Livro: Piketty - O Capital no Século XXI - Capítulo 7

                      

Livro: Piketty - O Capital no Século XXI



TERCEIRA PARTE - A ESTRUTURA DA DESIGUALDADE


Pgs. 305-341


"CAPÍTULO 7: "Desigualdade e concentração: primeiras impressões"


259 - Dicas de leitura: Publicado em 1835, O pai Goriot é um dos romances mais célebres de Balzac. Apresenta, sem dúvida, uma das expressões literárias das mais bem-sucedidas sobre a estrutura da desigualdade no século XIX, desvelando o papel central desempenhado pela herança e pelo patrimônio. A "moral da história"? Entre outras: Não importam os detalhes das cifras (ainda que sejam bastante realistas): o fato central é que na França do início do século XIX, como em outros lugares durante a Belle Époque, o trabalho e os estudos não permitiam que se chegasse ao mesmo nível de vida que a herança e as rendas do patrimônio.


260 - ...EUA eram exceção a tudo isso só parcialmente: Nos estados do Sul, onde predominava uma mistura de capital sob a forma de terras e escravos, a herança pesava tanto quanto na Velha Europa.


261 - Realidade europeia principalmente: Durante as décadas do pós-guerra, a herança se reduziu a quase nada em comparação com o passado, e pela primeira vez na história do trabalho os estudos se tornaram o caminho mais seguro para alcançar o topo da distribuição de renda.


262 - A desigualdade de patrimônio é muitíssimo maior que a de renda: Apenas para destacar uma primeira ordem de grandeza, a participação dos 10% dos indivíduos que recebem as rendas do trabalho mais elevadas costuma ser de 25-30% do total das rendas do trabalho, enquanto a participação dos 10% dos indivíduos que detêm o patrimônio mais alto é sempre superior a 50% do total da riqueza, chegando às vezes a 90% em algumas sociedades. Talvez ainda mais marcante, os 50% mais mal pagos recebem uma parte considerável do total das rendas do trabalho (geralmente entre um quarto e um terço, mais ou menos tanto quanto os 10% mais bem pagos), enquanto os 50% mais pobres em patrimônio não possuem nada — ou quase nada (sempre menos de 10% do patrimônio total e em geral menos de 5%, ou dez vezes menos do que os 10% mais ricos).


263 - ...A acumulação por motivo de precaução diante de choques de curto prazo existe no mundo real, mas não se trata do principal mecanismo que permite explicar a realidade da acumulação e da distribuição da riqueza. O ciclo de vida de Modigliani também explica muito pouco da desigualdade, afirma. (...) do ponto de vista quantitativo, ele não é o principal mecanismo em jogo. (...) As pessoas mais velhas são, por certo, em média mais ricas do que as mais jovens. No entanto, a concentração da riqueza é, na realidade, quase tão forte dentro de cada faixa etária quanto na população como um todo


264 - Distribuição de renda do trabalho nos escandinavos impressiona: ...aparece mais ou menos da seguinte maneira: se considerarmos o conjunto da população adulta, os 10% da população que recebem as rendas do trabalho mais elevadas ganham pouco mais do que 20% do volume total de rendas do trabalho (na prática, trata-se essencialmente da massa salarial); os 50% mais mal pagos recebem cerca de 35%; e os 40% do meio ganham por volta de 45% do total (ver a Tabela 7.1). (...) O coeficiente de Gini correspondente (indicador sintético de desigualdade, que varia entre de 0 e 1) é de 0,19.



265 - Desigualdade de rendas do capital é muito mais extrema em qualquer lugar e época:



266 - ...E isto que ele chama de "média" foi meio que o melhor que o mundo capitalista já atingiu: Nas sociedades caracterizadas por uma desigualdade “média” da apropriação do capital (como nos países escandinavos dos anos 1970- 1980), os 10% mais ricos em relação à apropriação do capital detêm cerca de 50% do patrimônio; os 50% menos ricos, em torno de 10%; e os 40% do meio, cerca de 40%. O coeficiente de Gini correspondente é de 0,58.


267 - Síntese das duas desigualdades (EUA querem buscar o Brasil rs):



268 - ImportanteDevemos ressaltar que as denominações de “classes populares” (definidas como os 50% que compõem a base da distribuição de renda), “classes médias” (os 40% do “meio”, isto é, os que se encontram entre os 50% da base e os 10% do topo) e “classes superiores” (os 10% do topo), que utilizamos nas Tabelas 7.1-7.3, são, é claro, arbitrárias e discutíveis


269 - ...Cita que é muito comum a discussão sobre se a maioria esmagadora dos 10% mais ricos deve ser tratado como a minoria (os 1% mais ricos). São ricos? São classe média alta? Se parecem mais com quem? Como devem ser tratados tributariamente falando? Exemplo: Outras pessoas, às vezes as mesmas, recusam qualquer noção de “classe média” e preferem descrever a estrutura social contrapondo um imenso contingente de “classes populares e médias” (o “povo”) e uma ínfima minoria de “classes superiores” (as “elites”). 


270 - ...Influência da Revolução Francesa? Por exemplo, na França de 1789, estima-se que a aristocracia representava entre 1% e 2% da população, o clero menos de 1%, e o “Terceiro Estado” — isto é, todo o povo, dos camponeses à burguesia no sistema político do Antigo Regime —, mais de 97%.


271 - A maneira como definimos a “classe média” (os 40% “do meio”) é bastante contestável, uma vez que, naturalmente, todas as pessoas que incluímos nesse grupo na verdade têm rendas (ou patrimônio) superiores à média da sociedade considerada.


272 - Lembra que os 0,1%, ou mesmo 1%, ganham bem acima mesmo nos países escandinavos. Afirma que o "We are the 99%" lembra, em espírito, o panfleto “O que é o Terceiro Estado?” publicado em janeiro de 1789 pelo abade Sieyès.


273 - As pessoas que dispõem dos 10% das rendas do trabalho mais elevadas ou dos 50% das mais baixas não são as mesmas que detêm 10% dos patrimônios mais avantajados ou os 50% mais reduzidos. O “1%” das rendas do trabalho não é o “1%” do patrimônio. (...) Nas sociedades tradicionais, a correlação entre as duas dimensões era muitas vezes negativa (os detentores dos maiores patrimônios não trabalhavam e se encontravam, assim, na parte de baixo das hierarquias das rendas do trabalho). Nas sociedades modernas, a correlação geralmente é positiva, mas jamais completa (o coeficiente de correlação é sempre menor do que um).


274 - Primeiramente, não examinará as mudanças na distribuição pós-tributação e transferências. Há um porém: Seguindo a convenção, as rendas de “substituição”, isto é, as aposentadorias e os benefícios de seguro-desemprego destinados a compensar a perda de renda do trabalho, financiados pelas deduções dos salários (pela lógica das contribuições), foram incluídas nas rendas primárias do trabalho


275 - Volta a lembrar que as desigualdades na renda do trabalho variam muito entre os países. Remete aos dados da tabela mais acima sobre EUA e escandinavos, por exemplo. (Eu vinha pensando que a diferença era basicamente a redistribuição estatal, mas não. Ao que entendi, esses dados não incluem a mesma). (...)  a distribuição americana, mais desigual, tem uma hierarquia claramente mais acentuada: 7.000 euros para os 10% do topo (e 24.000 euros para o 1%), 2.000 euros para os 40% do meio e apenas 1.000 euros por mês para os 50% da base da distribuição. (2010).


276 - Mudanças no cenário trazidas pela desigualdade: Se a tendência americana persistir, as rendas mensais em 2030 — sempre para um mesmo salário médio de 2.000 euros por mês — poderão vir a ser de 9.000 euros para os 10% do topo (e 34.000 euros para o 1%), 1.750 euros para os 40% do meio e somente 800 euros por mês para os 50% da base da distribuição. Isso significa que, dedicando apenas uma pequena parte de sua renda, os 10% do topo poderiam empregar como funcionários domésticos boa parte dos 50% da parte mais baixa da distribuição.


277 - Sobre aquela tabela de Piketty sonhando com a "sociedade ideal" no que tange à distribuição patrimonial: Notemos que a desigualdade ainda é alta na “sociedade ideal” descrita na Tabela 7.2 (os 10% mais ricos detêm um volume de riqueza maior do que os 50% mais pobres, embora sejam cinco vezes menos numerosos; o patrimônio médio do 1% mais rico é vinte vezes mais alto que o dos 50% mais pobres). Mas nada impede ninguém de ter objetivos mais ambiciosos do que esses.


278 - Por isso que tem multimilionário querendo se ver na classe média: O décimo superior da distribuição de riqueza, mais ainda que o décimo superior da distribuição de salários, é por si só extremamente desigual. Quando esse décimo superior possui 60% do patrimônio total — como é o caso de vários países europeus hoje em dia —, o centésimo superior possui cerca de 25%, e os 9% seguintes, possui cerca de 35%. Os primeiros têm, portanto, um patrimônio médio 25 vezes mais alto do que a média da sociedade, enquanto os demais detêm somente quatro vezes mais do que a média.


279 - No grupo dos “9%” — os que detêm quase 1 milhão de euros —, os imóveis representam mais da metade dos patrimônios, e para certas pessoas mais de 75%. Por outro lado, se considerarmos o centésimo superior, os ativos financeiros e profissionais dominam os bens imobiliários. Em particular, as ações e as participações societárias compõem a quase totalidade das fortunas mais importantes. Na faixa entre 2 milhões e 5 milhões de euros, a participação dos imóveis é inferior a um terço; acima dos 5 milhões de euros, ela cai para menos de 20%; e, acima dos 20 milhões de euros, os imóveis respondem por menos de 10% do patrimônio, enquanto as ações e as participações societárias constituem a quase totalidade do patrimônio. O teto para se abrigar é o investimento favorito das classes médias e dos moderadamente abastados. Mas a verdadeira fortuna é sempre composta de ativos financeiros e profissionais.


280 - Que os leitores não se enganem: o desenvolvimento de uma verdadeira “classe média patrimonial” constitui a principal transformação estrutural da distribuição da riqueza nos países desenvolvidos no século XX. (...) Por volta de 1900-1910, tanto na França como no Reino Unido ou na Suécia, assim como em todos os países cujos dados temos disponíveis, os 10% mais ricos detinham a quase totalidade da riqueza nacional: a parcela do décimo superior alcançava 90%. O 1% mais abastado possuía sozinho mais de 50% do total da riqueza. (...) Em contrapartida, os 40% do meio detinham apenas pouco mais de 5% da riqueza nacional (entre 5% e 10%, dependendo do país) — isto é, situação muito semelhante à dos 50% mais pobres de hoje, que detêm menos de 5%. Ou seja, praticamente não havia classe média, afirma.


281 - EUA atual e propriedade dos meios de produção (capital não-imobiliário ao que entendi): Se nos restringirmos ao capital financeiro e profissional, isto é, ao controle das empresas e das ferramentas de trabalho, a parcela do décimo superior ultrapassa 70-80% do total. A propriedade das empresas continua a ser uma noção relativamente abstrata para a maioria da população.


282 - ...No fundo, a classe média só conseguiu arrancar algumas migalhas: não mais de um terço do patrimônio na Europa, e apenas um quarto dele nos Estados Unidos.


283 - A excepcionalidade do Século XX: Todas as fontes de que dispomos mostram que essas ordens de grandeza — em torno de 90% dos patrimônios para o décimo superior e ao menos 50% para o centésimo superior — parecem caracterizar as sociedades rurais tradicionais, quer se trate do Antigo Regime na França ou do século XVIII na Inglaterra.


284 - Desigualdade de renda total: Como já seria de se esperar, o nível de desigualdade da renda total fica entre a desigualdade da renda do trabalho e a da renda do capital e está mais próxima da primeira do que da segunda. Isso não espanta, uma vez que as rendas do trabalho representam, em geral, entre dois terços e três quartos da renda nacional total.


285 - A primeira forma de se chegar à extrema desigualdade é o esquema clássico de uma “sociedade hiperpatrimonial” (ou “sociedade de rentistas”), isto é, uma sociedade em que os patrimônios são muito importantes e a concentração atinge níveis muito elevados (tipicamente 90% do patrimônio total para o décimo superior e 50% para o centésimo superior). A hierarquia da renda total é, assim, dominada pelas rendas muito elevadas do capital e, sobretudo, pelas rendas do capital herdado. É o esquema que se observa, com pequenas variações, no Antigo Regime e na Europa da Belle Époque.


286 - Outra opção seria uma sociedade desigual, mas dominada pelas altas rendas do trabalho. Supercelebridades ou superexecutivos. Coisas do tipo. Por enquanto, devemos nos contentar em notar que essa oposição absoluta entre os dois tipos de sociedades hiperdesiguais, entre “sociedades de rentistas” e “sociedades de superexecutivos”, é ingênua e excessiva. Os dois tipos de desigualdade podem perfeitamente se acumular: não é impossível ser, ao mesmo tempo, um superexecutivo e um rentista.


287 - ...Na prática, todas as sociedades misturam as duas lógicas. Não há dúvida de que existem diversas maneiras de atingir um mesmo nível de desigualdade e que os Estados Unidos dos anos 2010 se caracterizam, antes de tudo, por uma desigualdade recorde das rendas do trabalho (mais elevadas do que em todas as sociedades observadas na história, incluindo aquelas caracterizadas por fortes disparidades de qualificação do trabalhador) e por desigualdades de riqueza menos extremas do que as observadas nas sociedades tradicionais ou na Europa de 1900-1910.


288 - Em termos concretos, constata-se que o coeficiente de Gini varia, aproximadamente, entre 0,2 e 0,4 para as distribuições de renda do trabalho observadas nas diferentes sociedades, entre 0,6 e 0,9 para as distribuições da propriedade do capital e entre 0,3 e 0,5 para a desigualdade da renda total. Com um coeficiente de Gini de 0,19, a distribuição das rendas do trabalho observada nos países escandinavos dos anos 1970-1980 não está muito distante da igualdade absoluta. Em contrapartida, com um coeficiente de Gini de 0,85, a distribuição da riqueza observada na Europa da Belle Époque não está longe da desigualdade absoluta.


289 - "Critica" alguns indicadores oficiais por não destrincharem as amplas diferenças no topo do percentil mais rico, por exemplo. Cita P90/P10. Às vezes sociedades com desigualdades relevantemente diferentes podem aparecer nos indicadores assim como "a mesma coisa". Ademais, coloca como esses indicadores são mais sensíveis aos diversos critérios de mensuração. Pode mudar muito o resultado a depender do método de consideração dos dados, digamos assim. A análise em grandes grupos, como o livro faz, é menos suscetível a isso.


290 - ...Por exemplo, apenas o conhecimento da parcela do décimo superior permite saber em que medida uma fração desproporcional do crescimento foi capturada pelo topo da distribuição. A contemplação de um coeficiente de Gini ou de uma relação interdecílica impede que se dê uma resposta precisa e transparente a essa pergunta.


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