Livro: Marcelo de Paiva Abreu - A Ordem do Progresso (2014) - Capítulo 15

                                

Livro: Marcelo de Paiva Abreu - A Ordem do Progresso (2014)



Pgs. 327-344


"CAPÍTULO 15: "ESTABILIZAÇÃO, ABERTURA E PRIVATIZAÇÃO, 1990-1994"


371 - Texto de Marcelo de Paiva Abreu e Rogério L. F. Werneck. Apresenta a herança maldita que Collor herdou: A combinação de rápida expansão de gastos do governo com significativa redução de carga tributária, ao longo da segunda metade da década de 1980, havia levado o déficit operacional consolidado do setor público a 6,9% do PIB em 1989. As reservas internacionais estavam tecnicamente zeradas. Os minguados US$9,7 bilhões registrados nas estatísticas oficiais haviam sido acumulados às custas de atrasos nos pagamentos de juros a credores externos. Para que as contas externas fossem mantidas sob controle precário, as importações tinham sido comprimidas a não mais que 4,4% do PIB.


372 - O "confisco": A parte mais controvertida do programa de estabilização que afinal se anunciou foi exatamente a tentativa de impedir a fuga de títulos públicos, com a retenção pelo governo de parte substancial dos ativos financeiros de empresas e pessoas físicas. Retidos por 18 meses, os ativos foram compulsoriamente convertidos em depósitos no Banco Central, com correção pela inflação, remuneração de 6% ao ano e previsão de devolução em 12 prestações mensais a partir do décimo nono mês. De início, cerca de 80% dos ativos financeiros chegaram a ser retidos. Esperava-se que a brutal contração de liquidez e efeito-riqueza negativo - colocam que muitos até pensaram que iriam perder tudo - mantivessem a demanda o tempo todo controlada.


373 - No que tange ao campo fiscal, a proposta inicial era fazer com que o déficit operacional do setor público de 8% do PIB, observado em 1989, se transformasse em superávit de 2% do PIB em 1990: um gigantesco ajuste de nada menos do que 10% do PIB. Pouco acabaria sendo feito de modo estrutural na era Collor. Medidas conjunturais foram tomadas em 1990, como a compressão dos salários do funcionalismo. Enfim, um ajuste mandrake, a la Bolsonaro.


374 - Logo após o anúncio do plano, na esteira da desorganização gerada pela falta de capital de giro das empresas, de situações dramáticas enfrentadas por muitas famílias em decorrência da súbita restrição de liquidez e de fortes pressões políticas exercidas sobre o Banco Central, foram criados vários mecanismos de flexibilização da retenção que levaram à rápida redução do percentual de ativos retidos. Tão rápida que a correção se revelou excessiva. Em cerca de 45 dias, passou-se, de uma situação de grande apreensão com a redução despropositada de liquidez imposta pelo programa de estabilização, a uma situação de alarme com a rapidez com que a liquidez estava sendo restaurada.


375 - Mesmo com arrocho salarial e contração de demanda (PIB, por exemplo, caiu 4,4% em 1990), a inflação já estava batendo 10% em maio e reajustes nos salários iam se tornando inevitáveis.


376 - No início de 1991, o governo se viu forçado a anunciar novo programa de estabilização, com novo congelamento de preços (Plano Collor II). Dessa vez, com forte resistência do Congresso. O plano deixou claramente exposta a fragilidade do apoio parlamentar com que contava o Executivo. Nas negociações com o Congresso sobre as medidas que compunham o plano, o governo teve de deixar questões fundamentais em aberto, para acerto posterior. Nem mesmo conseguiu aprovar a proposta de política salarial que enviou ao Legislativo. E os efeitos do congelamento sobre a inflação se revelaram especialmente efêmeros. O governo era obrigado, neste ano, a dar uma virada, até pela perda rápida de todo tipo de apoio. Com base na visão de que o controle de demanda e o baixo nível de atividade não vinham cumprindo qualquer papel positivo no combate à inflação, formou-se ampla coalizão favorável ao rápido reaquecimento da economia, envolvendo o empresariado, lideranças sindicais, boa parte dos governadores e segmentos importantes do Congresso. O foco na questão da estabilização, que adviera do senso de urgência incutido pela inflação da ordem de 80% ao mês observada no final do governo Sarney, fora, mais uma vez, perdido.


377 - Política monetária e cambial: Para evitar que tais recursos fossem atraídos para aplicações em moeda estrangeira, o Banco Central, além de manter a taxa de juros bastante elevada, permitiu que a apreciação da taxa real de câmbio que havia sido observada ao longo do primeiro semestre, se acentuasse significativamente em meados de 1991. A balança comercial já vinha mostrando franca deterioração, na esteira da superação do quadro recessivo de 1990, mas a entrada de capitais parecia suficiente para que o câmbio se valorizasse momentaneamente sem maiores riscos. Em setembro, contudo, surpreendido pela evolução desfavorável do influxo líquido de capitais e preocupado com o nível das reservas internacionais, o Banco Central decidiu abandonar a política de ajustes graduais do câmbio que havia sido introduzida em março de 1990, deixando que o câmbio se desvalorizasse em 16% no último dia do mês. A desvalorização deflagrou aumento da volatilidade no mercado cambial que contribuiu para intensificar ainda mais a rápida aceleração da inflação que já vinha sendo observada.


378 - ...Em meados de 1992, o quadro econômico do país havia-se tornado menos crítico em vários aspectos. Desde o início do ano, a política macroeconômica vinha contando com o respaldo de novo acordo com o Fundo Monetário Internacional. Apesar do desempenho desfavorável da receita tributária, as metas fiscais para o primeiro semestre haviam sido cumpridas, graças a um reajuste substancial de preços públicos e ao desgastante contingenciamento de verbas orçamentárias. Superado o episódio de volatilidade que se seguiu à desvalorização de setembro de 1991, o bom desempenho da balança comercial, combinado a forte influxo de capitais, vinha permitindo rápida recomposição das reservas internacionais. O processo de devolução dos recursos que haviam sido compulsoriamente retidos estava chegando ao fim. E, como se verá a seguir com mais detalhe, depois de longos meses de negociação, o país restabelecera a normalidade de suas relações com credores externos, oficiais e privados, rompida desde a moratória de 1987.


379 - Uma "conquista" foi o "desarmamento" defensivo das expectativas dos agentes no que diz respeito aos planos de congelamentos e afins. Toda a tensão desse ciclo levava, na verdade, a uma aceleração da inflação. Assim, o governo estava "comemorando" a inflação mensal estável em 20%. É notável que, não obstante todas as dificuldades por que passou o país nos dois anos seguintes, esse precário desarmamento de expectativas tenha sido, bem ou mal, preservado até a implementação do Plano Real, em meados de 1994. Entretanto, quando FHC assume a Fazenda em maio de 1993, a inflação já chegava no 30% ao mês e ressurgia a pressão para que se enfrentasse o problema. 


380 - FHC montou uma espécie de grupo de trabalho diverso que levou alguns meses pra montar o plano. No contrato implícito que se estabeleceu na sua relação com o grupo, Cardoso concordou com evitar interferências indevidas nas discussões técnicas e aceitou que prevalecessem regras não hierárquicas, do tipo uma pessoa, um voto, que conferiam mais legitimidade à depuração do livre fluxo de ideias no âmbito do grupo. Durante o período, houve tensões com Itamar. Em fevereiro de 1994, FHC chegou a ameaçar pedir demissão em razão de possíveis medidas que iam na contramão do plano, por exemplo.


381 - Nem no PSDB havia consenso sobre tentar algo tão pretensioso no pouco tempo e situação política conturbada que havia. Alguns achavam melhor levar uma espécie de feijão com arroz pra conter a escalada inflacionária. À medida que Cardoso e sua equipe insistiram em levar o plano adiante, figuras-chave do partido procuraram manter distância prudente dos preparativos.


382 - Contam que a proximidade eleitoral acabou levando mais gente a apostar na única esperança: País afora, as forças políticas estavam sendo reposicionadas com vista à disputa da eleição presidencial de 1994. E ganhou força a ideia da formação de ampla coalizão de centro-direita que apostasse no sucesso do plano. Nos meses seguintes, tal ideia abriu caminho para a obtenção de apoio no Congresso à aprovação de medidas bastante controvertidas que seriam requeridas para tornar o plano viável. A coalizão que se formou parecia impressionante, mas era extremamente fragmentada e indisciplinada. Mantê-la coesa, movendo-se na direção correta, sem que iniciativas impensadas botassem a perder a detalhada legislação que tinha de ser votada contra o relógio, mês após mês, era o grande desafio político. O prestígio de Fernando Henrique Cardoso no Congresso, sua capacidade de persuasão e seus talentos como negociador fizeram grande diferença


383 - Outra tarefa foi a de desarmar ao máximo expectativas defensivas dos agentes temerosos de congelamento ou confisco. O plano teria de ser totalmente transparente. Todas as etapas e medidas teriam de ser anunciadas com vários meses de antecedência. Mas o nível de desconfiança era muito alto. E a opinião pública teria de ser convencida de que o governo não tinha qualquer tipo de carta na manga, como tantas vezes havia acontecido no passado. (...) Primeiro, um ajuste fiscal significativo seria negociado com o Congresso. Depois seria criada a Unidade Real de Valor (URV), unidade de conta, com reajuste diário, que conviveria temporariamente com o cruzeiro real. Finalmente, uma reforma monetária extinguiria o cruzeiro real, substituindo-o pelo real, o que equivaleria a simplesmente conferir à URV a função de meio de pagamento. (...) Foi a URV que permitiu evitar as recorrentes dificuldades enfrentadas na implementação de planos de estabilização anteriores para assegurar, sem que houvesse um período de transição, que preços relativos não fossem distorcidos pela estabilização.


384 - O governo concentrou-se no ajuste fiscal possível, explorando a margem de manobra criada pelo aumento de tributação do setor financeiro e pela negociação no Congresso do Fundo Social de Emergência, mecanismo que, ao desvincular parcela significativa das receitas destinadas a gastos sociais, contribuía para reduzir a rigidez orçamentária que tolhia a gestão da política fiscal. Tais medidas, aliadas ao efeito devastador da inflação sobre o valor real das despesas, em 1993 e no primeiro semestre de 1994, permitiram a geração de superávits primários expressivos, de 2,6% do PIB, em 1993, e de 5,1% do PIB, em 1994. Em tese, haveria a âncora fiscal e cambial, protegida por US$ 40 bi e altas taxas de juros. 


385 - No segundo semestre de 1994, contudo, surgiram sinais claros de aquecimento da demanda, especialmente na indústria automobilística. Com folga para elevar preços, as montadoras mostravam-se propensas a acomodar pressões por reajustes mais generosos de salários nas negociações sindicais. Temendo excessos que poderiam advir dos reajustes de preços e salários em setor com tanta visibilidade, o ministro Ciro Gomes, que havia substituído Rubens Ricupero na Fazenda, decidiu reduzir as tarifas incidentes sobre a importação de automóveis de 35% para 20%. (...) A ofensiva pela restauração protecionista no setor automotivo teria amplo sucesso em 1995.


386 - É importante sublinhar que a política de estabilização implementada em 1993-1994 não contou com o apoio do Fundo Monetário Internacional, que jamais acreditou no sucesso do Plano Real. A resistência do FMI em apoiar o plano, ao final de um período de quase 12 anos de relações atribuladas com o Brasil, foi um desfecho irônico. Tendo partilhado longa série de fracassos, a instituição acabou não participando do retumbante sucesso do Plano Real.


387 - O bom cenário externo também sustentou o plano: Houve pequena queda no saldo comercial em 1993 para US$13,3 bilhões, em vista do aumento de importações decorrente do efeito combinado da liberalização comercial e da retomada do nível de atividade. Esta tendência acentuou-se em 1994 com redução adicional do saldo para US$10,5 bilhões, a despeito da melhora de mais de 14% dos termos de troca. Os influxos líquidos na conta de capital e financeira mantiveram-se entre US$8,7 e US$10,5 bilhões entre 1992 e 1994, o que permitiu forte recuperação das reservas internacionais, que passaram de US$23,8 bilhões, no final de 1992, para US$32,2 bilhões, no final de 1993, e US$38,8 bilhões no final de 1994.


388 - A liberalização comercial brasileira ocorreu de forma unilateral entre o final dos 1980 e meados dos 1990, sendo marcada por três episódios principais. A essência do primeiro episódio de liberalização comercial, em 1988-89, foi eliminar redundâncias: a tarifa média nominal de 57,5% (não ponderada) foi reduzida para 32,1%. No segundo episódio, de longe o mais importante, em 1990-93, decidiu-se inicialmente reduzir as barreiras não tarifárias, com a eliminação de proibições de importações (a famosa lista do Anexo C da Cacex), das licenças de importação usadas de forma mais ou menos permanente desde o final da década de 1940, bem como dos chamados regimes especiais de importação, que regulavam a distribuição de cobertura cambial com base em critérios discricionários. Em 1991, foi definido um cronograma de redução tarifária que, em princípio, se estenderia até 1994 e resultou na queda da tarifa média de 32,2% em 1990 para 14,2% no início de 1994. No início de 1992, decidiu-se, já na gestão de Marcílio Marques Moreira, como ministro da Fazenda, alterar o período de implementação inicialmente acordado para que terminasse seis meses antes do previsto. Finalmente, em 1994, foram feitos ajustes tarifários, parcialmente explicados pela intenção de impor disciplinas mais rígidas aos preços internos, durante o período inicial de implementação do Plano Real de estabilização, com redução da tarifa média nominal para 11,2%.


389 - Mercosul: esforços no governo Sarney; criação no de Collor; TEC criada ao fim do de Itamar.


390 - As privatizações ocorridas até 1989 envolveram primordialmente empresas falimentares de menor importância, cuja sobrevivência havia sido assegurada pela estatização. o resto seria mais desafiante. As empresas que operavam em setores mais expostos à concorrência seriam, em princípio, de privatização menos complexa: fertilizantes, petroquímica, mineração, siderurgia. A privatização de empresas públicas que exploravam monopólios na provisão serviços públicos e que haviam capturado seus órgãos reguladores (telecomunicações e eletricidade) constituía problema muito mais complexo, pois requereria esforço prévio de criação de marco regulatório, com credibilidade e independência adequadas.


391 - ...A privatização concentrou-se, assim, em empresas da indústria de transformação mais expostas à concorrência. As vendas de ativos somaram US$3,5 bilhões durante o governo Collor (15 empresas) e US$5,1 bilhões no governo Itamar Franco (18 empresas), especialmente de empresas siderúrgicas (US$5,6 bilhões), petroquímicas (US$1,9 bilhão) e produtoras de fertilizantes (US$0,4 bilhão). Marcos nesta primeira etapa do processo de privatização foram os casos da Companhia Siderúrgica Nacional – cuja usina em Volta Redonda havia sido o primeiro grande investimento industrial do Estado brasileiro, ainda durante a Segunda Guerra Mundial – e da Usiminas, tendo em vista as violentas manifestações contrárias à sua venda.


392 - Plano Brady e renegociação da dívida externa: Do ponto de vista dos credores, o acordo representava a possibilidade de transformar a dívida brasileira num ativo de risco muito menor do que mostrara ser. (...) Abria-se a possibilidade de escolha entre taxas de juros fixas e de mercado, carências variáveis, prazos de resgate de 15 a 30 anos e existência ou não de garantia de recebimento do principal. Todos os instrumentos oferecidos seriam aceitos em pagamento em vendas de ativos públicos no âmbito do programa de privatização.


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