Livro: Piketty - A Economia da Desigualdade - Capítulo 3
Livro: Piketty - A Economia da Desigualdade
Pgs. 77-106
"CAPÍTULO 3: "A desigualdade das rendas do trabalho"
60 - É o aumento da desigualdade das rendas do trabalho que está na origem da reversão da curva de Kuznets verificada a partir dos anos 1970, com um aumento notável nos Estados Unidos de cerca de 50% na diferença salarial entre os 10% menos bem pagos e os 10% mais bem pagos.
61 - A noção de capital humano é bastante genérica, pois inclui as qualificações propriamente ditas (diplomas etc.), a experiência e, de maneira mais ampla, todas as características individuais que afetam a capacidade de se integrar ao processo de produção de bens e serviços demandados. Explicaria/legitimaria, segundo Gary Becker e demais, as desigualdades salariais, o que implica não-intervenções.
62 - Desigualdade entre o Norte e Sul globais: Outros fatores, como a imperfeição do mercado de crédito, que priva os assalariados do Sul de investimentos suficientes, bem como o fechamento das fronteiras, que os impede de se beneficiar do capital físico e humano mais alto do Norte, agravam ainda mais essa desigualdade. De qualquer maneira, a considerável desigualdade da produtividade do trabalho é o fator mais importante para explicar a desigualdade de salários Norte / Sul.
63 - Teoria do capital humano e Inglaterra do Século XIX: ...a relação entre o salário médio dos trabalhadores qualificados e o salário médio dos trabalhadores não qualificados na Grã-Bretanha era de 2,4 em 1815, antes de aumentar progressivamente até alcançar 3,8 em 1851 e de voltar a cair de maneira contínua até 2,5 em 1911 [Williamson, 1985]. Como explicar que essa diferença salarial tenha sido cerca de 60% mais elevada em meados do século XIX do que no início e no fim do século? A explicação mais convincente e reiterada por outras fontes é a seguinte: durante a primeira metade do século XIX, a crescente mecanização da indústria aumentou consideravelmente a demanda por trabalho qualificado, ao passo que, no mesmo período, um forte êxodo rural suscitado pelo crescimento da produtividade agrícola tendia, ao contrário, a ampliar com bastante rapidez a oferta de trabalho não qualificado. Num segundo momento, a oferta de trabalho não qualificado proveniente dos campos se estabilizou, a educação e a progressão das qualificações levaram a um forte crescimento do número de operários qualificados, e a diferença de salário entre trabalhadores qualificados e não qualificados começou a cair. Oferta e demanda.
64 - Mudança tecnológica enviesada dos anos 70 pra cá? É a hipótese do skill-biased technological change, ...enviesada em favor das qualificações e do “talento”, sob todas as suas formas. A desindustrialização implicaria serviços de alta e altíssima qualificação nos países ricos. O crescimento baseada na indústria, fase anterior, envolveria forte demanda por média qualificação. Já os serviços pedem mais os extremos. Baixa e alta. Anos 80: Na linguagem dos economistas do trabalho, “o retorno” da qualificação aumentou [Juhn et al., 1993]. Porém, para os anos 70, essa explicação não serve muito...
65 - ...O problema é que parte substancial — cerca de 60% — do aumento total da desigualdade dos salários se deu no âmbito de grupos de assalariados com as mesmas características: mesmo nível de educação, mesmo tempo de experiência profissional, mesma idade [Juhn et al., 1993, p. 431]. Aliás, é o crescimento dessa desigualdade no âmbito de grupos de assalariados homogêneos a partir de 1970 que explica por que a desigualdade total da distribuição dos salários aumenta continuamente nos Estados Unidos a partir de 1970 — como revela a razão P90 / P10 (ver o Capítulo 1) —, embora o retorno do diploma tenha diminuído durante os anos 1970 (ver acima).
66 - Cuidados com as comparações internacionais entre escolarizações e educação em geral: Por exemplo, em 1990, menos de 25% da população ativa francesa tinha um diploma superior ou equivalente ao baccalauréat (certificado obtido após a conclusão do ensino médio), ao passo que mais de 85% da população ativa americana tinha uma idade de fim de estudos equivalente (seja o diploma de uma high school, seja do ensino superior) [Lefranc, 1997, Figura 1], de modo que os trabalhadores não qualificados americanos formavam nessa comparação um grupo muito mais estreito do que os não qualificados franceses. A realidade obviamente tem mais nuances do que sugerem esses indicadores estatísticos medíocres: todo mundo conhece a qualidade desigual das high schools americanas em comparação com os liceus franceses.
67 - ...Lembrar que a qualidade do diploma serve no mínimo para sinalizar maior competência individual, diz a teoria. Essa é uma das limitações tradicionais de qualquer tentativa de explicar a desigualdade dos salários a partir das características individuais observáveis: sempre resta um componente significativo da desigualdade total que permanece sem explicação. Teria aumentado a desigualdade entre os diplomas nos anos setenta? Não tem muito como saber. Até que ponto a teoria do capital humano, interpretada num sentido amplo, corre o risco de tornar-se completamente tautológica? É sempre possível “explicar” qualquer variação observada da desigualdade dos salários evocando uma variação da produtividade de diversas características individuais não observáveis para o observador externo...
68 - Crê que a competição entre os salários globais ainda é pequena (ao menos na época do livro) mesmo após a abertura econômica, tendo em vista a participação pequena de importações de países subdesenvolvidos pelos desenvolvidos. (E o controle migratório, creio). A desigualdade seria mais explicada por fatores internos mesmo: Essa progressão sensível da segregação entre empresas também é observada na França [Kramarz et al., 1995], o que sugere um fenômeno bastante generalizado de separação crescente entre unidades de produção superprodutivas e unidades deixadas de lado. No atual estado dos conhecimentos, tudo isso parece indicar que a escalada da desigualdade salarial tem sua origem em transformações inerentes às estruturas de produção dos países desenvolvidos e que uma evolução semelhante teria acontecido caso esses países tivessem fechado suas economias ao comércio com o resto do mundo.
69 - Como se combate essa desigualdade? Redistribuição fiscal? Esse processo consiste em deixar os salários se estabelecerem em seu nível de mercado, mas tributar os salários altos para financiar uma transferência fiscal para os salários baixos (ou para diminuir seus impostos). (...) ela permite aumentar a renda dos assalariados pouco qualificados na mesma proporção que a redistribuição direta sem subir o preço do trabalho pouco qualificado para as empresas e, portanto, sem reduzir o volume de empregos pouco qualificados. A mesma questão da elasticidade vista no capítulo anterior operaria aqui num caso de redistribuição direta. Até mais: Todos os estudos econométricos disponíveis, bem como as transformações significativas na estrutura dos empregos observadas no tempo e no espaço, mostram que essas elasticidades são sistematicamente mais elevadas do que a elasticidade de substituição capital-trabalho [Krussel et al., 1996; Hammermesh, 1986] (ver o Capítulo 2): é mais fácil substituir assalariados pouco qualificados por uma máquina ou por pessoal qualificado do que prescindir de assalariados qualificados. Em resumo e novamente: A redistribuição fiscal permite preservar a função alocativa do sistema de preços, ao mesmo tempo que redistribui as rendas auferidas por diferentes assalariados.
70 - Para Gary Becker e seus colegas, a aquisição de capital humano assemelha-se antes de tudo a um investimento de tipo clássico: se o custo do investimento (preço de um professor, despesas com matrículas universitárias, duração dos estudos etc.) for inferior ao “retorno” desse investimento (salário suplementar que esse capital humano permite obter), o mercado saberá encontrar os fundos necessários para financiar esse investimento rentável, assim como prevê o modelo do mercado de crédito perfeito no caso dos investimentos em capital físico (ver acima). Do mesmo modo, se a experiência e a aprendizagem proporcionadas por um emprego gerarem um forte aumento do capital humano, então o assalariado aceitará um salário bem modesto ou até pagará ao empregador durante esse período para poder ocupar o posto e realizar esse investimento rentável, desde que o assalariado tenha o direito de escolher esse emprego livremente.
71 - E se a elasticidade de oferta de trabalho qualificado for elevada? Aí a tentativa de redistribuição fiscal poderia ser bem ineficientes. Haveria menos profissionais qualificados para gerar essa renda a ser redistribuída, o que pressionaria por aumento de alíquota, perigando gerar um ciclo vicioso. Quanto a tudo isso, porém, as estimativas empíricas infelizmente são muito mais raras do que as respectivas teorizações e o estado atual dos conhecimentos sugere que tais efeitos são decerto mais fracos do que supõem os teóricos de Chicago (ver o Capítulo 4).
72 - O Estado não deve forçar investimentos em educação? O indivíduo é quem sabe da sua escolaridade? Esse argumento “paternalista”, que os economistas hesitam muito em utilizar, tem uma pertinência prática incontestável: se as crianças indianas devessem seguir os conselhos dos teóricos de Chicago e esperar que as forças de mercado e a iniciativa privada de seus pais as impelissem a se alfabetizar, é provável que a Índia continuasse ainda por muito tempo na pobreza. O ensino básico obrigatório é sem dúvida a redistribuição eficiente mais importante, e os trabalhos sobre crescimento e convergência sugerem que, sem essas políticas, não teria havido a progressão considerável dos padrões de vida nos países ocidentais a partir do século XIX. Ademais, o mercado de créditos não é perfeito, coloca. Quem vai financiar anos e anos de um pobre indiano que pode se tornar um cientista, por exemplo, pra, se tudo der certo, pagar com juros?
73 - De toda forma, o problema realmente é complexo: De fato, a influência das origens sociais sobre o sucesso profissional vai bem além do problema do mercado de crédito e do acesso à educação, uma vez que, para determinado diploma, o efeito das origens sociais pode ser estatisticamente observado ao longo de toda a carreira profissional [Goux e Maurin, 1996].
74 - ...Aliás, essa tradição de pensamento é antiga em Chicago, pois já em 1966 o famoso relatório do sociólogo James Coleman para o governo americano sobre a educação das minorias desfavorecidas causou escândalo quando anunciou que a redistribuição dos recursos para as escolas dos bairros pobres não promovera nenhum progresso sensível nos resultados escolares e na integração desses alunos no mercado de trabalho. A conclusão de Coleman, e de numerosos trabalhos que ele inspirou, é que não se podia esperar de fato mudar as coisas por meio de um aumento automático das despesas públicas com a educação nos lugares mais pobres, pois as desigualdades se formariam, antes de tudo, no nível da célula familiar e do meio de origem do aluno.
75 - Em educação é "tudo" uma questão de inteligência, genética e QI? Na realidade, eles também reconhecem que, segundo os raros estudos de caso de adoções aleatórias efetuados até então, crianças oriundas de meios socioculturais menos favorecidos inseridas em famílias mais educadas logo após o nascimento são tão bem-sucedidas quanto os filhos biológicos dessas famílias [Herrnstein e Murray, 1994, p. 410-413].
76 - Enfim, para alguns teóricos, seria mais eficiente fazer redistribuição fiscal do que tentar resolver o problema na origem. A desigualdade educacional seria, por razões genéticas ou socioculturais (família) quase inatacável. Seria um gasto ineficiente de recursos.
77 - Voltando ao relatório Coleman, outros estudos indicam conclusões diferentes: ...Em outras palavras, faz sentido que as chances de sucesso escolar de um indivíduo dependam mais da “qualidade” de seus colegas de classe que do grau de instrução de seu professor, sobretudo nos níveis primário e secundário: mandar um professor com doutorado para uma periferia difícil oferece poucas chances de melhorar em grande escala o sucesso escolar, ao passo que enviar estudantes de uma periferia difícil para um liceu parisiense tem fortes chances de aumentar consideravelmente a probabilidade de sucesso desses alunos. São as "externalidades locais".
78 - ...Resultados negativos como os de Coleman, em vez de reforçar a objeção à redistribuição dos recursos para as escolas dos bairros pobres e sugerir uma política de laissez-faire, sugerem antes a necessidade de recorrer a instrumentos de redistribuição mais radicais, como a utilização de logísticas escolares ambiciosas, obrigando pais de meios sociais diferentes a enviar os filhos para as mesmas escolas, dada a impossibilidade de realmente obrigá-los a conviver (o que seria ainda melhor). Afirma que isso foi tentando, nos anos 60 e 70 em cidades dos EUA, mas os ricos ficaram indignados com essa integração. Isso mesmo que futuramente uma sociedade menos desigual pudesse ser algo bom pra todo mundo (como violência e tensões sociais menores, por exemplo). (...) Regras simples, como a obrigação de equalizar a renda média dos pais para cada escola de determinado bairro, poderiam então vir a ser do interesse concreto de todos no longo prazo.
79 - Os problemas de seleção (ou sobre como os sinais não são perfeitos). Uma negra pobre e um branco rico disputando o mesmo emprego com notas parecidas. Qual a reação dos detentores do capital? Como antecipam que determinados grupos têm, a priori, menos chances do que outros de deter o capital humano necessário, eles só selecionarão membros desses grupos se o resultado de seus testes for excepcionalmente bom, o que significa que exigirão mais deles que dos outros grupos. A desigualdade (totalmente inútil do ponto de vista da eficiência) vira uma terrível profecia autorrealizável, digamos assim. Um desestímulo por si só.
80 - Políticas compensatórias: Elas podem assumir, para os empregadores, a forma de uma obrigação de demonstrar que qualquer decisão de contratação ou de promoção se baseia em critérios objetivos, e não enviesados, contra certos grupos sociais, ou ainda cotas e “discriminação positiva”, adotadas pelos empregadores para as minorias, a fim de romper o círculo vicioso das crenças autorrealizadoras e da desigualdade. Aqui já seria uma intervenção direta mesmo, bem acima da mera redistribuição fiscal.
81 - Freeman [1973] mostra que a redução da diferença salarial entre negros e brancos após 1965 e o período dos direitos civis só pode ser explicada pela erosão progressiva dos preconceitos negativos e dos desestímulos a ele associados (ver também Bound e Freeman [1989, 1992]).
82 - Cita, ainda, o caso das mulheres e o espetacular crescimento dos seus ganhos entre 1950 e 1980 inclusive em países mediterrâneos. Isso mostra que certas desigualdades de base grosseiramente discriminatória, como as desigualdades brancos / negros ou homens / mulheres, são muito mais influenciadas pelas ações afirmativas e pela evolução das mentalidades do que por todas as redistribuições fiscais do mundo. Entretanto, nem tudo são flores: O aparente pouco sucesso das ações afirmativas contribuiu muito para a reação conservadora contra os programas sociais em geral a partir dos anos 1980 e 1990. Na realidade, é provável que a deterioração da posição relativa dos negros no mercado de trabalho a partir dos anos 1970, que alimentou essa reação, seja simplesmente um subproduto do aumento geral das desigualdades salariais, durante o qual os assalariados negros foram atingidos em cheio pela desindustrialização, sobretudo os que habitavam o Norte dos Estados Unidos [Wilson, 1987].
83 - Em razão das elasticidades, Piketty é bem cético quanto à luta sindical: a ação dos sindicatos, se for levada a cabo, conduzirá inevitavelmente as empresas a utilizar mais capital e menos trabalho, e mais trabalho qualificado e menos trabalho não qualificado. A tentativa de compressão dos leques salariais pode sair pela culatra. Redistribuição fiscal seria o mais eficiente aqui. O difícil seria conciliar a redistribuição justa na concepção de todo mundo: governo, sindicatos...
84 - No médio prazo, as lutas sindicais parecem eficientes, porém: ...foi o aumento do poder de compra do salário mínimo líquido francês em cerca de 92% entre 1968 e 1983, num contexto em que os sindicatos desempenhavam um papel essencial — enquanto o salário médio aumentava em apenas 53% —, que permitiu reduzir a razão P90 / P10 dos salários franceses de 4,2 em 1967 para 3,1 em 1983 (ver o Capítulo 1 e INSEE [1996a, p. 44, 48]). Da mesma forma, é incontestável que os dois países ocidentais nos quais as desigualdades salariais mais aumentaram a partir de 1970 — os Estados Unidos e o Reino Unido — são os dois países onde o poder sindical mais perdeu força, sobretudo sob os ataques do poder político.
85 - Em contexto de não-redistribuição fiscal eficiente ou até de sua redução, crê que os sindicatos possuem de fato um papel a cumprir. Cita EUA e Reino Unido a partir dos anos 70.
86 - Outro possível benefício dos sindicatos: O fato de o capital humano muitas vezes ter um valor específico para cada empresa faz com que, na prática, o mercado de capital humano nunca possa ser plenamente competitivo. Quando um assalariado realiza os esforços e investimentos necessários para qualificar-se para certo cargo, sua empresa pode permitir-se pagar um salário bastante inferior ao que ele lhe proporciona, uma vez que o assalariado não pode utilizar por completo suas qualificações em outra empresa. Antecipando essa expropriação de seus investimentos em capital humano, o assalariado evitará realizá-los com a mesma intensidade que faria se houvesse garantia de retorno. Prefixar um salário mínimo abaixo do qual a empresa não possa pagar talvez resolva esse problema e melhore a eficiência econômica, evitando que investimentos eficientes sejam negligenciados. De maneira mais geral, prefixar o salário, ou a faixa salarial, que a empresa deve pagar a um funcionário com determinadas qualificações que ocupa um cargo com determinadas características pode ter o efeito de estimular os potenciais funcionários a adquirir mais capital humano específico sem temer ser expropriados pelos empregadores. Cita exemplo na Alemanha. Então aqui a compressão dos leques estimularia investimentos que reduziriam a desigualdade de capital humano.
87 - Quando o empregador está em situação de monopsônio, todo cenário muda. A redistribuição eficiente, ao contrário, consistiria em aumentar o salário mínimo legal a fim de aproximar o salário pago pelas empresas do salário concorrencial. Isso permitiria também turbinar a oferta de trabalho e, assim, aumentar o nível total de emprego. Ao contrário das conclusões mais comuns, a redistribuição direta seria então superior à redistribuição fiscal, uma vez que permitiria restaurar o equilíbrio concorrencial no mercado de trabalho, antes, é claro, que a redistribuição fiscal a substituísse, no caso de se desejar redistribuir mais. Trata-se, assim, do melhor dos mundos possíveis para a redistribuição, pois seria possível, ao mesmo tempo, melhorar o padrão de vida dos assalariados e reduzir o desemprego, sem gastar um centavo de renda fiscal!
88 - ...Quando essa situação de monopsônio pode ocorrer? ...em certa medida, capital humano específico obriga os assalariados a continuar oferecendo seu trabalho ao mesmo empregador (ver acima) ou, de maneira mais geral, porque a falta de mobilidade geográfica ou de informações sobre outros empregos possíveis deixa alguns assalariados à mercê de um único empregador. Monopsônio, claro, nem sempre é o caso. A desigualdade salarial explodiu entre profissionais liberais estadunidenses, nos anos 70, por ação das forças competitivas, por exemplo. A característica mais impressionante desse aumento é, ao contrário, o fato de ele ter ocorrido num mercado de trabalho bastante competitivo: a remuneração dos lawyers, médicos ou empresários não explodiu a partir de 1970 porque os capitalistas decidiram coletivamente dividir o mundo do trabalho, e sim porque as empresas, assim como os particulares, lutaram para contratar os serviços desses trabalhadores, aliciando-os incessantemente e lhes oferecendo remunerações cada vez mais elevadas.
89 - O polêmico aumento do salário mínimo nos EUA dos anos 90: Em todo caso, as razões exatas desse efeito positivo de uma elevação do salário mínimo permanecem objeto de debate. Seria um caso em que a baixa mobilidade geográfica da população pouco qualificada fazia com que ela se submetesse aos salários impostos por um cartel local dos restaurantes fast-foods, de modo que o aumento do salário mínimo não reduziu a demanda de trabalho destes últimos, e sim turbinou a oferta de trabalho, motivando novos jovens não qualificados a trabalhar nesses estabelecimentos, em conformidade com a mais pura teoria do monopsônio? Segundo determinados estudos, o aumento do nível de emprego seria antes fruto do fato de o aumento do salário mínimo ter atraído jovens mais qualificados, levados a abandonar suas high schools e ocupar as vagas dos menos qualificados [Neumark e Wascher, 1994].
90 - Salários de eficiência em mercados competitivos. Por que pagar mais que o nível de mercado? Oferecer a esse funcionário uma remuneração superior ao salário de mercado pode ter a função de motivá-lo mais, pois ele saberá então que perderá alguma coisa se for demitido. O desemprego acaba cumprindo um papel aí: Assim, o que motivaria o funcionário seria o risco de um período de espera e desemprego até ser contratado novamente. E pagar o salário que os funcionários entendem como justo pode levar a desemprego em alguns modelos. O desemprego pode então ser analisado como a consequência de um conflito distributivo, inclusive na ausência de sindicatos.
91 - Resume suas principais queixas relativas à teoria do capital humano aqui: Os exemplos da discriminação e do capital humano específico já mostraram que o mundo é mais complicado. Salário e produtividade não são irmãos siameses.
92 - A parte sobre tradições nacionais e desigualdades na França ficou um tanto nebulosa pra mim. A parte da "fé no capitalismo" que os americanos têm faz algum sentido.
93 - Por fim... Devemos também acrescentar, como mostraram as pesquisas mais recentes, que a elevação das desigualdades salariais americanas a partir dos anos 1980 responde em grande medida pela disparada das remunerações dos altos executivos, fenômeno espetacular difícil de explicar pela evolução de produtividade das pessoas envolvidas. Uma explicação mais plausível é o aumento do poder de negociação dos executivos em questão e sua autoridade para fixar o próprio salário, estimulados a isso pela forte redução das alíquotas superiores de tributação sobre as rendas altíssimas, que alcançavam ou ultrapassavam 70-80% nos Estados Unidos de 1930 a 1980. Trata-se de um exemplo interessante, que ilustra como o sistema tributário poder ter um efeito poderoso sobre a formação dos salários e das desigualdades antes dos impostos [Piketty, 2013; Piketty, Saez e Stantcheva, 2014].
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