Livro: Piketty - O Capital no Século XXI - Capítulo 1
Livro: Piketty - O Capital no Século XXI
PRIMEIRA PARTE - RENDA E CAPITAL
Pgs. 46-87
"CAPÍTULO 1: "Renda e produção"
24 - No dia 16 de agosto de 2012, a polícia sul-africana interveio num conflito entre os trabalhadores da mina de platina de Marikana, perto de Joanesburgo, e os responsáveis pela exploração dos recursos, os acionistas da companhia Lonmin, cuja sede fica em Londres. As forças policiais atiraram nos grevistas com munição de verdade; no balanço, 34 mineradores mortos. Como é muito comum nesses casos, o foco do conflito era a questão salarial: os mineiros queriam que sua remuneração passasse de 500 para 1.000 euros por mês. Depois dos trágicos acontecimentos, a empresa propôs, por fim, um aumento de 75 euros mensais.
25 - Participação do capital na renda total: A participação do capital pode alcançar níveis elevados: geralmente entre um quarto e a metade de todo o valor produzido. Contudo, às vezes ela chega a superar essa parcela nos setores que o utilizam de maneira mais intensiva, como a mineração. Quando há monopólios locais, a participação pode ser ainda maior.
26 - Ele começa contrariando até hipótese que defendeu no outro livro dele que li: Durante muito tempo, a tese mais disseminada entre os economistas e repetida à exaustão nos livros acadêmicos era de que havia uma notável estabilidade na divisão da renda nacional entre capital e trabalho no longo prazo: em geral por volta de dois terços para o trabalho e um terço para o capital. Com a ajuda da extensão das séries históricas e dos novos dados de que dispomos, mostraremos que a realidade é bem mais complexa.
27 - O capital humano tem mesmo se tornado mais e mais importante, elevando estruturalmente a participação do trabalho? Não é bem assim: ...a participação do capital (não humano) no início do século XXI é apenas ligeiramente menor do que no início do século XIX.
28 - Renda nacional, a rigor, é menor que o PIB: Para calcular a renda nacional, deve-se primeiro subtrair do PIB a depreciação do capital usado na produção, isto é, a degradação de imóveis, equipamentos, máquinas, veículos, computadores etc., no período de um ano. Essa quantia considerável, que corresponde hoje a cerca de 10% do PIB na maioria dos países, não constitui de fato renda para ninguém: antes de distribuir os salários para os trabalhadores, os dividendos aos acionistas, ou de realizar investimentos realmente novos, é preciso substituir ou reparar o capital usado. Surge o "PIL" que seria uns 90% do PIB. Porém, a renda nacional não é só isso. Depois se deve somar a renda líquida recebida do exterior (ou subtrair a renda líquida remetida ao exterior, dependendo da situação de cada país). Por exemplo, num país onde o conjunto das empresas e do capital pertence aos estrangeiros, a produção interna pode ser bem elevada, mas a renda nacional é nitidamente mais baixa, uma vez deduzidos os lucros e os aluguéis enviados para o exterior. Em contrapartida, um país que detenha boa parte do capital de outros países pode ter uma renda nacional bem mais alta do que a produção interna.
29 - ...Em muitos países, isso não vai fazer muita diferença. Ao que entendi, renda nacional será semelhante ao PIL mesmo: Na França e nos Estados Unidos, na Alemanha e no Reino Unido, na China e no Brasil, no Japão e na Itália, a renda nacional não é muito diferente da produção interna — 1% ou 2% de distância, apenas. Entradas e saídas quase que se compensam. Numa primeira aproximação, os habitantes desses diferentes países detêm, seja em imóveis ou ativos financeiros, a mesma quantidade de riqueza proveniente do resto do mundo que o resto do mundo detém deles. A China não comprou o mundo todo, por exemplo. Os países ricos tendem a ser, inclusive, levemente positivos nesse "jogo da renda líquida recebida do exterior", apesar das reclamações dos franceses.
30 - Quando falar de capital, estará excluindo o capital humano (nem gosta do termo). Só faria sentido num sistema onde a escravização é bastante disseminada.
31 - ...Para simplificar, usaremos as palavras “capital”, “riqueza” e “patrimônio” de forma intercambiável, como se fossem sinônimos perfeitos. Tem gente que quer tirar do conceito as terras, por exemplo. Até mera casa pra habitação ele considera capital. Enfim, é praticamente tudo relevante que possa ser vendido. Capital imaterial também está valendo. Patentes, direitos de propriedade intelectual...
32 - Conceito de riqueza. Ao que entendi, ele subtrai as dividas ao calcular a riqueza de um país ou setor. A riqueza pública hoje está muito baixa na maioria dos países desenvolvidos (às vezes até negativa, quando a dívida pública é maior do que os ativos públicos), e veremos que a riqueza privada representa a quase totalidade da riqueza nacional em praticamente todos os países. No entanto, nem sempre foi assim; por isso, é preciso distinguir as duas noções de riqueza.
33 - Riqueza nacional = capital nacional = capital interno + capital externo líquido.
34 - Medidas/coeficientes que comparam estoque e renda gerada: Por exemplo, se o valor total do capital de um país for o equivalente a seis anos de renda nacional, β = 6 (ou β = 600%). (...) Hoje em dia, nos países desenvolvidos, a relação capital / renda em geral se situa entre cinco e seis e resulta quase unicamente do capital privado. Na França, assim como no Reino Unido, na Alemanha, na Itália, nos Estados Unidos e no Japão, a renda nacional representa cerca de 30.000 a 35.000 euros por habitante neste início dos anos 2010, enquanto o total da riqueza privada (subtraindo-se as dívidas) é tipicamente da ordem de 150.000 a 200.000 euros por habitante, isto é, entre cinco e seis anos de renda nacional.
35 - Realidade mesmo na Europa: Para boa parte da população, a riqueza se resume a muito pouca coisa, em geral bem menos do que o equivalente a um ano de renda: por exemplo, alguns milhares de euros depositados numa conta bancária, montante igual a algumas semanas ou meses de salário. Alguns têm riqueza negativa. Mais passivo que ativo.
36 - Para ajudar cada um a visualizar a forma concreta que a riqueza assume no mundo de hoje, cabe destacar que o estoque de capital nos países desenvolvidos se divide em duas partes aproximadamente iguais: capital relacionado à habitação e capital produtivo usado pelas empresas e pelo governo.
37 - Quer transformar as coisas já escritas em equação "fundamental do capitalismo", digamos:
38 - ...Dito de outro modo, se a riqueza representa o equivalente a seis anos de renda nacional numa sociedade e se a taxa de remuneração média do capital for de 5% por ano, a participação do capital na renda nacional é de 30%.
39 - O "r": ...a taxa de remuneração do capital mensura aquilo que ele rende ao longo de um ano, qualquer que seja a forma jurídica da receita (lucros, aluguéis, dividendos, juros, roy alties, ganhos de capital etc.), e se expressa como uma porcentagem do capital investido. Trata-se, portanto, de uma noção mais abrangente do que o conceito de “taxa de lucro” e bem mais ampla do que “taxa de juros”, ainda que leve ambas em conta.
40 - Em 2010, nos países ricos se constatou que a renda do capital (lucros, juros, dividendos, aluguéis etc.) girava em torno de 30% da renda nacional. Com uma relação capital / renda de 600%, isso significa que a taxa de remuneração média do capital era de cerca de 5%.
41 - Remuneração do capital em tempos mais antigos: Para fixar os conceitos, podemos observar que a taxa de remuneração média da terra nas sociedades rurais tradicionais era tipicamente da ordem de 4-5%. Nos romances de Jane Austen e Balzac, o fato de a renda anual proveniente da terra (ou dos títulos da dívida pública) se situar em torno de 5% do valor desse capital — ou, ainda, de o valor desse capital corresponder a cerca de vinte anos de renda anual — era uma realidade tão presente para a época que os autores sequer precisavam explicitá-la. Cada leitor bem sabia que era necessário um montante de capital da ordem de 1 milhão de francos para produzir uma renda anual de 50.000 francos. Para os escritores do século XIX, assim como para seus leitores, a equivalência entre o patrimônio e a renda anual era tão óbvia que se passava de um conceito ao outro sem que fosse preciso explicar nada, como se os dois fossem sinônimos perfeitos ou dois idiomas paralelos conhecidos por todos.
42 - Segunda lei fundamental do capitalismo: ...a razão β de um país é tanto maior quanto mais elevada for a taxa de poupança e menor for o crescimento.
43 - O nascimento da contabilidade nacional: É interessante notar que os autores perseguiam com frequência um objetivo político bastante preciso, em geral sob a forma de um projeto de modernização fiscal. Ao calcular a renda e a riqueza nacionais do reino, tencionavam mostrar ao seu soberano que era possível angariar receitas consideráveis por meio de duas taxas relativamente moderadas, desde que se soubesse o conjunto das propriedades e da riqueza produzida e que se aplicasse o imposto a todos, sobretudo aos donos das terras, aristocratas ou não.
44 - Após as guerras, passou a ser indubitavelmente mais importante coletar dados sobre fluxo que sobre estoque. Até pela própria queda do capital privado, em momento de forte baixa. Só a partir dos anos 1990 os estoques voltariam a receber a atenção devida.
45 - As cifras publicadas não devem ser tomadas como “fetiche”. Quando se diz que a renda nacional de um país é de 31.000 euros por habitante, é evidente que tal cifra, como todas as estatísticas econômicas e sociais, deve ser tratada como uma estimativa, uma construção, e não uma certeza matemática.
46 - ...O longuíssimo prazo aí está baseado em Maddison.
47 - ...A Ásia, por sinal, está puxando o bonde contra as desigualdades nacionais, digamos assim:
48 - Dados de 2012 creio (desde então tem havido mais convergência entre leste-oeste, ao que lembro): A Europa tem 740 milhões de habitantes, dos quais em torno de 540 milhões fazem parte da União Europeia, onde o PIB por habitante ultrapassa os 27.000 euros, e os outros 200 milhões estão no bloco Rússia / Ucrânia, onde o PIB por habitante é de cerca de 15.000 euros, ou por volta de 50% acima da média mundial. (...) A própria União Europeia é relativamente heterogênea, uma vez que compreende, de um lado, 410 milhões de habitantes na antiga Europa Ocidental (dos quais três quartos estão nos cinco países mais populosos: Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Espanha), com um PIB médio de 31.000 euros, e, de outro, 130 milhões de habitantes do Leste Europeu, com um PIB médio da ordem de 16.000 euros, não muito diferente do bloco Rússia / Ucrânia.
49 - ...Ainda 2012 creio: A América é igualmente dividida em dois conjuntos bem distintos de países, ainda mais desiguais do que o centro e a periferia europeia: o bloco Estados Unidos / Canadá, com 350 milhões de habitantes e 40.000 euros de PIB por habitante, e a América Latina, com 600 milhões de habitantes e 10.000 euros de PIB por habitante, exatamente a média mundial. A África Subsaariana, com 900 milhões de habitantes e um PIB de apenas 1.800 bilhões de euros (...), é a zona econômica mais pobre do mundo, com 2.000 euros de PIB por habitante.
50 - À frente ele esclarece que está usando PPP ("A outra vantagem de usar as paridades do poder de compra é que elas são mais estáveis do que as taxas de câmbio nominais"). Para resumir, a desigualdade mundial contrasta países cuja renda média por habitante é da ordem de 150-250 euros por mês (África Subsaariana e Índia) com países onde a renda média por habitante alcança um patamar entre 2.500- 3.000 euros por mês (Europa Ocidental, América do Norte, Japão) — ou seja, onde as pessoas ganham vinte vezes mais.
51 - ...Na verdade, as taxas de câmbio nominais refletem não só o estado da oferta e da demanda pelos bens e serviços que os diferentes países transacionam como também as estratégias de alocação de recursos dos investidores internacionais, as expectativas mutantes sobre a estabilidade política e financeira desse ou daquele país, sem falar das oscilações por vezes caóticas da política monetária em diferentes lugares. As taxas de câmbio nominais podem, portanto, ser extremamente voláteis, como ilustram as fortes flutuações do dólar ao longo das últimas décadas: a taxa de câmbio foi de mais de 1,30 dólar por euro nos anos 1990 para menos de 0,90 dólar em 2001, antes de disparar para cerca de 1,50 em 2008, caindo para 1,30 em 2012. Durante esse tempo, a paridade do poder de compra aumentou suavemente, de cerca de 1 dólar por euro no início dos anos 1990 para em torno de 1,20 dólar por euro no início de 2010. (...) A tendência de queda do poder de compra do dólar perante o euro desde 1990 corresponde ao simples fato de que a inflação foi levemente mais alta nos Estados Unidos (em 0,8% ao ano, ou cerca de 20% em vinte anos).
52 - ...Contudo, a despeito dos melhores esforços das organizações internacionais responsáveis pelas pesquisas ICP, é preciso reconhecer que essas paridades do poder de compra permanecem imprecisas, com uma margem de erro da ordem de 10%, às vezes até mais, mesmo entre países com níveis de desenvolvimento comparáveis. (...) Em princípio, as estimativas oficiais ponderam os vários preços em função do peso de diversos bens e serviços no orçamento médio de cada país, mas é bastante evidente que esses cálculos não podem ser perfeitamente precisos, até porque as diferenças de qualidade entre os serviços prestados são muito difíceis de medir.
53 - ...Nos países mais pobres, as correções introduzidas pelo uso das paridades do poder de compra são bem substanciais: tanto na África como na Ásia, os preços são cerca de duas vezes mais baixos do que nos países ricos, de modo que o PIB quase dobra de tamanho quando se passa da taxa de câmbio nominal para a paridade do poder de compra. Isso resulta, essencialmente, de preços mais baixos dos serviços e bens não transacionados nos mercados internacionais, mais fáceis de produzir nos países pobres, uma vez que são mais intensivos no uso da mão de obra pouco qualificada (fator de produção relativamente abundante nos países menos desenvolvidos) e menos dependentes do trabalho qualificado e do capital (relativamente menos abundantes). Em geral, a correção é maior quanto mais pobre for o país: em 2012, o fator de correção era de 1,6 para a China e de 2,5 para a Índia.
54 - Muito louco que Maddison defendeu que o PIB oficial chinês podia estar (2012 ao que entendi) subestimado. As acusações que vejo são justamente referentes ao contrário.
55 - A divisão mundial da renda costuma ser mais desigual do que a da produção, uma vez que os países com a produção por habitante mais alta também tendem a deter uma parte do capital de outros países e, portanto, a receber um fluxo positivo de renda do capital proveniente dos países para os quais a produção por habitante é mais baixa. É um pouco superior. Já a África é quem mais se dá mal nessa divergência entre produção e renda: A cifra média de 5% no continente africano parece ser relativamente estável para o conjunto do período 1970-2012. É interessante notar que o fluxo de saída da renda do capital é três vezes mais alto que o fluxo de entrada de recursos provenientes da assistência internacional (cuja mensuração seria outra discussão).
56 - ...Historicamente tais discrepâncias já foram bem mais significativas: Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, a renda nacional do Reino Unido, principal investidor global, era 10% mais alta do que sua produção interna. A diferença superava os 5% na França, a segunda potência colonial e segundo investidor global, e se aproximava disso na Alemanha, cujo império colonial era insignificante, mas onde o desenvolvimento industrial permitia uma forte acumulação de créditos em relação ao resto do mundo. (...) No total, é possível estimar que as potências europeias detivessem, em 1913, entre um terço e a metade do capital doméstico asiático e africano, e mais de três quartos do capital industrial.
57 - E a teoria otimista da equalização das taxas de investimento? Capital buscando no país pobres oportunidades melhores de crescimento marginal. Piketty coloca que, mesmo que isso fosse real, ainda haveria o risco de os "estrangeiros" comprarem boa parte dos ativos doméstico havendo eterna remessa de rendas e tal, sempre dificultando a convergência.
58 - Ainda o mito da mobilidade do capital estrangeiro: Nenhuma das nações asiáticas que reduziram o atraso em relação aos países mais desenvolvidos, quer se trate do Japão, da Coreia e de Taiwan no passado ou da China hoje, se beneficiou de investimentos estrangeiros substanciais. O livre fluxo de capital é menos importante que a poupança interna, que o diga a China. O fluxo (abertura) comercial com inserção estratégica também é mais importante.
59 - ...Ainda sobre abertura: Os estudos disponíveis mostram, também, que a maior parte dos ganhos provenientes da abertura do comércio internacional advém da difusão do conhecimento e do aumento dinâmico da produtividade que resultam da abertura, e não dos ganhos estáticos relacionados à especialização. Um rodapé estima ganhos/números baixíssimos para as "vantagens da especialização" pós-abertura.
60 - ...Esse processo de difusão do conhecimento não cai do céu: muitas vezes ele é acelerado pela abertura internacional e comercial (a autarquia não facilita a transferência tecnológica).
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