"Livro": Numa Mazat - Um estudo heterodoxo da (...) Rússia - Capítulo 2
"Livro": Numa Mazat - Um estudo heterodoxo da trajetória econômica contemporânea da Rússia
Pgs. 54-64
"CAPÍTULO 2: "O fim da União Soviética e a escolha de uma transição radical"
46 - A lei sobre empresa estatal de Gorbachev: ...essa lei, através da autogestão, acordava aos gerentes e aos funcionários das empresas a possibilidade de decidir por exemplo a distribuição entre investimento e salários. Ora, os funcionários decidiram favorecer sua própria renda em detrimento do investimento, que caiu a partir de 1988. (...) O déficit público da URSS atingiu 9,2 % do PIB em 1988 e 8,7% do PIB em 1989. Ele foi alimentado, também, pelas campanhas de luta contra o consumo de álcool organizadas em 1987, que acabaram baixando bastante as receitas fiscais. (...) A queda do investimento foi de 7,4% em 1988 e de 6,7% em 1989. (...) Esse aumento da renda abalou totalmente o mercado de consumo. Assim, a partir de 1988, aparece um excesso importante e crescente da demanda por bens de consumo sobre a oferta de bens de consumo. Isso vai aumentar consideravelmente os problemas de penúria e de filas que já existiam na URSS. (...) E interessante notar que a renda nominal per capita disponível aumentou de 9,1% em 1988, enquanto o consumo privado aumentou só de 3,9%. Para 1989, o spread era ainda maior, com 12,8% de um lado e 5,3% do outro.
47 - As cooperativas incentivadas pelas leis da Perestroika já chegavam a 6% do PIB em 1990 e 4,2 milhões de funcionários. De fato, essas leis foram pervertidas e acabaram criando uma nova classe de empresários pró-capitalismo, cujas atividades iam bem além dos serviços e das indústrias de pequena escala imaginados pelos reformadores da Perestroika. Assim, muitas dessas novas empresas eram cooperativas só de forma. Na realidade, muitas se especializaram nas atividades de importação e de exportação de bens, ampliando ainda mais a crise de consumo e os desequilíbrios da URSS.
48 - Ainda em 1990, surgem os programas de "soluções" para a "Perestroika": ...O primeiro consistiu nas proposições do primeiro ministro Abalkin, em março de 1990 que foram bem além da constituição de uma economia socialista com elementos de mercado que queria Gorbatchev: liberação progressiva dos preços, privatização parcial das empresas estatais, fim da garantia constitucional do emprego. Gorbatchev rejeitou essas proposições, mas, seu poder já estava muito enfraquecido e ele teve que aceitar, em maio de 1990, um plano de transição gradual para uma economia de mercado regulada. Esse plano previa um controle central do processo de transição e um papel importante do Estado na futura economia soviética. Mas, ele foi considerado tímido demais pela maioria dos dirigentes soviéticos. Em setembro de 1990, foi então apresentado, por um grupo de economistas liderado por Yavlinsky, o Plano dos 500 dias, que pretendia transformar a URSS numa economia de mercado em 17 meses, com algumas medidas como a privatização de 70% das empresas, incentivos para o investimento estrangeiro e a criação de um sistema financeiro apoiado em bancos privados e mercados financeiros. Mesmo se Gorbatchev não aprovou esse plano, ele teve que apresentar ao Parlamento, no dia 19 de outubro de 1990, um programa de transição que comportava todos os elementos do Plano dos 500 dias, com uma agenda mais progressiva. Isso significava o fim formal do socialismo na economia soviética.
49 - (...) O papel de Gorbatchev na desmontagem do sistema econômico soviético foi muito grande. Muitos observadores, confiando nos seus testemunhos escritos e nos seus discursos, acreditam na sinceridade de Gorbatchev quando ele afirmava que queria preservar o socialismo e só introduzir alguns elementos de mercado. Mas, o conjunto de medidas tomadas por Gorbatchev foi tão obviamente destruidor do sistema soviético que é permitido duvidar da sua lucidez e até da sua boa fé. O economista francês Jacques Sapir defende, assim, a idéia que Gorbatchev teve um discurso de preservação do socialismo só para não assustar a ala mais conservadora do P.C.U.S. A prova disso seria as manobras que fez ao longo da Perestroika para afastar progressivamente o P.C.U.S. do poder.
50 - A transição "deu ruim": Segundo as estimativas do Joint Economic Committee, o PIB soviético caiu 2,4% em 1990 e 12,8% em 1991. (...) Os déficits fiscais crescentes ao longo da Perestroika foram responsáveis por um aumento ainda maior da liquidez na economia porque o Estado soviético financiava seu déficit pela emissão de papel moeda usado para pagar uma parte dos salários.
51 - Nesse contexto, dois eventos vieram confirmar simbolicamente o fim do sistema econômico soviético. Assim Gosplan e o Gossnab foram suprimidos no dia 1 de julho de 1991, marcando a morte do planejamento na URSS. Nesse mesmo mês de julho, a Rússia entrava no FMI e no Banco Mundial. (...) Os nacionalismos se multiplicavam. Politicamente, também, a União Soviética não tinha como sobreviver muito tempo. A estratégia de Yeltsin para a conquista do poder na Rússia só acelerou um fim inevitável. A URSS deixou oficialmente de existir no dia 25 de dezembro de 1991.
52 - Vários grupos da sociedade soviética aproveitaram a liberdade de opinião trazida pela Glasnost para ostentar posições pró-capitalistas. Atrás dessas posições, se encontrava claramente a vontade de conquistar vantagens materiais maiores do que no sistema soviético. Os pró-capitalismo estavam inclusive dentro do próprio partido. Esse fenômeno pode parecer estranho, mas vale lembrar que muitas pessoas apoiavam o sistema só para se beneficiar das vantagens que essa atitude trazia. Essa falta de compromisso ideológico explica em grande parte a conversão de setores inteiros da sociedade soviética ao projeto de economia de livre mercado.
53 - "Cooperativas": Várias pesquisas mostram que mais de 75% dos empresários surgidos durante a Perestroika eram membros do PCUS.
54 - As eleições para o Congresso de 1989 e para os soviets de 1990, permitiram a ascensão de candidatos independentes e de ativistas das reformas pró-mercado. Coloca-se que os novos empresários financiavam candidatos pró-reformas capitalistas.
55 - ...A figura central da oposição à Perestroika foi o futuro presidente da Rússia, Boris Yeltsin. De fato, ele conseguiu representar o movimento pró-capitalista e soube impor sua visão do futuro (ou melhor, da ausência de futuro) da URSS em menos de três anos. Ele foi o porta-voz político de todos os grupos que já descrevemos. Yeltsin, que tinha sido expulso do PCUS em 1988, voltou ao Congresso soviético com as eleições de 1989. Em maio de 1990, ele tornou-se presidente da Duma, a assembléia russa. Em abril de 1991, Yeltsin, junto com os dirigentes de nove das repúblicas soviéticas, obrigou Gorbatchev a aceitar o princípio do Tratado da União, que transferia muito poder para as repúblicas da federação. Isso representa, na prática, o fim da URSS. Em junho de 1991, Yeltsin é eleito democraticamente primeiro presidente da Rússia. O poder de Yeltsin era já tão grande que Gorbatchev não podia mais tomar nenhuma decisão importante sem seu acordo.
56 - ...A tentativa de golpe fracassada do dia 17 agosto de 1991 marcou o ponto final da experiência da Perestroika no campo político. Os golpistas, todos adversários do Tratado da União, eram na sua maioria integrantes do governo ou da administração de Gorbatchev apesar da oposição dele a qualquer forma de ação violenta. Essa demonstração do enfraquecimento de Gorbatchev deixou o caminho livre para Yeltsin.
57 - (...) As pressões externas se juntaram às pressões internas que já estudamos. A União Soviética precisava de divisas para realizar suas importações de bens de consumo, absolutamente necessárias no contexto de penúria da Perestroika. Ora, as exportações (principalmente de petróleo e de gás) não bastavam para financiar essa necessidade. A URSS teve, então, que pedir empréstimos aos países ocidentais. Vários aceitaram, mas, condicionaram sua ajuda financeira à exigência de reformas radicais no sentido da adoção da economia de mercado pela União Soviética. Não se deve exagerar a importância desse elemento na derrota da Perestroika, mas isso contribuiu de forma não negligenciável.
58 - A "Terapia de Choque" foi anunciada fim de outubro de 1991. Sachs, Lipton e outros colaborariam com o projeto do primeiro-ministro Gaidar, desigmado por Ieltsin. Esses dois economistas ortodoxos já haviam trabalhado juntos no plano de reestruturação conduzido na Bolívia durante os anos 80. E a Polônia serviu de laboratório em 1989. Vieram todas aquelas medidas preconizadas pelo neoliberalismo. (...) A Polônia teve uma queda do PIB de 11,6% em 1990 e de 7,2% em 1991.
59 - A hiperinflação, ligada ao excesso de liquidez em circulação herdado da União Soviética é apontada como sendo o maior risco. Essa eventualidade seria piorada se houvesse uma queda brutal da produção, provocada pela reconversão da indústria russa ou a queda dos salários reais consecutiva à inflação. Frente a esses potenciais problemas, a população poderia, também, não apoiar as reformas. A solução era, então, segundo Gaidar e os outros reformistas, de realizar o conjunto de mudanças consideráveis no mínimo de tempo possível.
60 - Sucesso da receita neoliberal na Polônia? A retomada do crescimento econômico na Polônia, a partir de 1992, foi visto por muitos como a confirmação da validade da Terapia de Choque. Mas muitos esqueceram o fato que a Polônia deveu muito do seu sucesso econômico à sua posição estratégica na Europa, o que não é o caso da Rússia. De fato, as empresas alemãs e européias abriram muitas fábricas na Polônia, a partir de 1991, para beneficiar de uma mão de obra barata e bem formada e da proximidade do país com os principais mercados do continente. Além disso, a Polônia se beneficiou com o cancelamento de boa parte da sua dívida externa, fenômeno que não aconteceu com a Rússia.
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