Livro: Piketty - O Capital no Século XXI - Capítulo 16 (PARTE "A")

                               

Livro: Piketty - O Capital no Século XXI



Pgs. 662-672


"CAPÍTULO 16: "A questão da dívida pública"


619 - Dívida: ...financiar a dívida é, acima de tudo, do interesse de quem tem os meios para emprestar ao Estado, e seria melhor para o Estado taxar os ricos em vez de pegar dinheiro emprestado deles.


620 - Imposto, inflação ou austeridade? Como resolver? Coloca que a Europa "atual" escolheu a pior solução (austeridade).


621 - Europa e possivelmente muitos países pelo mundo: O valor total dos ativos públicos é da mesma ordem que a dívida pública (em torno de um ano de renda nacional), de modo que o patrimônio público líquido é quase nulo. Então basta a privatização total? Em vez de deter a dívida pública por meio de alocações financeiras, os domicílios europeus mais abastados em patrimônios se tornariam os proprietários diretos das escolas, dos hospitais, dos quartéis etc. Seria necessário, em seguida, pagar-lhes um aluguel para poder utilizar esses ativos e continuar a fornecer os serviços públicos. Essa solução às vezes é seriamente considerada, porém, ao que me parece, deveria ser rejeitada por completo.


622 - ...A solução de longe mais satisfatória para reduzir a dívida pública consiste em arrecadar um imposto excepcional sobre o capital privado. Por exemplo, um imposto proporcional de 15% sobre todos os patrimônios privados geraria perto de um ano de renda nacional e permitiria, assim, reembolsar imediatamente todas as dívidas públicas. O Estado continuaria a deter seus ativos públicos, mas o valor de suas dívidas seria reduzido a zero e, portanto, ele não teria mais juros a pagar. Tal solução é equivalente a um repúdio total da dívida pública, mas com duas diferenças essenciais. Seria muito mais organizado que uma moratória acertando detentores "aleatórios" de títulos (os grandões poderiam escapar antes já que possuem melhores informações). Todo rico/particular daria a sua cota de contribuição no imposto sobre capital, sem ter pra onde fugir. Os bancos não quebrariam por estarem com muito título público na mão ou coisas do tipo. Enfim... Para isso, é indispensável, claro, que as autoridades públicas disponham permanentemente de transmissões automáticas de informações bancárias para todos os ativos financeiros detidos pelas pessoas. Sem o cadastro financeiro, todas as políticas adotadas estariam em risco.


623 - Sofisticando a coisa: Não haveria muito sentido em arrecadar um imposto excepcional proporcional de 15% sobre todos os patrimônios privados europeus. Melhor seria aplicar uma tabela de cálculos progressiva, de maneira a poupar os patrimônios mais modestos e demandar mais dos patrimônios maiores. De certa maneira, é o que já fazem as leis bancárias europeias, pois geralmente elas garantem, em caso de falência, os depósitos bancários inferiores a 100.000 euros. (...) Além disso, esse instrumento pode ser aplicado aos ativos como um todo (inclusive as ações cotadas e não cotadas), e não apenas aos depósitos bancários.


624 - ...Como vimos no Capítulo 15, um imposto progressivo sobre o capital arrecadando 0% dos patrimônios líquidos inferiores a 1 milhão de euros, 1% dos patrimônios entre 1 e 5 milhões de euros e 2% dos patrimônios acima de 5 milhões de euros geraria o equivalente a cerca de 2% do PIB europeu. Para obter de uma só vez 20% do PIB em receitas, bastaria aplicar um imposto excepcional com taxas dez vezes mais elevadas: 0% até 1 milhão de euros, 10% entre 1 e 5 milhões de euros, e 20% acima de 5 milhões de euros. (...) É interessante notar que a arrecadação excepcional sobre o capital aplicada na França em 1945, cujo objetivo era reduzir em grande volume o endividamento público, tinha uma tabela de cálculo progressivo que variava de 0% a 25% para os maiores patrimônios. (...) Podemos também obter o mesmo resultado ao aplicar durante dez anos o imposto progressivo com taxas de 0%, 1% e 2% e dedicando essas receitas à redução da dívida, por exemplo, por meio de um “fundo de redenção” como o proposto em 2011 pelo conselho de economistas nomeado pelo governo alemão.


625 - A Alemanha, em particular, é o país que mais recorreu à inflação (...) para se livrar das dívidas públicas ao longo de sua história (...). Além do efeito de redução da inflação, uma parte importante das dívidas alemãs foi pura e simplesmente anulada pelos Aliados ao fim da Segunda Guerra Mundial (ou, mais precisamente, os pagamentos foram postergados até uma eventual reunificação alemã, mas nunca houve reembolso). De acordo com os cálculos do historiador alemão Albrecht Ritschl, os montantes seriam de fato substanciais se as dívidas fossem recapitalizadas a uma taxa razoável. Já o Reino Unido passou o Século XIX fazendo gordos superávits primários para se livrar do gigantismo da dívida (até mandar para os céus de novo a mesma nas guerras, ironicamente). No total, ao longo desse período, os contribuintes britânicos gastaram mais recursos em pagamentos de juros da dívida do que nas despesas totais com educação. Era uma escolha que atendia, sem dúvida, aos interesses dos detentores dos títulos de dívida. Contudo, é pouco provável que ela tenha sido pensada para atender ao interesse geral do paísPodemos imaginar que o atraso educacional britânico tenha contribuído para o declínio econômico do Reino Unido ao longo das décadas seguintes.


626 - ...O imposto sobre o capital impinge o esforço para os detentores dos maiores patrimônios, enquanto as políticas de austeridade visam, mais frequentemente, a poupá-los. (...) a inflação é apenas um substituto muito imperfeito do imposto progressivo sobre o capital e pode comportar diversos efeitos secundários pouco atrativos. Pode deflagrar espiral de preços e salários, por exemplo, mesmo se iniciada moderadamente. Na França, a inflação ultrapassou os 50% ao ano de 1945 a 1948, durante quatro anos consecutivosA dívida pública foi reduzida a quase nada, muito mais radicalmente do que pelo imposto excepcional sobre os patrimônios aplicado em 1945. Mas milhões de pequenos poupadores foram arruinados pela inflação, o que contribuiu para agravar uma pobreza endêmica da terceira idade nos anos 1950.


627 - A inflação tem o mérito, na sua versão idealizada, de penalizar acima de tudo os que não sabem o que fazer com seu dinheiro, ou seja, os que deixam muita liquidez em suas contas bancárias, em contas e carteiras pouco dinâmicas ou debaixo do colchão. (...) Segundo essa visão ideal, a inflação seria, de certa maneira, um imposto sobre o capital ocioso e um incentivo ao capital dinâmico. Esse ponto de vista contém uma pequena parte de verdade, que não deve ser ignorada. Piketty é menos otimista com os "benefícios da inflação", chamando-a de mecanismo grosseiro. A redistribuição de riqueza desejada às vezes vai na direção certa e, às vezes, na direção errada. (...) Quer se trate de reduzir as desigualdades patrimoniais em caráter permanente ou reduzir a dívida pública excepcionalmente elevada, o imposto progressivo sobre o capital é, em regra geral, um instrumento muito melhor do que a inflação.


628 - Passa a abordar as dificuldades do padrão-ouro: Uma das dificuldades evidentes era, precisamente, que a evolução geral dos preços dependia, antes de tudo, do acaso nas descobertas desses metais. Se o estoque de ouro mundial ficasse estacionário, mas a produção mundial crescesse bastante, então o nível de preços deveria se reduzir continuamente (uma mesma massa monetária serviria para trocar uma produção muito maior), o que na prática geraria dificuldades consideráveisSe de repente fossem feitas grandes descobertas, como na América hispânica dos séculos XVI-XVII ou na Califórnia em meados do século XIX, os preços poderiam subir como uma flecha, o que criaria outros tipos de problemas — e enriquecimentos indevidos


629 - Mesmo após a saída do padrão-ouro, os BCs tinham dificuldade em abandonar a postura conservadora frente às necessidades de adequação da oferta de moeda à demanda. Para Friedman, não há dúvida: foi a política grosseiramente restritiva do Fed que transformou o crash da bolsa em uma crise de crédito e mergulhou a economia na deflação e na extraordinária recessão. Friedman era, porém, grande crítico da Era Roosevelt: ...Para salvar o capitalismo, não há a menor necessidade do Welfare State e de um governo tentacular: basta um bom Fed. (Enfim, política monetária salva tudo).


630 - Uma coisa é capital e a outra é empréstimo (porém, estão bem ligados, creio). Mais precisamente, quando o Fed ou o BCE (Banco Central Europeu) decide criar um bilhão de dólares ou euros adicionais, seria equivocado imaginar que o capital nacional americano ou europeu tenha aumentado na mesma proporção. Na verdade, o capital nacional não muda em 1 dólar ou 1 euro sequer, pois as operações efetuadas pelos bancos centrais são sempre operações de empréstimo. Elas levam, por definição, à criação de ativos e passivos financeiros que se compensam perfeitamente no momento em que são introduzidos. Por exemplo, o Fed empresta 1 bilhão de dólares para o Lehman Brothers ou para a General Motors (ou para o governo americano), que se encontrarão endividados pelo mesmo valor. Nem o patrimônio líquido do Fed nem o do Lehman Brothers ou da General Motors, nem a fortiori o dos Estados Unidos ou o do planeta, serão modificados no que quer que seja por essa operação. (...)  Se o empréstimo feito pelo banco central permitir à empresa em questão sair de uma situação ruim e evitar assim uma falência definitiva (que poderia talvez conduzir a uma queda da riqueza nacional), então, uma vez que a situação tenha se estabilizado e o empréstimo tenha sido pago, podemos considerar que o empréstimo do Fed possibilitou que a riqueza nacional crescesse (ou, pelo menos, não diminuísse).


631 - ...Por outro lado, se o empréstimo não faz nada mais do que retardar a falência inevitável da empresa e se isso chega até a impedir o surgimento de uma concorrência viável (o que pode de fato acontecer), devemos considerar que o efeito dessa política é diminuir a riqueza nacional. 


(...) 


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