Livro: Marcelo de Paiva Abreu - A Ordem do Progresso (2014) - Capítulo 10
Livro: Marcelo de Paiva Abreu - A Ordem do Progresso (2014)
Pgs. 213-227
"CAPÍTULO 10: "ESTABILIZAÇÃO E REFORMA, 1964-1967"
239 - Texto de André Lara Resende. O programa de estabilização implementado entre 1964 e 1968 logrou reduzir a taxa de inflação anual de algo próximo de 100% no primeiro trimestre de 1964 para algo em torno de 20% em 1969.
240 - Na declaração de objetivos e instrumentos que seriam usados no PAEG, nota-se que o combate à inflação estava sempre qualificado no sentido de não ameaçar o ritmo da atividade produtiva. Mais: “Dentro desse quadro”, prossegue o PAEG, encontram-se “as três causas tradicionais da inflação brasileira: os déficits públicos, a expansão do crédito às empresas e as majorações institucionais de salários em proporção superior à do aumento de produtividade. Estas causas conduzem inevitavelmente à expansão dos meios de pagamento, gerando, destarte, o veículo monetário de propagação da inflação.” (ver MPCE, 1964, p. 28). Um diagnóstico, portanto, que atribui à inconsistência na esfera distributiva da economia a causa da inflação e que vê na expansão monetária não um fator autônomo de pressão inflacionária, mas o veículo de ratificação, ou de propagação, dessas pressões. (...) Em função de tal diagnóstico, três “normas básicas” norteavam o programa desinflacionário: (i) contenção dos déficits governamentais através do corte das despesas não prioritárias e racionalização do sistema tributário; (ii) crescimento dos salários reais proporcional ao “aumento de produtividade e à aceleração do desenvolvimento”; e (iii) política de crédito às empresas “suficientemente controlada, para impedir os excessos da inflação de procura, mas suficientemente realista para adaptar-se à inflação de custos”.
241 - ...Enfim, nada muito diferente da abordagem "heterodoxa" (plano Trienal, por exemplo). A estratégia de combate à inflação também seria gradualista e as metas de desaceleração ou contração monetária sequer foram atingidas (como já fichei em outro texto, por sinal).
242 - O arrocho salarial, em tese (depois, ver ponto 245 mais abaixo), se daria de forma a “(i) manter a participação dos assalariados no produto nacional; (ii) impedir que reajustamentos salariais desordenados realimentem irreversivelmente o processo inflacionário; e (iii) corrigir as distorções salariais, particularmente no serviço público federal, nas autarquias e nas sociedades de economia mista” (ver MPCE, 1964, p. 83). Os governos estaduais e municipais também eram instruídos a seguir tal política salarial. Seria a regra a partir de então.
243 - Breve história do salário mínimo: Até 1930, não havia no Brasil uma política salarial oficial, vigorando a doutrina da “liberdade de trabalho”. Em 1931, foi criado o Departamento Nacional do Trabalho e feita a regulamentação da sindicalização de trabalhadores e empregadores. Nove anos mais tarde, em 1940, institui-se o salário mínimo, cuja regulamentação só foi feita em 1943. Durante o governo Dutra, de 1946 a 1950, o salário mínimo foi congelado, sofrendo uma deterioração de 31,7% do seu valor real. Entre 1951 e 1954, no segundo governo Vargas, o salário mínimo foi reajustado duas vezes, e em 1954 era 65% superior ao salário de 1946 em termos reais. De 1955 a 1960, durante o governo Kubitschek houve uma pequena perda de 5,7% no salário mínimo real, enquanto que no período de 1961 a 1964, durante os governos Quadros e Goulart, apesar dos reajustes mais frequentes, o salário mínimo real caiu aproximadamente 16,9%.
244 - Voltando à política salarial do período, com as atividades sindicais severamente reprimidas e as greves em atividades “essenciais” proibidas – e ao governo competia o julgamento da “essencialidade” –, o poder de barganha dos sindicatos tomou-se praticamente nulo. As negociações diretas entre trabalhadores e empregadores foram substituídas pela fórmula de reajuste fornecida pelo governo.
245 - ..Na prática, o arrocho foi piorando bastante o salário mínimo real a cada ano em razão de inflação efetiva maior que a prevista (usada numa fórmula criada para resolver desavenças salariais). Como a fórmula, em vez de recompor o pico de salário real alcançado à época do último reajuste, corrigia os salários na justa medida para recompor o salário real médio nos últimos 24 meses, o salário mínimo real, após o reajuste de março de 1965, foi reduzido em 11,0% com relação ao seu valor em março de 1964, quando fora reajustado pela última vez. Como a previsão do “resíduo inflacionário”, ou seja, da inflação para o ano seguinte, que entrava na fórmula de reajuste salarial, era a previsão oficial que foi consistentemente inferior à inflação efetivamente ocorrida, o salário mínimo real médio era reduzido.
246 - Os impostos diretos e indiretos foram imediatamente aumentados. O déficit do governo, como proporção do PIB, que era de 4,2% em 1963, já em 1964 declinava para 3,2%, em 1965 era apenas 1,6% e, em 1966, 1,1%. Também a forma de financiamento do déficit foi substancialmente alterada. Desde 1960, o déficit era quase que integralmente financiado pelas emissões de papel-moeda. Em 1965, 55% do déficit foram financiados através da venda de títulos da dívida pública e, em 1966, o déficit foi totalmente financiado pelos empréstimos junto ao público.
247 - Como já dito, a contração do crédito não rolou. Pelo contrário até:
248 - ...Muito dinheiro entrando de fora... Era difícil não ter expansão monetária. ...Em 1965, o valor em dólares das importações brasileiras foi igual ao observado em 1950, o mais baixo ocorrido nas décadas de 1950 e 1960. As exportações recuperaram-se em 1964 e atingiram nível recorde em 1965, gerando um superávit de US$218 milhões no balanço de pagamentos. As reservas dobraram, passando de US$244 milhões para US$483 milhões. A política monetária não foi suficientemente ágil para esterilizar este influxo de moeda gerado pelo superávit externo, e até o primeiro trimestre de 1966 a liquidez real da economia esteve folgada. A partir do segundo trimestre de 1966, a política monetária foi invertida, tornando-se apertada. (...) Ocorre que, pra variar, o BB jogou no sentido contrário, porém. (...) a inibição do crédito ao setor privado foi sensivelmente menor do que o aperto monetário. Este fato deve-se à ação do Banco do Brasil, pois os empréstimos totais ao setor privado em termos reais caíram, enquanto os empréstimos do Banco do Brasil ao setor privado em termos reais expandiram-se.
249 - A "inflação corretiva" de 1964: ...Estas taxas recordes verificaram-se não apenas no primeiro trimestre de 1964, mas durante todo o ano, e podem ser atribuídas aos vários aumentos das tarifas dos serviços públicos, à liberação dos aluguéis congelados e a outros preços, num processo na época chamado de inflação corretiva. Ainda dentro da política corretiva dos preços, o governo atendeu às pressões para elevar os salários dos servidores públicos. O salário mínimo havia sido elevado em 100% em fevereiro, ainda no governo Goulart, enquanto os salários dos funcionários do serviço público eram congelados. Os salários dos militares foram aumentados em 120% imediatamente após a mudança de governo, e os empregados civis receberam aumento de 100% em junho.
250 - Idas e vindas: Em 1964, o alívio na liquidez real até o terceiro trimestre permitiu um esboço de recuperação industrial, enquanto os preços continuavam elevando-se em relação às taxas de 1963. Em 1965, a política fiscal restritiva, que aumentara os impostos em todos os níveis e reduzira a despesa do governo desde o segundo semestre de 1961, associada a novo aperto de crédito no último trimestre de 1964, fez com que a atividade industrial entrasse definitivamente em colapso. Após dois anos de safras ruins, a agricultura teve um ano excepcional e cresceu 12,1% em 1965. (...) O crédito fácil durante o ano de 1965 e a capacidade ociosa acumulada em três anos de estagnação explicam o crescimento industrial em 1966, que atingiu a taxa de 11,7%. A agricultura é que teve um mau desempenho em 1966, quando sofreu uma queda de produção de 1,7%. (Talvez esses repiques econômicos até evitassem alguma histerese?). Em 66, o governo, talvez com o medo de perder o controle, volta-se nitidamente mais à ortodoxia monetarista. O BB ainda tenta ir no sentido contrário, mas vai sendo vencido. Os indícios de recessão na indústria só começaram a aparecer no último trimestre de 1966. No primeiro trimestre de 1967, o quadro já era nitidamente recessivo. O consumo de energia elétrica decrescia após quatro trimestres de crescimento acelerado. A política monetária começava a se fazer sentir.
251 - Lara Resende resume a questão aqui: A defasagem com que as políticas restritivas operam sobre o nível de atividade é de aproximadamente dois ou três trimestres. A política fiscal restritiva de 1964 e 1965 completou o pacote ortodoxo inicialmente introduzido com o Plano Trienal no início de 1963 e acabou determinando a queda da produção industrial de 4,7% em 1965. O PIB só não decresceu porque a agricultura teve um ano excepcional. (Em tempo, o controle (diminuição) da inflação parece ter vindo muito boa parte do arrocho salarial...)
252 - Quais os custos da experiência com a ortodoxia? A parada do crescimento durante o período 1963-1967 criou um hiato entre o produto observado e o produto potencial, medido pela linha de tendência do PIB baseada na taxa histórica de 7% ao ano, que só foi eliminado em 1973 – portanto, 10 anos mais tarde, depois de 7 anos de crescimento acelerado no período 1968-1973. Os custos da quebra do ritmo de crescimento em termos de emprego não podem ser avaliados com precisão, pois não existem estatísticas de desemprego para o período. Pode-se apenas, portanto, especular sobre o que é sem dúvida o mais grave aspecto das políticas monetária e fiscal restritivas. As políticas restritivas levaram a grandes endividamentos das empresas, especialmente pequenas e médias.
253 - ...A indústria de construção civil foi claramente uma vítima da política fiscal que reduziu substancialmente as despesas com obras públicas no período. É importante lembrar que a construção civil é um setor intensivo em mão de obra não qualificada, cuja paralisação tem, portanto, caráter socialmente regressivo. Este setor, como todos aqueles compostos na sua maioria por firmas nacionais, sofreu ainda mais severamente o aperto de crédito. Sobre os gastos sociais, pouca mudança positiva. A queda nos gastos com a previdência social é evidente: havia alcançado 7% até 1965, cai para 5,4% em 1966 e 5,5% em 1967.
254 - ALR faz um esforço de caracterização do que chama ortodoxia: colocar a questão da inflação vinculada essencialmente à questão fiscal (déficit público que gera excesso de moeda e demanda...); No front externo, câmbio “realista” e redução da proteção tarifária à indústria oligopolística e ineficiente e, por fim, a culpabilização da rigidez salarial, digamos assim: Sindicatos poderosos e expectativas rígidas interferem no ajustamento das forças de mercado e mantêm as pressões inflacionárias por parte dos salários, apesar do fim das pressões de demanda, quando a política monetária é corretamente conduzida. Explica-se, assim, a resistência da inflação após a adoção das medidas restritivas de política monetária e fiscal, quando o estado recessivo da economia já não permite insistir no diagnóstico do excesso generalizado de demanda.
255 - ...Ressalva: ALR afirma que parte do liberalismo radical, vinculado à teoria das expectativas racionais, vê praticamente todo desemprego como voluntário. Assim sendo, o mercado (livre) de trabalho, assim como os demais, estaria sempre em equilíbrio: ...As flutuações observadas no emprego refletem apenas variações na preferência pelo lazer por parte dos trabalhadores (Defendem exatamente isso mesmo?). Quanto às quebras, crise é purgação. Enfim, o PAEG não teria, assim, sido ortodoxo. Até pela preocupação com crescimento e tolerância com a inflação, atacada de modo gradual.
256 - A política econômica do primeiro governo pós-1964 foi bem além do receituário mais simplista que prega apenas políticas monetária e fiscal rigorosas e hands-off. A convicção da necessidade de reformas institucionais acompanhou o PAEG desde seu diagnóstico. Três áreas foram particularmente destacadas, refletindo, acertadamente, a percepção do governo a respeito dos pontos de estrangulamento institucionais da economia: primeiro, a desordem tributária; segundo, as deficiências de um mercado financeiro subdesenvolvido e a inexistência de um mercado de capitais; e, por último, as ineficiências e as restrições ligadas ao comércio exterior.
257 - Apesar de não ter levado até o fim a desvinculação do Banco do Brasil do papel de Autoridade Monetária, pois o Banco do Brasil permaneceu tendo acesso automático e discricionário aos fundos do Banco Central, a criação do Banco Central foi um enorme avanço no sentido da modernização do sistema financeiro e da condução da política monetária. Houve, ainda, o desenho do sistema financeiro moderno e a instituição da correção monetária, tudo visando captar mais poupança privada voluntária para impulsionar o investimento. Conclui que os pilares do PAEG e da política desinflacionária dos primeiros governos pós-1964 foram, sem dúvida, a política salarial e as reformas institucionais.
258 - Desigualdade: Os custos da política de compressão salarial foram sem dúvida consideráveis sendo importante elemento de explicação da deterioração da distribuição de renda entre 1960 e 1970. A participação na renda total dos 50% mais pobres reduziu-se de 17,7% para 14,9% e a dos 30% seguintes de 27,9% para 22,8%. Enfatiza, novamente, o aperto de crédito por aqui: No caso brasileiro, a possibilidade de recorrer a empréstimos externos em moeda estrangeira teve efeitos particularmente regressivos, pois deu às empresas estrangeiras e às grandes empresas estatais acesso a uma linha de crédito vedada às pequenas e médias empresas nacionais.
259 - Por fim, assevera que a opção por medidas ortodoxas veio da necessidade de voltar a ter um balanço de pagamentos saudável. Um novo influxo de capitais externos era fundamental para voltar a crescer, sendo preciso despertar a confiança dos agentes internacionais.
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