Livro: Celso Furtado - Formação Econômica do Brasil (2003) - Capítulos 8 a 11

                                        

Livro: Celso Furtado - Formação Econômica do Brasil (2003)



Pgs. 65-74


SEGUNDA PARTE - ECONOMIA ESCRAVISTA DE AGRICULTURA TROPICAL - Séculos XVI e XVII


"CAPÍTULO 8: "CAPITALIZAÇÃO E NÍVEL DE RENDA NA COLÔNIA AÇUCAREIRA"


45 - No Brasil, as primeiras empreitadas de escravização foram contra os indígenas. A escravidão demonstrou ser, desde o primeiro momento, uma condição de sobrevivência para o colono europeu na nova terra. Como observa um cronista da época, sem escravos os colonos "não se podem sustentar na terra".


46 - Coloca que núcleos coloniais como São Vicente sobreviviam inicialmente graças às atividades de captura de mão-de-obra indígena. Ao que entendi, vendiam e até exportavam os indígenas para as economias açucareiras. A mão de obra africana chegou para a expansão da empresa, que já estava instalada.


47 - Números: ...Admitindo-se a existência de apenas 120 engenhos — ao final do século XVI — e um valor médio de 15 mil libras esterlinas por engenho, o total dos capitais aplicados na etapa produtiva da indústria resulta aproximar-se de 1,8 milhão de libras. Por outro lado, estima-se em cerca de 20 mil o número de escravos africanos que havia na colônia por essa época. Se se admite que três quartas partes dos mesmos eram utilizadas diretamente na indústria do açúcar e se se lhes imputa um valor médio de 25 libras, resulta que a inversão em mão de obra era da ordem de 375 mil libras. Comparando esse dado com o anterior, depreende-se que o capital empregado na mão de obra escrava deveria aproximar-se de 20 por cento , do capital fixo da empresa. Parte substancial desse capital estava constituída por equipamentos importados. (...) Tendo em conta que a população de origem europeia não seria superior a 30 mil habitantes/torna-se evidente que a pequena colônia açucarara era excepcionalmente rica (...) Se bem que as comparações a longo prazo de rendas monetárias — com base no valor do ouro — careçam quase totalmente de expressão real. a titulo de curiosidade indicamos que a renda per capita (da população de origem europeia), na passagem do século XVI para o XVII, corresponde a cerca de 350 dólares de hoje. Essa renda per capita estava evidentemente muito acima da que prevalecia na Europa, nessa época, e em nenhuma outra época de sua história — nem mesmo no auge da produção do ouro — o Brasil logrou recuperar esse nível. (Acho que já vi alguns textos/autores contestando essas estimativas). Adverte, porém, que a concentração de renda na mão dos senhores de engenho era fortíssima.


48 - Ainda sobre concentração de renda: Mesmo admitindo que para cada dez escravos houvesse um empregado assalariado — 1.500 no conjunto da indústria açucareira — e imputando um salário monetário de 15 libras anuais cada um, chega-se à soma de 22.500 libras, que é menos de 2 por cento da renda gerada no setor açucareiro.


49 - Aponta forte consumo de luxo dos senhores, mas apresenta dados meio esquisitos. Mesmo com um consumo enorme... Os dados a que se faz referência no parágrafo anterior sugerem que a indústria açucareira era suficientemente rentável para autofinanciar uma duplicação de sua capacidade produtiva cada dois anos. Aparentemente o ritmo de crescimento foi dessa ordem nas etapas mais favoráveis.



Pgs. 75-82


"CAPÍTULO 9: "FLUXO DE RENDA E CRESCIMENTO"


50 - Rodapé sobre a necessidade de seguir a lógica do capital, digamos assim: Ao contrário do que ocorreu nos EUA, onde regiões houve que chegaram a especializar-se na criação de escravos, no Brasil sempre prevaleceu uma visão de curto prazo nesta matéria, como se a escravidão fora negocio apenas para uma geração. Já o jesuíta Antonil, nos seus sábios conselhos aos senhores de engenho, no começo do século XVIII, recomendava que "aos feitores de nenhuma maneira se deve consentir o dar coice, principalmente na barriga das mulheres, que andam pejadas, nem dar com pau nos escravos, porque na cólera se não medem os golpes, e podem ferir na cabeça a um escravo de préstimo que vale muito dinheiro e perde-lo. Repreende-los, e chegar-lhes com um cipó, às costas com algumas varancadas, he o que se lhes pode, e deve permitir para ensino". Citado por R. SIMONSEN, op. cit., p. 108.


51 - Semifeudalismo? Nem pensar. (aqui ele não antecipa um pouco as discussões de "o escravismo colonial"?) O feudalismo é um fenômeno de regressão que traduz o atrofiamento de uma estrutura econômica. Esse atrofiamento resulta do isolamento imposto a uma economia, isolamento que engendra grande diminuição da produtividade pela impossibilidade em que se encontra o sistema de tirar partido da especialização e da divisão do trabalho que o nível da técnica já alcançado lhe permite. Ora, a unidade escravista, cujas características indicamos em suas linhas gerais, pode ser apresentada como um caso extremo de especialização econômica. Ao inverso da unidade feudal, ela vive totalmente voltada para o mercado externo. A suposta similitude deriva da existência de pagamentos in natura em uma e outra. Mas ainda aqui há um total equívoco, pois na unidade escravista os pagamentos a fatores são todos de natureza monetária, devendo-se ter em conta que o pagamento ao escravo é aquele que se faz no ato de compra deste. O pagamento corrente ao escravo seria o simples gasto de manutenção, que, como o dispêndio com a manutenção de uma máquina, pode ficar implícito na contabilidade sem que por isso perca sua natureza monetária


52 - Potencialidade de expansão e dinâmica de crescimento da economia açucareira: Tudo indica, portanto, que o aumento da capacidade produtiva foi regulado com vistas a evitar um colapso , nos preços, ao mesmo tempo que se realizava um esforço persistente para tomar o produto conhecido e ampliar a área de consumo do mesmo. Como quer que seja, o crescimento foi considerável — particularmente se o observamos do ponto de vista da colônia — e persistiu durante todo um século.


53 - Baixas na produção? A crise não precisava ser tão sentida, pois sobrava ao escravizado mais "tempo livre" para ser explorado de outras formas. Por outro lado, grande parte dos gastos de consumo do empresário estava assegurada pela utilização dessa força de trabalho. Os piores casos não despertavam mudanças estruturais. Decadência vinha a ser redução dos gastos em bens importados e na reposição da força de trabalho (também importada), com diminuição progressiva, mas lenta, no ativo da empresa, que assim minguava sem se transformar estruturalmente.


54 - ...Se ocorria uma redução no ritmo da atividade produtiva para exportação, reduziam-se os lucros do empresário, mas ao mesmo tempo se criava uma capacidade excedente de trabalho, a qual podia ser utilizada na expansão da capacidade produtiva. Se não havia interesse em expandir essa capacidade produtiva, o potencial disponível de inversão podia ser canalizado para obras de construção ligadas ao bem-estar da classe proprietária ou outras de caráter não-reprodutivo. Enfim, não havia o catástrofe da crise econômica capitalista.


55 - ...Como o custo estava virtualmente constituído de gastos fixos, qualquer redução na utilização da capacidade produtiva redundava em perda para o empresário. Sempre havia vantagem em utilizar a capacidade plenamente. Contudo, se se reduziam os preços abaixo de certo nível, o empresário não podia enfrentar os gastos de reposição de sua força de trabalho e de seu equipamento importado. Em tal caso, a unidade tendida perder capacidade. Essa redução de capacidade teria, entretanto, de ser um processo muito lento, dadas as razões já expostas. A unidade exportadora estava assim capacitada para preservar a sua estrutura. Por fim, coloca que esse tipo de economia de fato passou incólume por prolongadas depressões. 



Pgs. 83-90


"CAPÍTULO 10: "PROJEÇÃO DA ECONOMIA AÇUCAREIRA: A PECUÁRIA"


56 - Diversificação não. A alta rentabilidade do negócio induzia à especialização, sendo perfeitamente explicável — do ponto de vista econômico — que os empresários açucareiros não quisessem desviar seus fatores de produção para atividades secundárias, pelo menos quando eram favoráveis as perspectivas do mercado de açúcar.


57 - EUA vs Brasil: Se se compara a evolução de São Vicente — que resultou ser uma colônia de povoamento — com a da Nova Inglaterra, vis-à-vis das duas poderosas economias açucareiras que coexistiram com ambas, as similitudes e diferenças são ilustrativas. Em um e outro caso, os objetivos iniciais da colonização fracassaram. Os colonos que sobreviveram às dificuldades iniciais se dedicaram a atividades de baixa rentabilidade, transformando-se o núcleo de população de empresa colonial em colônia de povoamento. Entretanto, os colonos da América do Norte se dedicaram à pesca de subsistência, o que os levou a construir embarcações, conhecimento que seria útil mais tarde. Para os de São Vicente (futuros paulistas), a caça ao índio era a atividade economicamente mais interessante. Viraram sertanistas, adentrando até terras que seriam, em tese, da Espanha, a qual não tinha interesse em defendê-las. Furtado cita, ainda, que a Inglaterra, ao contrário de Portugal do período, estava absorvida em suas tensões internas e guerras, sem ter como suprir, com exportações, totalmente, as demandas da América do Norte.


58 - O Brasil, ao contrário das Antilhas, tinha abundância de terras livres a permitir o desenvolvimento de alguma economia complementar. Mas qual? No setor de bens de consumo, as importações consistiam principalmente em artigos de luxo, os quais, evidentemente, não podiam ser produzidos na colônia. O único artigo de consumo de importância que podia ser suprido internamente era a carne, que figura na dieta mesmo dos escravos, como observa Antonil. Era no setor de bens de produção que o suprimento local encontrava maior espaço para expandir-se. As duas principais fontes de energia dos engenhos — a lenha e os animais de tiro — podiam ser supridas localmente com grande vantagem. O mesmo ocorria com o material de construção mais amplamente utilizado na época: as madeiras. (...) Ao expandir-se a economia açucareira, a necessidade de animais de tiro tendeu a crescer mais que proporcionalmente, pois a devastação das florestas litorâneas obrigava a buscar a lenha a distâncias cada vez maiores. Por outro lado, logo se evidenciou a impraticabilidade de criar o gado na faixa litorânea, isto é, dentro das próprias unidades produtoras de açúcar. Os conflitos provocados pela penetração de animais em plantações devem ter sido grandes, pois o próprio governo português proibiu, finalmente, a criação de gado na faixa litorânea. Houve expansão pelo interior brasileiro.


59 - Deve-se ter em conta, entretanto, que essa atividade, pelo menos em sua etapa inicial, era um fenômeno econômico induzido pela economia açucareira e de rentabilidade relativamente baixa. A renda total gerada pela economia criatória do Nordeste seguramente não excederia 5 por cento do valor da exportação de açúcar. Essa renda estava constituída pelo gado vendido no litoral e pela exportação de couros.


60 - Século XVII: Segundo Antonil, os currais variavam de 200 a mil cabeças e havia fazendas de 20 mil cabeças de gado. Admitindo-se a relação de um para cinquenta entre a população humana e a animal — o que corresponde grosso modo a um vaqueiro para 250 cabeças —, resulta que o total da população que vivia da criação nordestina não seria superior a 13 mil pessoas, supondo-se 650 mil cabeças de gado.


61 - A mão-de-obra na pecuária tinha interessantes particularidades: À semelhança do sistema de povoamento que se desenvolveu nas colônias inglesas e francesas, o homem que trabalhava na fazenda de criação durante um certo número de anos (quatro ou cinco) tinha direito a uma participação (uma cria em quatro) no rebanho em formação, podendo assim iniciar criação por conta própria. Veio até gente de São Vicente pra isso. E não só: ...conforme já indicamos, o indígena se adaptava rapidamente às tarefas auxiliares da criação.


62 - Eram atividades dependentes. A etapa de rápida expansão da produção de açúcar, que vai até a metade do século XVII, teve como contrapartida a grande penetração nos sertões. Da mesma forma, no século XVIII, a expansão da atividade mineira comandará o extraordinário desenvolvimento da criação no sul. 


63 - Detalhe importante na expansão da atividade (em tese pouco limitada): ...Por outro lado, como as distâncias vão aumentando, a tendência geral é no sentido de redução da produtividade na economia. Era uma atividade, em geral, com menor grau de especialização e produtividade que a açucareira. Só era mais acessível.


64 - ...A criação de gado também era em grande medida uma atividade de subsistência, sendo fonte quase única de alimentos, e de uma matéria-prima (o couro) que se utilizava praticamente para tudo. Essa importância relativa do setor de subsistência na pecuária será um fator fundamental das transformações estruturais por que passará a economia nordestina em sua longa etapa de decadência.



Pgs. 91-96


"CAPÍTULO 11: "FORMAÇÃO DO COMPLEXO ECONÔMICO NORDESTINO"


65 - Formação econômica do Nordeste: ...Por um lado o crescimento era de caráter puramente extensivo, mediante a incorporação de terra e mão de obra, não implicando modificações estruturais que repercutissem nos custos de produção e portanto na produtividadePor outro lado, a reduzida expressão dos custos monetários — isto é, a pequena proporção da folha de salários e da compra de serviços a outras unidades produtivas — tornava a economia enormemente resistente aos efeitos a curto prazo de uma baixa de preçosConvinha continuar operando, não obstante os preços sofressem uma forte baixa, pois os fatores de produção não tinham uso alternativo. Como se diz hoje em dia, a curto prazo a oferta era totalmente inelástica


66 - ...No longo prazo, porém, Furtado coloca que a conservação/reprodução do capital empregado na pecuária era mais simples, eis que menos sujeito a gastos monetários. 


67 - A crise dos preços do açúcar: Os novos preços ainda eram suficientemente altos para que a produção de açúcar constituísse para as Antilhas o magnífico negócio que era. Contudo, no caso brasileiro, passava-se de uma situação altamente favorável — em que a indústria estivera aparentemente capacitada para autofinanciar a duplicação de sua capacidade produtiva em dois anos — para uma outra de rentabilidade relativamente baixaA situação fez-se mais grave no século XVIII, em razão do aumento nos preços dos escravos e da emigração da mão de obra especializada, determinados pela expansão da produção de ouro.


68 - Já a criação de gado era mais difícil de se tornar uma catástrofe: ...Sem embargo, se a procura de gado na região litorânea não estava aumentando num ritmo adequado, o crescimento do sistema pecuário se fazia através do aumento relativo do setor de subsistência. Era o "pelo menos". O problema era que isso reduzia a renda monetária. Muitos artigos que antes se podiam comprar nos mercados do litoral — e que eram importados — teriam agora de ser produzidos internamente. Essa produção, entretanto, limitava-se ao âmbito local, constituindo uma forma rudimentar de artesanato. O couro substitui quase todas as matérias-primas, evidenciando o enorme encarecimento relativo de tudo que não fosse produzido localmente. Esse atrofiamento da economia monetária se acentua à medida que aumentam as distâncias do litoral, pois, dado o custo do transporte do gado, em condições de estagnação do mercado de animais, os criadores mais distantes se tornavam submarginais. Os couros passaram a ser a única fonte de renda monetária destes últimos criadores.


69 - ...Tudo indica que no longo período que se estende do último quartel do século XVII ao começo do século XIX a economia nordestina sofreu um lento processo de atrofiamento, no sentido de que a renda real per capita de sua população declinou secularmente.


70 - ...como a rentabilidade da economia pecuária dependia em grande medida da rentabilidade da própria economia açucareira, ao transferir-se população desta para aquela nas etapas de depressão se intensificava a conversão da pecuária em economia de subsistência. Não fora esse mecanismo, e a longa depressão do setor açucareiro teria provocado, seja uma emigração de fatores, seja a estagnação demográfica. Sendo a oferta de alimentos pouco elástica na região litorânea, o crescimento da população teria sido muito menor, não fora essa articulação com o sistema pecuário.


71 - No Nordeste brasileiro, como as condições de alimentação eram melhores na economia de mais baixa produtividade, isto é, na região pecuária, as etapas de prolongada depressão em que se intensificava a migração do litoral para o interior teriam de caracterizar-se por uma intensificação no crescimento demográfico. Explica-se assim que a população do Nordeste haja continuado a crescer — e possivelmente haja intensificado o seu crescimento — em todo o século e meio de estagnação da produção açucareira a que fizemos referência. (...) Dessa forma, de sistema econômico de alta produtividade em meados do século XVII, o Nordeste se foi transformando progressivamente numa economia em que grande parte da população produzia apenas o necessário para subsistir.


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