Livro: João Bernardo - Economia dos Conflitos Sociais - Capítulo 3 (PARTE "B")
Livro: João Bernardo - Economia dos Conflitos Sociais
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Pgs. 198-234
"CAPÍTULO 3: "Integração econômica"
151 - JB coloca, ao que lembro com razão, que Marx, por vezes, não foi cem por cento coerente nas exemplificações sobre trabalho produtivo e improdutivo. É muito difundida entre várias correntes marxistas a definição que considera como improdutivos aqueles trabalhadores inseridos em processos cujo output não regresse, enquanto input, aos ciclos de produção; e também na obra de Marx podem encontrar-se algumas afirmações neste sentido. O trabalho produtivo se classificaria, então, não como o produtor de mais-valia, mas como o produtor dos inputs dos processos de produção.
152 - ...Discordo completamente de uma significativa corrente marxista contemporânea que exclui a fabricação de armamentos da reprodução dos ciclos produtivos. Pretende essa tese que todas as instalações, maquinarias e matérias-primas incluídas no ramo de armazenamentos não se contariam entre os elementos do capital constante, reduzindo-se assim a fração ocupada por esta categoria no capital global, com o consequente aumento da taxa de lucro; sob esse ponto de vista, a forma mais importante como os capitalistas se oporiam à descida tendencial da taxa de lucro consistiria na expansão de um setor, que os defensores desta tese denominam setor III, definido pelo fato de o seu output não regressar enquanto input aos ciclos produtivos, ou seja, do setor do armamento, completado acessoriamente pelo dos artigos de luxo consumidos pelos capitalistas. O problema da tendência ao declínio da taxa de lucro seria, nestes termos, resolvido pelos capitalistas exteriormente aos conflitos sociais ocorridos nos processos de produção, exteriormente aos mecanismos da mais-valia.
153 - Como desde cedo preveniu o primeiro e o maior de todos os revolucionários modernos, o lucidíssimo Marat, o implacável Amigo do Povo, a preocupação com a guerra exterior leva, no interior de cada país, ao esquecimento das clivagens entre as classes.
154 - A mais-valia é uma relação social e o trabalhador é produtivo enquanto se insere num dos pólos dessa relação, independentemente de aquilo que produz ser ou não um objeto sujeito à lei da gravidade. Desenha-se entre os marxistas uma forte tendência para considerar improdutivos todos os que operam no chamado setor dos serviços, já que o caráter imaterial do que produzem dificulta a cabal reificação das relações sociais, tão do agrado daquela insossa ortodoxia. Quanto aos mecanismos sociais em que se inserem, os serviços não se distinguem, porém, de qualquer outra atividade produtiva. A única diferença diz respeito à impossibilidade de armazenar o resultado imediato desse trabalho.
155 - JB escreve de forma prolixa o que penso há anos: Os trabalhadores comerciais, que transferem um dado produto para o consumo produtivo, seja ele o de uma empresa ou da força de trabalho, participam no processo pelo qual o tempo de trabalho incorporado nesse produto é conservado como valor, isto é, colaboram com a sua atividade própria na revivificação do trabalho materializado e, portanto, conservam valor e produzem mais-valia. Contrariamente à opinião de Marx, eles são trabalhadores produtivos.
156 - JB exclui, porém, "evidentemente" (não para mim), os muitos estabelecimentos comerciais em que prevalece o sistema familiar, quer os empregados sejam ou não parentes do patrão.
157 - Uma esfera da circulação especificamente definida não se encontra onde Karl Marx a situou, no campo do comércio; o processo da circulação é apenas o processo de repartição intracapitalista da mais-valia, tal como analisarei na seção seguinte. Qual o modelo de JB então? Ora, se se trata de uma economia integrada, onde não existe, portanto, produção isolada de mais-valia, o trabalho produtivo obedece às pressões para o aumento da produtividade, em sistema de mais-valia relativa, ou para o aumento da intensidade do trabalho e/ou extensão da jornada de trabalho, em sistema de mais-valia absoluta. São a organização do trabalho, os seus ritmos, os tipos de disciplina impostos que permitem distinguir empiricamente o trabalho produtivo da atividade improdutiva. (O que, por sinal, a meu ver, pode ocorrer em pequenos estabelecimentos "familiares" também).
158 - Como tão argutamente observou um autor anticapitalista húngaro, Miklós Haraszti, num livro notável traduzido em francês sob o título Salaire aux Pièces. Ouvrier dans un Pays de l’Est: “[...] os empregados [administrativos] executam tarefas mais fáceis e trabalham menos e menos intensamente do que os operários [...] e a cafeteira a fervilhar nos escritórios simboliza a sua participação no poder, por mais limitada que seja. [...] O empregado que despreocupadamente faz esperar um assalariado que ganha por peça produzida, apesar de este lutar incessantemente contra o tempo, pode invocar numerosas desculpas, mas ninguém o acreditará. Para o operário que trabalha na linha de montagem e cuja utilização do tempo não lhe permite em caso nenhum perder a cadência, o empregado dos escritórios é o típico parasita. O emprego de tempo dos dirigentes e a intensidade do seu trabalho nunca são postos em questão: não existe nenhum critério que se lhes aplique [...]. E o trabalho dos subalternos que se mede e se avalia.” (...) E podemos assim compreender empiricamente quem, despossuído do tempo, transforma-o em valor e em mais-valia e quem fica com o tempo para si. Ou seja, quem é o trabalhador produtivo e quem é o improdutivo.
159 - O consumo dos capitalistas enquanto personificação do capital é o investimento e esse é um consumo produtivo; o consumo dos capitalistas enquanto pessoas é o consumo improdutivo. De toda forma, não podem ser considerados produtores, afirma.
160 - JB às vezes parece resumir o grosso do consumo dos capitalistas a itens - bens e serviços - artesanais improdutivos fruto de atividades pré-capitalistas (qualidade contando mais que produtividade). Creio que isso é só uma parte pequena pra tanto destaque, não? Carros, viagens e imóveis suntuosos, relógios caros, eletrônicos de última geração... todos itens consumidos por essa galera devem ser produzidos de forma essencialmente capitalistas. Mas enfim... Diz JB: ...Assim, nos circuitos de produção e de comercialização, mantém-se o lugar para toda uma série de estabelecimentos de tipo pré-capitalista, regidos pelo sistema artesanal; ou para formas mistas, em que um mesmo estabelecimento sustenta a produção ou a venda de bens e serviços destinados ao consumo produtivo e obedecendo, portanto, aos mecanismos capitalistas da produtividade, e ao mesmo tempo de bens e serviços destinados ao consumo capitalista individual e fruto de trabalho improdutivo. A distinção física entre ambos os tipos de estabelecimento pode ser completa, por exemplo, nos casos em que os capitalistas consomem alimentos resultantes de processos tradicionais e preparados em restaurantes onde é o trabalho artesanal que prevalece; ou quando vestem roupa feita por medida por alfaiates artesãos.
161 - As artes visuais, em especial o cinema, bem como a música e a literatura consumidas pela força de trabalho obedecem inteiramente, na sua produção, aos mecanismos da produtividade. São produtos capitalistas, que nada se diferenciam economicamente de quaisquer outros. Por sua vez, as formas artísticas preferencial ou exclusivamente consumidas pelos capitalistas são de feitura estritamente artesanal.
162 - Formação de capitalistas. O ambiente familiar ainda guarda grande importância (fico lembrando de Succession). Ao desprezo pelos mais velhos, que caracteriza os jovens trabalhadores nas áreas de grande desenvolvimento da produtividade, opõe-se da parte dos jovens capitalistas um misto de respeito pelo saber-explorar adquirido pelos pais e avós e de cobiça pela posição de domínio que estes ainda se reservam. Traz exceções em histórias de ascensões intracapitalistas.
163 - Aumento do consumo médio dos trabalhadores mais bem remunerados. Assim, JB vê a questão: Da luta social resultante podem decorrer duas soluções: ou os capitalistas conseguem impor à camada mais bem remunerada da força de trabalho uma redução dos níveis superiores de consumo e, portanto, mantém-se idêntico o consumo historicamente considerado como médio; ou os trabalhadores conseguem preservar esse movimento ascensional do seu consumo, impondo, portanto, a elevação do nível admitido historicamente como médio. Neste último caso, ao serem acolhidos no consumo convencionalmente aceito como próprio da força de trabalho, aqueles tipos de produto que haviam até então possuído um componente de luxo começam a ser produzidos segundo os mecanismos da produtividade. Podem manter, e certamente manterão durante uma fase inicial, semelhanças formais com os anteriores, os que incorporavam o componente artesanal; mas resultam agora inteiramente da produção capitalista e destinam-se ao consumo produtivo.
164 - Gestores e capitalistas. Ambas são classes capitalistas porque se apropriam da mais-valia e controlam e organizam os processos de trabalho.
165 - A divisão entre as esferas de ação da burguesia e dos gestores não corresponde à distinção entre as UPP e as CGP, nem à distinção entre o Estado A e o Estado R. No entanto, (...) As CGP têm sempre sido, por seu lado, um campo privilegiado de existência dos gestores, em virtude da posição que lhes cabe no inter-relacionamento dos processos econômicos.
166 - Quanto à esfera ocupada por cada uma destas classes capitalistas nos aparelhos de poder, a regra é a mesma: as instituições que desempenham um papel centralizador constituem um campo de existência dos gestores e aquelas que correspondem a uma maior particularização suportam a burguesia.
167 - Lucro não é mais-valia. O burguês proprietário de uma empresa não explora apenas a mão-de-obra que diretamente assalaria e cuja atividade superintende; ele apropria-se de mais-valia produzida pela generalidade da força de trabalho.
168 - O que um gestor transmite por herança, sob o ponto de vista da detenção de capital, é um estatuto social, uma rede de contatos e solidariedades, da qual resulta uma posição específica na organização da vida econômica e na exploração dos trabalhadores. A realidade jurídica aqui é o caráter coletivo assumido, no interior da classe dos gestores, pela propriedade do capital. A ficção jurídica consiste em projetar essa forma de propriedade coletiva de classe em propriedade universal — o que significaria, em não-propriedade —, identificando-se o sistema remuneratório dos gestores com o dos não-proprietários de capital, ou seja, com o assalariamento da força de trabalho. A forma jurídica do salário é transformada em ficção jurídica quando passa a incluir a mais-valia de que cada gestor se apropria em virtude da sua relação com as instituições de coordenação econômica e de centralização política.
169 - Gestores recebem salários e mordomias. Nos países onde a classe burguesa mantém ainda uma ativa presença empresarial, outros elementos se adicionam às remunerações dos gestores superiores: ações da empresa, recebidas em termos privilegiados; empréstimos concedidos a juros baixíssimos pela própria empresa; prêmios, por vezes de montante muito elevado, recebidos pelos principais gestores de uma empresa se a eventual aquisição por outra implicar a sua demissão.
170 - Livre-concorrência como ideologia moral: Não é outra a função do modelo da livre-concorrência e por isso tem a burguesia de continuar a empregá-lo, mesmo numa época como a atual, inteiramente oligopolista, e apesar de a dinâmica histórica ter sido exatamente a oposta aos pressupostos livre-concorrenciais; com efeito, desde o início que o capitalismo não prescinde de um grau de integração das unidades econômicas e, portanto, de um componente planificatório.
171 - Já os gestores fingem que eles que inventaram a planificação, coloca. Que essa aí é uma novidade.
172 - Isso é uma forma mais complicada de explicar os cercamentos ou se trata de outro fenômeno? Uma das contribuições decisivas para a formação da burguesia consistiu no putting-out system, pelo qual grandes negociantes forneciam matérias-primas a trabalhadores em áreas rurais que, com os seus próprios instrumentos de produção e a troco de uma forma de salário, convertiam-nas em produto acabado ou semi-acabado, entregue em seguida ao mesmo negociante-empregador. Assim, progressivamente, estes negociantes transformaram-se em empresários capitalistas, a mão-de-obra converteu-se em força de trabalho do capital, criaram-se as bases da grande indústria e da nova tecnologia, ao mesmo tempo que se proletarizava a sociedade agrária, minando-se os fundamentos da economia pré-capitalista.
173 - Já os gestores teriam buscado desde sempre a burocracia. Foram estas burocracias que orientaram a edificação das primeiras condições gerais que permitiram ao putting-out system e a outras formas embrionariamente empresariais converter-se em empresas capitalistas propriamente ditas.
174 - A concentração: A medida que se agravam as pressões sobre a taxa de lucro, eleva-se a quantidade mínima de capital necessária para assegurar uma reprodução em escala ampliada; e a desvalorização maciça acarretada a cada crise permite, quando a recuperação econômica se inicia, que diminua o volume mínimo necessário de capital. Como, porém, de um ciclo para o seguinte a concentração média vai aumentando, torna-se cada vez menor a facilitação relativa da concorrência posterior às crises. (...) Os processos produtivos puderam a partir de então continuar a concentrar-se graças somente à mobilização da generalidade indeterminada dos capitais mediante os sistemas financeiros, que considero aqui em todas as suas formas, incluindo tanto as operações de crédito propriamente ditas como as sociedades por ações.
175 - Mais gestão e o controle familiar se tornando cada vez mais raro com a diluição de acionistas de um empreendimento: Se os mecanismos financeiros se desenvolvem precisamente porque os investimentos individualizados haviam se tornado absolutamente insuficientes, compreende-se que os administradores das instituições financeiras não sejam proprietários privados do capital que mobilizam, mas controlem capitais que — continuando sempre a referir-me, após 1917, às economias exteriores à órbita soviética — são propriedade privada alheia. Desde sempre que as direções dos bancos aplicam os depósitos sem qualquer consulta prévia aos depositantes e as direções das instituições seguradoras decidem a aquisição e a transação de ações em completa ignorância dos que contribuem para os fundos assim empregados.
176 - A fauna da finansfera: ...como são os gestores que ocupam este campo crucial de integração e de centralização econômica, são eles que desenvolvem uma capacidade de controle do capital independente da sua apropriação privada, visto serem eles, e não os proprietários nominais, quem orienta os investimentos. Os gestores aparecem assim como os verdadeiros representantes do capital associado.
177 - Uma discussão quase terminológica, mas enfim: ... O controle não substituiu a propriedade. Enquanto expressão da atividade integradora e coordenadora, o controle é o veículo para a transformação de um dado tipo de propriedade, a propriedade privada do capital, numa de outro tipo, a propriedade coletiva do capital. Vale para os países capitalistas e "socialistas". (...) na prática, são os grupos de gestores que controlam cada instituição que se apropria coletivamente do capital.
178 - É necessário ter sempre presente a regra básica, há pouco enunciada, pela qual a concentração é sinônimo da dispersão da propriedade privada do capital. No mais, (...) dominam o processo aquelas empresas que ocuparem os lugares-chave em cada linha de produção. Uma empresa pode, assim, controlar outras sem delas se apropriar, como sucede na relação de subcontratação, que analisarei a propósito da articulação entre ambos os tipos de mais-valia.
179 - Vê demagogia nas críticas à privatização: Os eleitores estavam tão afastados do controle e da propriedade reais dessas empresas quando eram públicas, como o estão agora os participantes nas novas sociedades por ações.
180 - Algumas passagens, pra variar, são talvez bem exageradas (embora pareça ser real o crescimento da importância dos gestores - e seus elevados bônus e afins - frente aos proprietários): ...Assim afastada dos centros de decisão, a classe burguesa fica desprovida de pólos aglutinadores, fragmenta-se e, por conseguinte, o seu comportamento torna-se cada vez mais disperso nos conflitos sociais. Substituídos pelos gestores enquanto representantes do capitalismo associado, os burgueses converteram-se em rentistas. (...) os gestores encabeçam os capitalistas na luta de classes que decide qual a porção de mais-valia reinvestida, qual a destinada ao consumo pessoal dos gestores e qual a concedida aos burgueses que, detentores exclusivamente de ações ou de capital depositado individualmente no banco, apenas recebem uma parte menor e estagnante dos lucros, sob a forma de dividendos ou de juros. (Se Barsi tivesse pensado assim teria se dado mal...)
181 - Outro exagero? Eliminados fisicamente pelo fuzilamento e anulados como classe de um momento para o outro pela condenação maciça aos “campos de trabalho”, ou docemente convertidos em rentistas, tem sido afinal um idêntico destino de extinção do poder econômico que se apresenta à classe burguesa.
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