Livro: Piketty - O Capital no Século XXI - Capítulo 14

                             

Livro: Piketty - O Capital no Século XXI



Pgs. 612-636


"CAPÍTULO 14: "Repensar o imposto progressivo sobre a renda"


561 - Tudo parece indicar que a progressividade fiscal no topo da hierarquia das rendas e das heranças explica em parte por que a concentração dos patrimônios, depois dos choques dos anos 1914-1945, nunca mais atingiu seu nível astronômico da Belle Époque. Por outro lado, a queda espetacular da progressividade sobre as rendas altas nos Estados Unidos e no Reino Unido desde os anos 1970-1980 — mesmo que esses dois países estejam entre os líderes da taxação progressiva no pós-guerra — justifica em grande parte o salto das remunerações muito elevadas.


562 - A concorrência fiscal, sobretudo dos estados pequenos europeus e afins, está levando a um retorno da regressividade tributária, coloca. Por exemplo, uma estimativa detalhada feita para a França em 2010, que levou em conta a totalidade das arrecadações obrigatórias e atribuiu-as individualmente em função das rendas e dos patrimônios de cada pessoa, chegou ao seguinte resultado: a taxa global de tributação (47% da renda nacional em média, nessa estimativa) é de cerca de 40-45% para os 50% das pessoas que dispõe das menores rendas, sobe para 45-50% entre os 40% seguintes, antes de cair entre os 5% das rendas mais elevadas e sobretudo para o 1% mais ricos, indo para apenas 35% entre os 0,1% mais abastado. (...) Em especial, essa estimativa não leva em conta as rendas escondidas nos paraísos fiscais (cuja importância foi discutida no Capítulo 12) e supõe que certo número de “nichos fiscais” é utilizado na mesma proporção em todos os níveis de renda e de patrimônios (o que provavelmente leva a superestimar a taxa real de tributação no topo da hierarquia).


563 - ...Toda essa "desigualdade tributária" aí é sem contar o que se recebe de herança, que é tributada com alíquota bem menor que outros tributos. Bom para os ricos. 


564 - Piketty aprecia a liberalização comercial, logo propõe que os trabalhadores "perdedores" do processo sejam compensados com leve progressividade fiscal. Os 50% mais pobres e tal. E, se o aumento dessa progressividade fiscal não ocorresse, não seria surpresa que aqueles menos beneficiados pelo livre-comércio (ou que às vezes sofrem perdas nítidas) começassem a questionar o sistema


565 - O imposto de renda foi criado em alguns países em decorrência da iminência da guerra mundial a ser financiada. Porém, em outros, a criação se fez, em geral, sem grandes emoções, no curso normal das instituições parlamentares, como em 1909 no Reino Unido e em 1913 nos Estados Unidos. Nos países do norte da Europa, em vários estados alemães e no Japão, a criação do imposto progressivo sobre a renda foi ainda mais precoce: 1870 na Dinamarca, 1887 no Japão, 1891 na Prússia e1903 na Suécia. De toda forma, mesmo nos países que já tinham antes esse tipo de tributo, foi a I Guerra que impulsionou majorações de arrecadações. Alíquotas marginais - a maior costuma atingir de 1 a 0,1% dos mais ricos - subiram e tal. Na França, à época da criação do imposto sobre a renda em 1914, a taxa mais elevada era de 2% e atingia apenas uma ínfima minoria de contribuintes. Somente depois da guerra, num contexto político e financeiro radicalmente transformado, a taxa superior foi levada a um nível “moderno”: 50% em 1920, 60% em 1924 e até mesmo 72% em 1925.



566 - ...Vários relatórios e livros publicados nessa época contribuíram para propagar a ideia e convencer uma parte das elites políticas e dos economistas liberais, mesmo que muitos ainda permanecessem hostis ao próprio princípio da progressividade, sobretudo na França.


567 -  É especialmente espantoso constatar que a lei decisiva de 25 de junho de 1920, que elevava a taxa superior para 50% e que de fato pode ser vista como um segundo nascimento do imposto sobre a renda, foi adotada pela “Chambre bleu horizon” (uma das Câmaras mais à direita de toda a história da República francesa), pois a maioria de seus membros pertencia à coalizão de centro-direita Bloc National, constituída em essência por grupos parlamentares que antes da Primeira Guerra Mundial eram veementemente contra a criação de um imposto sobre a renda com uma taxa superior a 2%. Essa reviravolta completa dos deputados situados à direita no espectro político se explica, obviamente, pela situação financeira desastrosa herdada da guerra. (...). Foi nesse contexto político caótico e explosivo, marcado também pela Revolução Bolchevique de 1917, que o imposto progressivo nasceu em sua forma moderna. (Algo parecido ocorreu nas discussões alemãs, que fracassaram em 1909).


568 - ... É impossível dizer o que aconteceria sem o choque de 1914-1918. Sem dúvida, um movimento havia sido iniciado, mas parece óbvio que essa marcha em direção à progressividade seria no mínimo mais lenta — e talvez jamais tivesse atingido tais níveis. As taxas praticadas antes de 1914, sempre inferiores a 10% (e geralmente a 5%), inclusive para as rendas mais elevadas, não eram, na realidade, muito diferentes das aplicadas ao longo dos séculos XVIII e XIX.


569 - Um imposto progressivo sobre a renda global foi também brevemente aplicado no Reino Unido durante os anos das Guerras Napoleônicas, assim como nos Estados Unidos durante a Guerra da Secessão, mas, nos dois casos, esses impostos foram suprimidos pouco depois do fim do conflito. (...). O projeto de uma dixme real proposto em 1707 por Vauban, que visava impor sobre a totalidade das rendas do reino (inclusive as rendas fundiárias aristocráticas e eclesiásticas) uma taxa de 10%, nunca foi completamente implementado, o que não impediu que o sistema fiscal passasse por alguns aperfeiçoamentos ao longo do século XVIII. Já a França dos revolucionários instituiu a tributação baseada em portas e janelas. Vai citando, depois, outras inovações. Enfim, tanto na França como na Inglaterra, já havia, desde muito, resquícios fracos do que viria a ser o imposto de renda progressivo no Século XX.


570 - França demorou a abraçar o seu suposto amor pela igualdade também no que tange às heranças. O imposto ...instituído pela Revolução Francesa, estritamente proporcional de 1791 a 1901, tornou-se progressivo depois da lei de 25 de fevereiro de 1901. Contudo, na realidade isso não mudou muita coisa: a taxa mais alta foi fixada em 5% de 1902 a 1910, depois em 6,5% de 1911 a 1914, e se aplicava apenas a algumas dezenas de fortunas a cada ano. Havia teorias jurídicas (sociológicas, filosóficas, sei lá) contra esse tipo de imposto e tudo mais. A taxa efetiva média para o centésimo superior da hierarquia das heranças não ultrapassava 3% após a reforma de 1901 (contra 1% no regime proporcional em vigor no século XIX). Cita famosíssimos - à época - defensores do liberalismo dos poderosos, sempre contra as iniciativas progressistas em geral, sendo que geralmente usavam achismo: ...A bem da verdade, Leroy -Beaulieu não dispunha de qualquer dado, de nenhuma fonte capaz de demonstrar a “tendência a uma menor desigualdade das condições”


571 - ...Para Leroy-Beaulieu e seus colegas ditos de “centro-direita” (em oposição à direita monarquista), era necessário opor-se a todo custo a esse imposto com um argumento implacável: a França era um país igualitário por obra e graça da Revolução Francesa, que redistribuiu um pouco as terras e, sobretudo, instituiu a igualdade perante o Código Civil, a igualdade quanto ao direito à propriedade e à capacidade de contratar livremente. (...) Claro, acrescentavam eles, tais impostos seriam úteis em sociedades de classes, sociedades aristocráticas como no vizinho Reino Unido; mas não entre os franceses. (...) Outro argumento clássico da época era que a técnica “inquisitorial” da declaração da renda só pode convir a um país “autoritário” como a Alemanha, mas seria imediatamente rejeitada por um “povo livre” como o da França.



572 - Nos Estados Unidos, o imposto federal sobre as heranças e doações foi instituído somente em 1916, mas sua taxa logo se elevou para níveis superiores aos aplicados na França e na Alemanha


573 - ...Os Estados Unidos foram os primeiros a experimentar as taxas superiores a 70%, no início para as rendas, nos anos 1919-1922, e depois para as heranças, em 1937-1939. Quando taxamos uma fatia de rendas ou heranças a um valor da ordem de 70-80%, fica bem evidente que o objetivo principal não é elevar as receitas fiscais (e, na realidade, essas fatias nunca geram muita coisa). No fim das contas, trata-se de acabar com esse tipo de renda ou de patrimônio, julgados pelo legislador como socialmente excessivos e estéreis para a economia, ou no mínimo de tornar muito custoso mantê-lo em tal nível a fim de desencorajar fortemente sua perpetuação. Ao mesmo tempo, não se trata de uma interdição absoluta ou de uma expropriação.


574 - ...Do mesmo modo, é necessário ressaltar que os países da Europa continental, e em particular a França e a Alemanha, exploraram outras vias no pós-guerra, como a propriedade pública das empresas e a fixação direta dos salários de seus diretores, medidas que também podem ser concebidas dentro do respeito ao direito e que de certa maneira os dispensaram de ir tão longe na via fiscal


575 - ...Já mencionamos na Terceira Parte (Capítulo 10) o livro em que Willford King abordou, em 1915, a questão da distribuição da riqueza nos Estados Unidos e suas próprias inquietudes sobre o tema de uma possível reaproximação com as sociedades europeias, percebidas naquele momento como superdesiguais. Em 1919, o presidente da American Economic Association, Irving Fisher, foi ainda mais longe. Ele escolheu dedicar seu discurso presidencial à questão da desigualdade americana e explicou sem rodeios a seus colegas que a concentração crescente da riqueza era o principal problema econômico dos Estados Unidos. (...) É impressionante ver como Fisher se preocupava muito mais com a desigualdade do que Leroy -Beaulieu, ainda que vivesse numa sociedade muito mais igualitária. O medo de se parecer com a velha Europa explica, em parte, a progressividade fiscal americana.


576 - Roosevelt e as alíquotas marginais superiores: Ele decidiu imediatamente aumentar a taxa superior do imposto sobre a renda, que havia caído para 25% no fim dos anos 1920 sob a desastrosa presidência de Hoover, subi-la para 63% a partir de 1933 e depois para 79% em 1937, ultrapassando assim o recorde anterior, de 1919. Em 1942, o Victory Tax Act elevou a taxa superior para 88%, e depois para 94% em 1944 com os diferentes adicionais. Em seguida, ela se estabilizou em torno de 90% até a metade dos anos 1960 e em 70% até o início dos anos 1980. No total, no período 1932-1980, ou seja, durante quase meio século, a taxa superior do imposto federal sobre a renda foi, em média, de 81% nos Estados Unidos. (Somando as dos Estados também).


577 - ...Em particular, a França e a Alemanha aplicaram entre os anos 1940 e 1980 taxas superiores geralmente compreendidas entre 50% e 70%, mas que não nunca chegaram a 80-90%. A única exceção se deu na Alemanha entre 1947 e 1949: a taxa superior nessa época era de 90%. Porém, trata-se justamente do período quando os cálculos eram fixados pelas autoridades dos Aliados na ocupação (na prática, pelas autoridades americanas). Desde que a Alemanha retomou sua soberania fiscal, em 1950, o país decidiu voltar logo para taxas mais condizentes com sua postura, e a taxa superior caiu em alguns anos para pouco mais de 50% (ver o Gráfico 14.1). O mesmo exato fenômeno foi observado no Japão.


578 - Durante a campanha presidencial americana de 1972, o candidato democrata George McGovern até menciona uma taxa superior de 100% para as heranças mais elevadas (essa taxa era, então, de 77%), no contexto de seu plano de introduzir uma renda mínima incondicional. A grande derrota de McGovern para Nixon marca o início do fim do entusiasmo redistributivo americano. Ver Beckert, J. Inherited Wealth, op. cit., pág. 196.


579 - Já vimos na Primeira Parte que essa grande reviravolta pode ser explicada, ao menos em parte, pela sensação experimentada pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido de estarem sendo alcançados pelos outros países nos anos 1970, o que nutriu a onda thatcher-reaganiana.


580 - Abriu-se a porteira para os salários exorbitantes dos executivos: Nos anos 1950-1960, um executivo americano ou britânico tinha poucos motivos para lutar por um aumento desses, e as várias partes da empresa estavam menos preparadas para aceitar tal proposta, pois, de toda forma, 80-90% do aumento iria direto para os cofres do Tesouro Nacional. A partir dos anos 1980, a natureza do jogo mudou totalmente, e tudo parece indicar que os executivos começaram a realizar esforços consideráveis para convencer todos a lhes darem aumentos não menos consideráveis.


581 - ...A produtividade foi mais alta e por isso surgiram os salários exorbitantes? Tudo indica que não. O crescimento do PIB per capita foi parecido em países onde não houve essa decolagem da remuneração dos executivos. Isso permite excluir uma elasticidade de oferta de trabalho superior a 0,1- 0,2 e chegar à taxa marginal ótima descrita mais adiante. Todos os detalhes do raciocínio e dos resultados teóricos estão disponíveis em Piketty, T.; Saez, E. e Stantcheva, S. “Optimal Taxation of Top Labor Incomes: A Tale of Three Elasticities”, op. cit. e resumos correspondentes no Anexo Técnico.


582 - Rodapé interessante: Ouso acrescentar o seguinte ponto: o fato de que a Alemanha e a França, a despeito de um investimento muito menor no ensino superior (e um sistema fiscal e social terrivelmente complexo, principalmente na França), alcancem o mesmo nível do PIB por hora trabalhada do que nos Estados Unidos é algo milagroso e se explica possivelmente por um sistema educacional primário e secundário mais igualitário e inclusivo. Inclusive... talvez seja bom lembrar que a economia americana era muito mais inovadora nos anos 1950-1970 do que no período 1990-2010, ao menos se nos basearmos na taxa de crescimento de sua produtividade, que era quase duas vezes mais elevada ao longo do primeiro período.


583 - Voltando aos "CEO" da vida, cita pesquisa sobre os supersalários: ...Os resultados obtidos sugerem que o salto dessas remunerações se explica muito bem pelo modelo de negociação (a redução da taxa marginal levou os executivos a negociarem de maneira mais agressiva para obter uma remuneração mais elevada), e não por um hipotético aumento da produtividade dos executivos em questão. (...) Descobrimos de imediato que a elasticidade da remuneração dos executivos é ainda mais forte em relação a lucros “fortuitos” (ou seja, variações de lucros que não podem ser causadas por ações do executivo, como aquelas ligadas ao desempenho médio do setor considerado) do que a lucros “não fortuitos” (ou seja, as variações não explicadas por essas variáveis setoriais), resultado que já descrevemos na Terceira Parte (Capítulo 9). (...) Além disso, constatamos que a elasticidade em relação aos lucros fortuitos — de maneira geral, a capacidade de os executivos obterem aumentos sem uma justificação clara em termos de desempenho econômico — progrediu sobretudo nos países onde a taxa marginal foi muito reduzida. Por fim... Em particular, as variações no tamanho das empresas ou a importância do setor financeiro não permitem absolutamente explicar os fatos observados. (a já mencionada divergência entre os países e tal).


584 - Obs.: ...os dados não indicam que os executivos dos anos 1950-1980 compensavam suas remunerações mais baixas por benefícios mais vultosos. Tudo sugere, ao contrário, que essas vantagens — jatos particulares, escritórios suntuosos etc. — também ganharam terreno ao longo dos anos 1980.


585 - Cita trabalho de pesquisa próprio em que estima o imposto progressivo adequado: Segundo nossas estimativas, o nível ótimo da taxa superior nos países desenvolvidos seria superior a 80%. (Para ser mais exato, 82%. Ver Piketty, T.; Saez, E. e Stantcheva S. “Optimal Taxation of Top Labor Incomes: A Tale of Three Elasticities”, op. cit., Tabela 5.). Isso para a galera do 1% ou no mínimo 0,5%.


586 - .... Uma taxa de 80% aplicada a rendas acima de 500.000 ou 1 milhão de dólares não geraria muito dinheiro para o governo pois ela logo cumpriria seu objetivo: limitar drasticamente remunerações desse tipo, sem, porém, reduzir a produtividade da economia americana no seu conjunto, de modo que as remunerações menores aumentariam. Para obter as receitas fiscais de que os Estados Unidos, aliás, tanto precisam para desenvolver seu magro Estado social e investir na educação e na saúde (e ao mesmo tempo reduzir seu déficit público), seria também necessário elevar as taxas de tributação para as rendas menos elevadas (fixando-as, por exemplo, em 50% ou 60% para valores acima de 200.000 dólares). Tal política fiscal e social está completamente ao alcance do país.


587 - A experiência da França na Belle Époque demonstra, de forma cabal, o grau de má-fé atingido pelas elites econômicas e financeiras para defender seus interesses, assim como às vezes o dos economistas, que ocupam hoje um lugar invejável na hierarquia americana das rendas e que têm uma desagradável tendência a defender com frequência seus interesses privados, ocultando-os por trás de uma improvável defesa do interesse geral. Por fim, coloca que a classe política dos EUA é bastante rica. Grandes patrimônios médios mesmo em comparação a outros países ricos. Logo, difícil a identificação com os problemas do povo.


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