Livro: Celso Furtado - Formação Econômica do Brasil (2003) - Capítulos 30 a 32

                                            

Livro: Celso Furtado - Formação Econômica do Brasil (2003)



Pgs. 227-238


QUINTA PARTE - ECONOMIA DE TRANSIÇÃO PARA UM SISTEMA INDUSTRIAL - SÉCULO XX


"CAPÍTULO 30: "A CRISE DA ECONOMIA CAFEEIRA"


196 - O último decênio do século XIX criou-se uma situação excepcionalmente favorável à expansão da cultura do café no Brasil. Por um lado, a oferta não-brasileira atravessou uma etapa de dificuldades, sendo a produção asiática grandemente prejudicada por enfermidades, que praticamente destruíram os cafezais da ilha de Ceilão. Por outro lado, com a descentralização republicana o problema da imigração passou às mãos dos estados, sendo abordado de forma muito mais ampla pelo governo do Estado de São Paulo, vale dizer, pela própria classe dos fazendeiros de café. Finalmente, o efeito estimulante da grande inflação de crédito desse período beneficiou duplamente a classe de cafeicultores: proporcionou o crédito necessário para financiar a abertura de novas terras e elevou os preços do produto em moeda nacional com a depreciação cambial. A produção brasileira, que havia aumentado de 3,7 milhões de sacas (de 60 kg) em 1880-81 para 5,5 em 1890-91, alcançaria em 1901-02 16,3 milhões


197 - Política de valorização do café (convênio de Taubaté em 1906) fazia sentido, pois tínhamos quase um monopólio: As condições excepcionais que oferecia o Brasil para essa cultura valeram aos empresários brasileiros a oportunidade de controlar três quartas partes da oferta mundial desse produto. Essa circunstância é que possibilitou a manipulação da oferta mundial de café, a qual iria emprestar um comportamento todo especial à evolução dos preços desse artigo. Ao comprovar-se a primeira crise de superprodução, nos anos iniciais do século XX, os empresários brasileiros logo perceberam que se encontravam em situação privilegiada, entre os produtores de artigos primários, para defender-se contra a baixa de preços. Tudo o de que necessitavam eram recursos financeiros para reter parte da produção fora do mercado, isto é, para contrair artificialmente a oferta. Os estoques assim formados seriam mobilizados quando o mercado apresentasse mais resistência, vale dizer, quando a renda estivesse a altos níveis nos países importadores, ou serviriam para cobrir deficiências em anos de colheitas más.


198 - ...Lord Rothschild ... publicou uma carta violenta contra a Valorização, refletia o temor de que nova bancarrota do governo brasileiro viesse repercutir no serviço da divida externa, que deveria ser retomado em 1911.


199 - ...Quais eram as medidas? a) com o fim de restabelecer o equilíbrio entre oferta e procura de café, o governo interviria no mercado para comprar os excedentes; b) o financiamento dessas compras se faria com empréstimos estrangeiros; c) o serviço desses empréstimos seria coberto com um novo imposto cobrado em ouro sobre cada saca de café exportada; d) a fim de solucionar o problema a mais longo prazo, os governos dos estados produtores deveriam desencorajar a expansão das plantações.


200 - Meio mal explicado aqui, mas ok: O primeiro esquema de valorização teve de ser posto em prática pelos estados cafeicultores — liderados por São Paulo — sem o apoio do governo federal. Diante da relutância deste último, os governos estaduais — aos quais a descentralização republicana concedera o poder constitucional exclusivo de criar impostos às exportações — apelaram diretamente para o crédito internacional e puseram em marcha o projeto. Essa decisão lhes valeu a vitória sobre os grupos opositores. O governo federal teve finalmente que chamar a si a responsabilidade maior na execução da tarefa. O êxito financeiro da experiência veio consolidar a vitória dos recalcitrantes que reforçaram o seu poder e por mais um quarto de século — isto é, até 1930 — lograram submeter o governo central aos objetivos de sua política econômica.


201 - Um grande problema da política de valorização é que isso mantinha os incentivos para que se continuasse inclusive a expandir as plantações, eternizando o problema. Afinal, o preço internacional, devido à retenção da oferta, nunca caía e os lucros ficavam sempre altos assim. A produção exportável dobrou e, quando veio a crise de 29, tudo ficou insustentável. O desequilíbrio máximo foi alcançado no ano da crise, 1929, quando a produção atingiu 28.941.000 sacas e a exportação 14.281.000. 


202 - ...Enquanto isso, a procura não tinha grande elasticidade-renda. Nos EUA, principal importador, onde a renda real per capita aumentou cerca, de 35 por cento no correr desse decênio, o consumo de café se manteve em torno de 12 libras-peso por habitante,se bem que os preços no.varejo se mantivessem estáveis


203 - ...Era perfeitamente óbvio que os estoques que se estavam acumulando não tinham nenhuma possibilidade de ser utilizados economicamente num futuro previsível. Mesmo que a economia mundial lograsse evitar nova depressão, após a grande expansão dos anos vinte, não havia nenhuma porta pela qual se pudesse antever a saída daqueles estoques, pois a capacidade produtiva continuava a aumentar. Os lucros do setor cafeeiro teriam que ser investidos em outras oportunidades, não numa contínua expansão da oferta.


204 - Outro problema da política de valorização do café no mercado internacional era que isso incentivava outros países com condições geográficas parecidas a entrarem no mercado. A manutenção dos preços a baixos níveis era condição indispensável para que os produtores brasileiros retivessem sua situação de semimonopólio. Ao se prevalecerem dessa situação semimonopolística para defenderem os preços, estavam eles destruindo as bases em que se assentara o seu privilégio


205 - Consequências do aumento da renda dos exportadores graças às compras dos excedentes com empréstimos estrangeiros: ...Essa pressão é particularmente grande numa economia subdesenvolvida, e se manifesta de imediato em rápido crescimento das importações, em razão da baixa elasticidade da oferta interna. Desequilíbrio externo: ...Entre 1920-22 e 1929, enquanto o quantum das exportações aumentava apenas 10 por cento, o das importações crescia cerca de cem por cento


206 - ...Como se manteve o câmbio controlado nesse cenário, evitando-se uma inflação? Tipo a Argentina dos anos 90, com certa "sorte externa": A coincidência da afluência de capitais privados e da chegada dos empréstimos destinados a financiar o café deu lugar a uma situação cambial extremamente favorável e induziu o governo brasileiro a embarcar numa política de conversibilidade (...). Deflagrada a crise no último trimestre de 1929, não foram necessários mais que alguns meses para que todas as reservas metálicas acumuladas à custa de empréstimos externos fossem tragadas pelos capitais em fuga do país.


207 - ...Não fosse a possibilidade de conversão que existiu nesse período, a queda do mil-réis teria sido muito mais brusca, estabelecendo-se automaticamente uma taxa sobre a exportação de capitais. Essa taxa evidentemente chegou, mas somente depois de se evaporarem todas as reservas



Pgs. 239-248


"CAPÍTULO 31: "OS MECANISMOS DE DEFESA E A CRISE DE 1929"


208 - Crise de 29 muda tudo. Era totalmente impossível obter crédito no exterior para financiar a retenção de novos estoques, pois o mercado internacional de capitais se encontrava em profunda depressão e o crédito do governo desaparecera com a evaporação das reservas. O preço do café também despencou inevitavelmente. Essa queda assumiu proporções catastróficas, pois, de setembro de 1929 a esse mesmo mês de 1931, a baixa foi de 22,5 centavos de dólar por libra para 8 centavos


209 - ...A baixa brusca do preço internacional do café e a falência do sistema de conversibilidade acarretaram a queda do valor externo da moeda. Essa queda trouxe, evidentemente, um grande alívio ao setor cafeeiro da economia. A baixa do preço internacional do café havia alcançado 60 por cento. A alta da taxa cambial chegou a representar uma depreciação de 40 por centoO grosso das perdas poderia, portanto, ser transferido para o conjunto da coletividade através da alta dos preços das importações. Problema? A depreciação da moeda, ao atenuar o impacto da baixa do preço internacional sobre o empresário brasileiro, induzia este a continuar colhendo o café e a manter a pressão sobre o mercado. E de fato, houve grande expansão da quantidade exportada a preço baixo, mas não o suficiente para resolver as perdas. Essa situação acarretava nova baixa de preços e nova depreciação da moeda, contribuindo para agravar a crise. Como a depreciação da moeda era menor que a baixa de preços, pois também estava influenciada por outros fatores, era claro que se chegaria a um ponto em que o prejuízo acarretado aos produtores de café seria suficientemente grande para que estes abandonassem as plantações


210 - Socialização das perdas via expansão do crédito - para comprar excedente agora que o crédito externo secava - e queima dos estoques foi a solução dos anos trinta. O preço do café ficou baixo a década inteira. Durante os anos de depressão, os preços pagos pelo consumidor chegaram a baixar cerca de 40 por cento, sem que o consumo apresentasse qualquer modificação significativa.


211 - Como a produção de café cresceu nos anos da depressão, tendo sido a colheita máxima de todos os tempos a de 1933, é evidente que a renda global dos produtores agrícolas se reduziu menos que os preços pagos a esses produtores.


212 - Tudo depende da curva de elasticidade do consumo do produto. Se o Brasil reduz a produção pra salvar o preço, pode ser que a contração total da renda seja pior que manter ou crescer a produção e desabar o preço. Furtado fez alguns cálculos demonstrativos. 


212 - Análise interessante: ...A redução da renda monetária, no Brasil, entre 1929 e o ponto mais baixo da crise, se situa entre 25 e 30 por cento, sendo, portanto, relativamente pequena se se compara com a de outros países. Nos EUA, por exemplo, essa redução excedeu a 50 por cento, não obstante os índices de preços por atacado, desse país, tenham sofrido quedas muito inferiores às do preço do café no comércio internacional. A diferença está em que nos EUA a baixa de preços acarretava enorme desemprego, ao contrário do que estava ocorrendo no Brasil, onde se mantinha o nível de emprego se bem que se tivesse de destruir o fruto da produção. O que importa ter em conta é que o valor do produto que se destruía era muito inferior ao montante da renda que se criava. Estávamos, em verdade, construindo as famosas pirâmides que anos depois preconizaria Keynes. (...) Praticou-se no Brasil, inconscientemente, uma política anticíclica de maior amplitude que a que se tenha sequer preconizado em qualquer dos países industrializados.


213 - A expansão de crédito é que fazia a mágica do mecanismo: A compra do café para acumular representava uma criação de renda que se adicionava à renda criada pelos gastos dos consumidores e dos inversionistas. Ao injetar-se na economia, em 1931, 1 bilhão de cruzeiros para aquisição de café e sua destruição, estava-se criando um poder de compra que em parte iria contrabalançar a redução dos gastos dos inversionistas, gastos estes que haviam sido reduzidos em 2 bilhões de cruzeiros



Pgs. 249-258


"CAPÍTULO 32: "DESLOCAMENTO DO CENTRO DINÂMICO"


214 - A forte expansão interna do crédito (quando secou o externo) gerava desequilíbrio externo? A política de fomento da renda, implícita na defesa dos interesses cafeeiros, era igualmente responsável por um desequilíbrio externo que tendia a aprofundar-se. A correção desse desequilíbrio se fazia, evidentemente, à custa de forte baixa no poder aquisitivo externo da moeda. Essa baixa se traduzia numa elevação dos preços dos artigos importados, o que automaticamente comprimia o coeficiente de importações.


215 - ...É por essa razão que se alcançava o equilíbrio, se bem que em um nível de depreciação cambial bem mais alto do que seria o caso na hipótese de que não tivesse havido a expansão de crédito para compra de café a destruir.


216 - ...Já observamos que de 1929 ao ponto mais baixo da depressão a renda monetária no Brasil se reduziu entre 25 e 30 por cento. Nesse mesmo período o índice de preços dos produtos importados subiu 33 por cento. Compreende-se, assim, que a redução no quantum das importações tenha sido superior a 60 por cento. Consequentemente, o valor das importações baixou de 14 para 8 por cento da renda territorial bruta, satisfazendo-se com oferta interna parte da procura que antes era coberta com importações.


217 - Mudança do polo dinâmico de investimento: o mercado interno agora despertava a atenção e "chamava" os lucros do setor primário. Até mesmo gastos de manutenção eram desviados. A capacidade produtiva dos cafezais foi reduzida a cerca da metade, nos quinze anos que seguiram à crise. Outros produtos primários também se destacaram nos anos trinta: Os produtores brasileiros não deixaram passar essa oportunidade, pois já em 1934 o valor da produção algodoeira (preços pagos ao produtor) correspondia a 50 por cento do valor da produção cafeeira, enquanto em 1929 aquela relação havia sido de menos de 10 por cento.


218 - A produção industrial, que se destinava em sua totalidade ao mercado interno, sofre durante a depressão uma queda de menos de 10 por cento, e já em 1933 recupera o nível de 1929.


219 - É bem verdade que o setor ligado ao mercado interno não podia aumentar sua capacidade, particularmente no campo industrial, sem importar equipamentos, e que estes se tinham feito mais caros com a depreciação do valor externo da moeda. Entretanto, o fator mais importante na primeira fase da expansão da produção deve ter sido o aproveitamento mais intenso da capacidade já instalada no país. Cita a indústria têxtil como exemplo. (...) Outro fator que se deve ter em conta é a possibilidade que sé apresentou de adquirir a preços muito baixos, no exterior, equipamentos de segunda mão. Algumas das indústrias de maior vulto instaladas no país, na depressão, o foram com equipamentos provenientes de fábricas que haviam fechado suas portas em países mais fundamente atingidos pela crise industrial.


220 - Furtado coloca que o Brasil passou a aumentar, já aqui, a produção de bens de capital (já existia um "pequeno núcleo" de indústrias pronto), que dificilmente poderiam ser importados. Foi um grande estímulo. O país havia, assim, conseguido fabricar parte dos materiais necessários à manutenção e à expansão de sua capacidade produtiva


221 - ...Nem em 1937 a capacidade de importar do Brasil era próxima da de 1929. O valor total das exportações também eram inferiores, muito embora a quantidade exportada tenha crescido.



222 - É óbvio, por conseguinte, que, se a economia houvesse apenas reagido passivamente aos estímulos externos, não só teria enfrentado uma depressão muito mais profunda, como não se teria recuperado durante todo o decênio.


223 - A produção industrial cresceu em cerca de cinquenta por cento entre 1929 e 1937, e a produção primária para o mercado interno cresceu em mais de quarenta por cento no mesmo período. A renda per capita crescia forte aqui e decrescia nos EUA! No mais, afirma que aqueles países de estrutura econômica similar à do Brasil, que seguiram uma política muito mais ortodoxa, nos anos da crise, e ficaram portanto na dependência do impulso externo para recuperar-se, chegaram a 1937 com suas economias ainda em estado de depressão.


224 - O movimento revolucionário de 1930 — ponto culminante de uma série de levantes militares abortados, iniciados em 1922 — tem sua base nas populações urbanas, particularmente na burocracia militar e civil e nos grupos industriais, e constitui uma reação contra o excessivo predomínio dos grupos cafeeiros — de seus aliados da finança internacional, comprometidos na política de valorização — sobre o governo federal. Contudo, em face da reação armada de 1932, o governo provisório tomou, a partir de 1933, uma série de medidas destinadas a ajudar financeiramente os produtores de café, inclusive uma redução de cinquenta por cento nas dívidas bancárias destes últimos.


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