares e o trauma da derrota em 1940.
75 - Desigualdade e demografia: Se tudo mais permanecer constante, um crescimento demográfico forte tende a desempenhar um papel equalizador, uma vez que diminui a importância da riqueza acumulada no passado, e, portanto, da herança: cada geração deve de alguma forma se erguer por si mesma.
76 - Pode estar vindo uma possível "era das heranças", digamos: Por exemplo, num mundo em que a produção por habitante fosse multiplicada por dez a cada geração, seria melhor contar com a renda e a poupança resultantes do próprio trabalho: a renda das gerações anteriores seria tão baixa em comparação com a renda atual que a riqueza acumulada pelos pais ou avós não representaria grande coisa.
77 - Crescimento econômico relevante gera oportunidades de mobilidade social: Esse possível aumento da mobilidade social não implica, necessariamente, uma diminuição da desigualdade de renda, mas limita a reprodução e a amplificação, ao longo do tempo, da desigualdade da riqueza, e portanto, em certa medida, da desigualdade de renda.
78 - A renda média mundial hoje é de mais ou menos 760 euros por mês e por habitante; em 1700, era inferior a 70 euros por mês, aproximadamente o mesmo nível apresentado pelos países mais pobres da África Subsaariana em 2012. (...) O PIB médio na África Subsaariana em 2012 foi de cerca de 2.000 euros por habitante, uma renda média de 150 euros por mês (ver o Capítulo 1, Tabela 1.1). Porém, os países mais pobres (por exemplo, República Democrática do Congo, Níger, Chade, Etiópia) têm níveis de duas a três vezes mais baixos, enquanto os mais ricos (África do Sul, por exemplo) têm níveis de duas a três vezes mais altos (próximos dos do Norte da África).
79 - A produtividade cresceu mais de vinte vezes nos últimos três séculos, pois as horas trabalhadas diminuíram quase que pela metade nos países avançados. Alguns PIB per capita, então, multiplicaram por dez.
80 - O logo antes e logo depois da revolução industrial: ...No fundo, o século XVIII se caracterizou pela mesma estagnação econômica dos séculos anteriores. O século XIX viu, pela primeira vez, um crescimento sustentado da produção por habitante, mas vastos segmentos da população não ganharam nada, e menos ainda até o último terço do século XIX.
81 - Produtividade e preços (poder de compra): Há os bens industriais, para os quais o crescimento da produtividade tem sido mais rápido do que a média da economia, de modo que seus preços têm ficado abaixo da média. Existem também os bens alimentares, para os quais a expansão da produtividade foi contínua e, assim, um importante determinante no longuíssimo prazo (isso permitiu que se nutrisse uma população em forte expansão ao mesmo tempo que se liberava uma parte crescente da mão de obra agrícola para outras tarefas). No entanto, o aumento foi menor do que para os bens industriais, e por isso seus preços evoluíram mais ou menos como a média. Por fim, há os serviços, para os quais o crescimento da produtividade tem sido, de modo geral, fraco (até nulo em certos casos, o que explica por que esse setor tende a absorver uma proporção cada vez maior da mão de obra) e para os quais os preços aumentaram mais do que a média.
82 - Por exemplo, na França, o preço do quilo da cenoura evoluiu conforme o índice geral de preços entre 1900-1910 e 2000-2010, de modo que o poder de compra para cenouras seguiu a trajetória do poder de compra médio (que aumentou cerca de seis vezes). O trabalhador assalariado médio podia comprar no máximo dez quilos de cenouras por dia no início do século XX e cerca de sessenta quilos no início do século XXI. No caso de outros produtos, como leite, manteiga, ovos e laticínios, que se beneficiaram de um progresso tecnológico importante no seu processamento, manufatura, conservação etc., observa-se uma redução significativa dos preços relativos, e, portanto, aumento de poder de compra maior do que seis. O mesmo vale para produtos que se beneficiaram de uma baixa considerável nos custos de transporte: em um século, o poder de compra francês para laranjas se multiplicou por dez, ao passo que para bananas ele se multiplicou por vinte. Em contrapartida, o poder de compra medido em quilos de pão ou de carne se multiplicou por menos de quatro, embora tenha havido um forte aumento da qualidade e da variedade desses produtos.
83 - ...O progresso dos computadores e telefones celulares nos anos 1990-2000 e dos tablets e smartphones nos anos 2000-2010 corresponde, às vezes, a multiplicações por fatores de dez do poder de compra em alguns anos: o preço de um produto cai à metade, enquanto seu desempenho se multiplica por cinco.
84 - ...No total, sem nem mesmo levar em conta a melhoria espantosa da qualidade e da segurança do produto, o poder de compra para bicicletas fora multiplicado por quarenta entre 1890 e 1970.
85 - Enfim, por tudo isso, Piketty afirma que comparar poder de compra de épocas diferentes é um negócio meio problemático. É dez vezes maior hoje? Depende bem das métricas e critérios. Comparação das cestas de consumos muito díspares e etc. Há certa dose de arbitrariedade. Nada disso invalida a nítida evolução nos padrões de vida, porém.
86 - O caso típico do serviço “puro” que não sofreu qualquer inovação tecnológica digna de nota ao longo dos séculos é o dos cabeleireiros: um corte de cabelo demora o mesmo tempo para ser feito hoje que no início do século passado, embora o preço do cabeleireiro tenha sido multiplicado pelo mesmo fator que os salários dos profissionais que cortam cabelos, que, por sua vez, se expandiram no mesmo ritmo do salário médio e da renda média.
87 - ...A construção, com 7% do emprego na França em 2012, assim como nos Estados Unidos, foi incluída na rubrica indústria.
88 - Os serviços de saúde e educação ... correspondem a 20% do emprego total nos países mais desenvolvidos (o mesmo que todos os setores industriais reunidos).
89 - Imagino que Piketty esteja analisando as economias de ponta: Os empregos nos setores de comércio, hotéis, cafés e restaurantes, da cultura e do lazer, também em forte ascensão, representam, tipicamente, mais de 20% do emprego total (até mais de 25% em alguns países). Os serviços das empresas (consultoria, contabilidade, design, informática etc.), somados aos imobiliários e financeiros (agências imobiliárias, bancos, seguradoras etc.) e de transportes, se avizinham igualmente dos 20% do emprego total. Se somarmos ainda os serviços do governo e de segurança (administração pública, justiça, polícia, forças armadas etc.), que se aproximam de 10% do emprego total na maioria dos países, chega-se aos 70-80% das estatísticas oficiais.
90 - Problemas de mensuração do PIB: Por exemplo, se um sistema de seguro-saúde privado custar mais do que um sistema público sem que a qualidade seja de fato superior — como leva a pensar a comparação entre os Estados Unidos e a Europa —, então o PIB será artificialmente supervalorizado nos países que optarem pelo sistema privado. Qualidade é dificilmente medida em alguns serviços.
91 - PIB, épocas e continentes:
92 - Crescimento tende a ser cada vez mais lento mesmo nos EUA? Para alguns economistas, como Robert Gordon, o ritmo de crescimento da produção por habitante já está se reduzindo nos países mais avançados, a começar pelos Estados Unidos, e poderia ser inferior a 0,5% por ano no horizonte 2050-2100. As revoluções em TI impactariam menos que as antigas inovações, segundo Gordon.
93 - Qual crescimento Piketty levará em conta nas suas análises preditivas? O cenário mediano apresentado mais à frente baseia-se num crescimento de longo prazo da produção por habitante de 1,2% por ano nos países ricos, o que é relativamente otimista em comparação com as previsões de Gordon (que me parecem um tanto sombrias) e, em particular, não poderá se concretizar sem que novas formas de energia permitam substituir os hidrocarbonetos, em vias de se esgotar. Trata-se de nada mais do que um cenário entre tantos outros. (...) De fato, o crescimento da produção por habitante foi de, no máximo, 1-1,5% por ano ao longo dos últimos trinta anos na Europa, na América do Norte e no Japão. Mesmo assim houve mudanças profundas em nossas vidas, em termos de serviços e tecnologias, coloca.
94 - ...Um país com um crescimento de 0,1% ou 0,2% ao ano se reproduz quase de forma idêntica de uma geração para a outra: a estrutura das carreiras é a mesma, assim como a da propriedade. Um país no qual o crescimento é de 1% ao ano, como tem sido o caso dos países mais avançados desde o início do século XIX, é uma sociedade que se renova de modo profundo e permanente.
95 - Nostalgia francesa tem a ver com o "cair na real" sobre a realidade de um crescimento normal: ...se nos remetermos aos fatos históricos, parece bem claro que os “Trinta Gloriosos” é que foram excepcionais, simplesmente porque a Europa acumulou, ao longo do período 1914-1945, um enorme atraso de crescimento em relação aos Estados Unidos. Tal situação foi logo dirimida durante os “Trinta Gloriosos”. Uma vez que a recuperação chegou ao fim, a Europa e os Estados Unidos voltaram juntos à dianteira mundial, à fronteira tecnológica, crescendo ao mesmo ritmo lento característico dessa posição. (...) Na América do Norte, não existe nostalgia dos “Trinta Gloriosos”, simplesmente porque lá essa época jamais existiu: a produção por habitante cresceu quase no mesmo ritmo ao longo de todo o período 1820-2012, em torno de 1,5-2% ao ano.
96 - Resumo da ópera do crescimento futuro: Ao longo do século XXI, tanto a expansão demográfica quanto a da produção por habitante podem estar perto de voltar a níveis muito mais baixos.
97 - Previsões otimistas para taxa de crescimento do PIB (não PC) mundial (nesse cenário, espera-se quase que uma convergência "a la Asia" dos emergentes em relação aos ricos e também que esses permaneçam crescendo cerca de 1,2% ao ano)
98 - ...Até 1950, essa taxa de crescimento sempre fora inferior a 2% ao ano, antes de saltar para 4% entre 1950 e 1990, nível excepcional que se deve à conjunção da expansão demográfica mais forte da história com o maior aumento histórico da produção por habitante.
99 - A depender da cesta de consumo de sua predileção - aqui entra em jogo a variação dos preços relativos de cada setor - a "sensação de crescimento econômico", na prática, pode ser maior ou menor para determinados indivíduos e grupos sociais, vale lembrar.
100 - Inflação: ...Se calcularmos a média da alta dos preços entre 1700-1820 e entre 1820-1913, observa-se uma inflação insignificante tanto para a França quanto para o Reino Unido, os Estados Unidos e a Alemanha: no máximo 0,2- 0,3% por ano.
101 - ...A estabilidade monetária - exemplo era o bimetalismo - era a regra no período em questão. A famosa exceção foi a Revolução Francesa. A partir do fim de 1789, os governos revolucionários emitiram os famosos assignats, que se tornaram verdadeiros meios de troca, moedas por excelência, iniciando em 1790-1791 (uma das primeiras experiências de emissão de papel-moeda da história), e que geraram uma forte inflação — medida em assignats — até 1794-1795.
102 - ...O mesmo era verdade para outros países: as únicas modificações importantes concernem à definição de novas unidades ou à criação de novas moedas, como o dólar americano em 1775 e o marco-ouro em 1873. Contudo, uma vez fixadas as paridades metálicas, nada se alterava: no século XIX e no início do século XX, cada um sabia que 1 libra esterlina valia em torno de 5 dólares, 20 marcos e 25 francos. O valor relativo das moedas continuava o mesmo por décadas, e não se via razão alguma para que isso fosse diferente no futuro.
103 - Depois das guerras nada mais foi o mesmo. Em agosto de 1914, as principais nações beligerantes acabaram com a conversibilidade das moedas em ouro. Depois da guerra, todos os países usaram, em graus variados, a emissão monetária para absorver a enorme dívida pública. As tentativas de restabelecer o padrão-ouro nos anos 1920 não sobreviveram à crise dos anos 1930 — o Reino Unido saiu do padrão-ouro em 1931, os Estados Unidos, em 1933, e a França, em 1936. O padrão-ouro do período pós-Segunda Guerra durou apenas um pouco mais: adotado em 1946, ele desapareceu em 1971 com o fim da conversibilidade entre o ouro e o dólar.
104 - ...No Reino Unido e nos Estados Unidos, países menos atingidos pelas guerras, e não tão desestabilizados politicamente, a taxa de inflação foi mais baixa: no máximo 3% ao ano entre 1913 e 1950. Ainda assim, isso representa uma multiplicação dos preços por três, após dois séculos de estabilidade monetária.
105 - Depois das guerras é que foi necessário que se falasse em "em valores do ano ou período x" para as moedas. Piketty cita que ninguém ligava pra atualizar valores no tempo. 1000 libras eram 1000 libras, seja em 1800 ou 1900. Claro que havia oscilações consideráveis no caminho, mas a tendência era que se contrabalanceassem. Em todos os países, os choques dos anos 1914-1945 afetaram profundamente as referências monetárias que haviam prevalecido no mundo durante o período pré-guerra, a tal ponto que o processo inflacionário deflagrado pelos conflitos jamais cessou.
106 - ...Os romances de Orhan Pamuk, que se desenrolam na Istambul dos anos 1970-1980, período em que a inflação havia tirado o sentido da noção de moeda, não mencionam qualquer montante. Não valia mais a pena.
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