Livro: Ha-Joon Chang - Maus Samaritanos - Capítulo 8

                                                               

Livro: Ha-Joon Chang - Maus Samaritanos, O Mito Do Livre-Comércio e a História Secreta do Capitalismo



Pgs. 227-254


"CAPÍTULO 8: "ZAIRE VERSUS INDONÉSIA - Devemos virar as costas para os países corruptos e não-democráticos?"


144 - Zaire: Em 1961, o Zaire (agora a República Democrática do Congo) era um país muito pobre, com renda anual per capita de $67. Mobutu Sese Seko chegou ao poder por meio de um golpe militar em 1965 e nele permaneceu até 1997. Estima-se que ele tenha roubado $5 bilhões durante seus 32 anos no poder, ou em torno de quatro a cinco vezes a renda nacional do país em 1961 ($1,1 bilhão).


145 - Indonésia: Naquele mesmo ano, com a renda per capita anual de apenas $49, a Indonésia era ainda mais pobre do que o Zaire. Mohamed Suharto tomou o poder por meio de um golpe militar em 1966, permanecendo no controle do pais até 1998. Estima-se que tenha roubado pelo menos $15 bilhões durante seus 32 anos no poder. Alguns sugerem que a quantia roubada tenha sido algo em torno de $35 bilhões. Seus filhos se tornaram riquíssimos e ligados a diversos negócios no país. Se considerarmos a média desses dois números ($25 bilhões), Suharto roubou o equivalente a 5,2 vezes a renda nacional de seu país em 1961 ($4,8 bilhões).


146 - ...Considerando-se as estatísticas de corrupção, a Indonésia teve uma performance ainda pior do que a do Zaire. Entretanto, enquanto o padrão de vida do Zaire caiu três vezes durante o governo de Mobutu, o da Indonésia aumentou mais de três vezes durante o governo de Suharto. A corrupção não explica.


147 - Corrupção geralmente é quebra de confiança (dos laços sociais e tal). Não pode ser, também, minimizada. É verdade que pode haver casos de "corrupção por causas nobres"; um exemplo é o suborno de Oscar Schindler a oficiais nazistas que salvou a vida de centenas de judeus (...).


148 - Outros países — Itália, Japão, Coréia, Tailândia e China vêm à memória — foram  ainda melhores do que a Indonésia nesse período, apesar da corrupção enraizada e em larga escala (contudo, não  tão séria como na Indonésia).


149 - Na Inglaterra e n a França, a venda de cargos públicos era uma prática comum pelo menos até o século XVIII. Na Inglaterra, até o início do século XIX, era considerado perfeitamente normal que os ministros "emprestassem" dinheiro dos fundos de seus gabinetes para fins de lucratividade pessoal.6 Até 1870, indicações de servidores civis de alto escalão na Inglaterra eram feitas à base do clientelismo, e não do mérito. (...) Nenhum burocrata federal dos Estados Unidos era indicado por processo aberto e competitivo até o Pendleton Act de 1883 (a partir desse ato, a profissionalização chegou a 50% perto da virada do século XIX). Esse foi o período em que os Estados Unidos eram uma das economias que mais cresciam no mundo.


150 - Mais detalhes: ...Na Inglaterra, o suborno, os "banquetes" (tipicamente ofereciam-se drinques em estabelecimentos públicos relacionados ao esquema), promessas de empregos e benefícios aos eleitores eram comuns nas eleições até que o Corrupt and Illegal Practices Act de 1883 foi aprovado. Mesmo após essa lei, a corrupção eleitoral persistiu durante o século XX nas eleições locais. Nos Estados Unidos, os funcionários públicos eram sempre usados para campanhas políticas dos partidos (incluindo-se o fato de serem forçados a doar fundos para a campanha eleitoral). A fraude eleitoral e a compra de votos ocorriam por toda parte. As eleições nos Estados Unidos, onde havia muitos imigrantes, envolviam tornar os estrangeiros cidadãos temporários que pudessem votar, o que era feito "sem muita solenidade e com a mesma facilidade de se converter carne de porco em linguiça numa fábrica de alimentos em Cincinnati", de acordo com o New York Tribune em 1868Com campanhas eleitorais caras, não era surpresa que vários oficiais eleitos buscassem ativamente os subornos. No final do século XIX, a corrupção legislativa nos Estados Unidos, especialmente nas assembléias estaduais, foi tão grande que o presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, lamentava que os integrantes da assembléia de Nova York (que vendiam votos para os grupos de lobistas) "tinham a mesma ideia sobre vida pública e obrigaçõe s cívicas que um urubu tem sobre um cordeiro morto.


151 - Corrupção? Tudo depende. Pode-se tornar mera questão de "redistribuição de renda", digamos. É claro que é sempre possível que o dinheiro não seja usado pelo ministro de forma tão produtiva como se fosse usado pelo capitalista. O ministro pode desperdiçar seus ganhos de forma não-planejada em consumo, enquanto o capitalista poderia investir o mesmo dinheiro de forma prudente. Normalmente, esse é o caso. Mas isso não pode ser considerado a priori. Historicamente, vários burocratas e políticos têm se provado investidores astutos, enquanto muitos capitalistas esbanjam suas fortunas. Se o ministro usa o dinheiro de forma mais eficiente que o capitalista, a corrupção pode ajudar o crescimento econômico.


152 - Tragicomédia: Na Indonésia, o dinheiro da corrupção ficou em grande parte no país, criando empregos e renda. No Zaire, muito do dinheiro que tomou forma de corrupção foi transferido para fora do país. Se você tem líderes corruptos, deve pelo menos tentar manter o dinheiro da corrupção no país.


153 - Se um suborno é usado por um produtor menos eficiente que recebe licença para construir, por exemplo, uma siderúrgica, irá diminuir a eficiência da economia.


154 - Corrupção pode ser especialmente danosa também quando implicar serviços públicos de má qualidade, com custos difusos talvez. Tipo tratamento de água de segunda qualidade. Quedas de energia. Enfim, implicações negativas de produtividade aqui e acolá.


155 - ...Mas, se a regulamentação é "desnecessária", a corrupção pode aumentar a eficiência econômica. Por exemplo, antes da reforma legislativa em 2000, para abrir u ma fábrica no Vietnã, era necessária a submissão de muitos documentos (inclusive as referências de caráter do solicitante e também atestados médicos), dos quais 20 ou mais eram emitidos pelo governo; levava-se de seis a 12 meses para se preparar toda a papelada e se obterem todos os atestados necessários. Numa situação desse tipo, é melhor que o investidor potencial suborne os funcionários do governo relevantes e obtenha a licença rapidamente. (...) Isso é o que o cientista político veterano Samuel Huntington quis dizer em sua passagem clássica: "Em termos de crescimento econômico, a única coisa pior que uma sociedade com uma burocracia rígida, muito centralizada e desonesta é uma sociedade com uma burocracia rígida, muito centralizada e honesta.


156 - Ainda tem a questão do preço da corrupção, do ato corrupto e tal. Enfim, são fatores demais que podem ter impacto positivo ou negativo na produtividade. Impacto ambíguo, é o resumo. Isso explica por que observamos diferenças grandes entre os países em termos da relação entre corrupção e desempenho econômico.


157 - Chang coloca que, de toda forma, os subdesenvolvidos estão mais propensos à corrupção. Muitas pequenas unidades econômicas na ou beirando a informalidade. Difícil arrecadar impostos delas, por exemplo, o que pode gerar baixa receita fiscal. ...a receita baixa do governo torna difícil o pagamento de salários decente aos funcionários públicos, o que os torna vulneráveis ao suborno. De fato, é impressionante como tantos funcionários  públicos dos governos dos países em desenvolvimento vivem honestamente embora recebam salários irrisórios. Só um ponto. Ademais, sem Estado de Bem Estar, cresce o paternalismo corrupto.


158 - ... Ao detectar e processar os funcionános públicos desonestos, o governo tem de contratar contadores e advogados caros (internos ou de fora). O combate à corrupção não é barato. De toda forma, tem muito país de renda média que vence alguns ricos nos rankings de transparência.


159 - Coloca que desregulamentação e mais contratos com o setor privado levam a mais corrupção. Porém, faltaram argumentos mais quantitativos aqui. Tem algumas afirmações apenas. O aumento da corrupção no mercado após o período de Thatcher na Inglaterra, a pioneira do NPM, é uma lição bem recomendada a respeito das campanhas anticorrupção com base no mercado. (...) A corrupção normalmente existe porque há muitas forças de mercado, não poucas. Cita alguns exemplos clássicos como a transição da Rússia para o capitalismo de mercado nos anos noventa.


160 - E a democracia? Alguns colocam que é base do crescimento econômico (incentivo a acumular patrimônio). Alguns acham que este prescinde dela. Outros consideram que a democracia irá se desenvolver naturalmente à medida que a economia se desenvolve (o que, logicamente, pode ser obtido de forma melhor com as políticas de livre-comércio e de livre mercado), porque produzirá uma classe média educada que irá querer a democracia (Será?... Olha o mundo atual...). 


161 - ..."O mercado sustenta a democracia, assim como a democracia deve normalmente fortalecer o mercado", escreveu Martin Wolf, jornalista financeiro inglês, em seu famoso livro, Por que funciona a globalização


162 - Democracia como proteção à propriedade (a qual é praticamente sinônimo de desenvolvimento econômico na teoria liberal): Se os governos não precisam se preocupar com a perda do poder, podem impor regras e impostos excessivos e confiscar a propriedade privada, como muitos autocratas fizeram ao longo da história. Viraria tudo um ciclo virtuoso. Mais proprietários demandam mais democracia. Coloca que Bill Clinton apoiou a entrada da China na OMC nessa esperança aí.


163 - Chang contesta esse casamento. Uma pessoa, um voto é bem diferente de um dólar, um voto. O mercado dá um peso maior às pessoas ricas. Portanto, as decisões em democracia normalmente subvertem a lógica do mercado. Tanto que, no passado, muitos liberais combateram a expansão democrática. 


164 - Relembra que o sufrágio universal chegou tarde na Europa, especialmente na segunda metade do Século XIX. Estava longe disso mesmo na França antes. Na França, antes da introdução do sufrágio universal masculino em 1848 (o primeiro no mundo), apenas cerca de 2% da população masculina podia votar por conta de restrições sobre a idade (os homens deviam ter mais de 30 anos) e, mais importante, sobre o pagamento de impostos. ("Nada de representação se não houver tributação".)


165 - O mercado tem algum poder, porém, no sentido antidiscriminatório a depender do contexto. O fato de que mesmo o regime racista aberto do apartheid na África do Sul deu aos japoneses o status de "branco honorário" é um testemunho forte do poder de "liberação" do mercado


166 - Ressalta que também não deve existir liberdade absoluta em nenhum país para o mercado. "Livre-mercado" é um termo muito usado sem base. O exemplo mais óbvio: ...as decisões judiciais suscetíveis a suborno piorariam a eficácia da lei e dos contratos. (...) Democracia e mercados são aspectos fundamentais para que se tenha uma sociedade decente. Mas eles conflitam em determinado nível. Precisamos equilibrá-los.


167 - Despolitizar a economia? É enfraquecer a democracia. É porque vai havendo naturalização dos direitos básicos já conquistados, porém, muito já foram vistos como "politização". Quando esses direitos ainda eram contestados politicamente, havia muitos argumentos "econômicos" de por que honrá-los era incompatível com o livre mercado. Trabalho infantil; altas jornadas; poluição... Coloca a demonização da política como uma tática geral dos liberais. No fundo, ainda temem a democracia.


168 - Chang coloca que há problemas também no "excesso de democracia", digamos assim: Além disso, os custos de transação podem aumentar significativamente se as atividades de barganha em toda decisão alocativa for considerada potencialmente contestável, como era o caso nos ex-países comunistas


169 - O direito de voto às pessoas pobres dos países europeus no final do século XIX e início do século XX não levou a um aumento da transferência de renda, ao contrário do que os velhos liberais temiam, embora ele tenha levado à realocação dos gastos (especialmente na direção da infra-estrutura e da segurança interna). A transferência de renda expandiu-se apenas após a Segunda Guerra Mundial.


170 - Estudos que têm tentado identificar regularidades estatísticas entre os países em termos da relação entre democracia e crescimento econômico têm falhado por não encontrarem um resultado sistemático em nenhuma das proposições


171 - ...Alguns países em desenvolvimento obtiveram resultados econômicos péssimos sob a ditadura — Filipinas, sob a ditadura de Marcos, o Zaire, sob a ditadura de Mobutu, e o Haiti, sob a ditadura de Duvalier, são os exemplos mais conhecidos. Mas há casos como o da Indonésia, sob a ditadura de Suharto, ou de Uganda, sob a ditadura de Museveni, cujos resultados de performance econômica foram decentes, se não espetaculares.


172 - Democracia tem valor em si. Especialmente quando não há evidência de que a democracia afeta negativamente a economia, devemos defendê-la ainda com mais convicção.


173 - Riqueza leva à democracia? Não é bem assim. (...) esse quadro extenso não deve obscurecer o fato de que alguns países têm sustentado a democracia quando são muito pobres, enquanto muitos outros não têm se tornado democracias até que se tornem muito ricos. Sem as pessoas de fato lutando pela democracia, ela não surge automática e separadamente da prosperidade econômica


174 - A Noruega foi a segunda democracia do mundo (ela introduziu o sufrágio universal em 1913, após a Nova Zelândia, em 1907), apesar do fato de que era uma das economias mais pobres da Europa naquela época. Por outro lado, os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Suíça se tornaram democracias, mesmo no sentido puramente formal de dar um voto a cada cidadão, apenas nos anos 60 e 70, quando já estavam muito ricos.


175 - Embora fosse um dos países mais pobres do mundo até bem pouco tempo, a Índia tem mantido a democracia pelas últimas seis décadas, enquanto a Coréia e Taiwan não eram democracias até o final dos anos 80, quando se tornaram muito prósperas.


176 - Neste capítulo, mostrei como a tentativa dos neoliberais de explicar as falhas de sua política recorrendo a problemas como corrupção e falta de democracia não tem sido convincente.


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